O Comércio

EM MACAU

Integrada nas Comemorações do Dia de Portugal, o Instituto Cultural de Macau trouxe ao Território uma exposição de pintura de Costa Pinheiro, a sua célebre série intitulada "Os Reis". Costa Pinheiro é um pintor português que, durante alguns anos, esteve voluntariamente exilado na Alemanha, onde contactou de perto com os movimentos artísticos que, nos anos 70, despontaram na cidade bávara de Munique. Foi durante este exílio, aproveitando o olhar agudo que a distância confere, que o pintor realizou esta galeria.

A História, para Costa Pinheiro, emerge também registada nos atributos dos reis, sobretudo no esboço traçado pelo imaginário popular. É uma História marcada por um estranho sentido ou prenúncio de fatalidade, reflectido nas composições assombradas pela figuração das cartas de jogar. Sobre "Os Reis", transcrevemos extractos de um texto de José Augusto França.

D. Afonso Henriques, óleo sobre tela, 1966.

"Como muitos outros países, Portugal teve os seus reis, mas reis como os dele não houve no mundo, se os virmos assim, durante sete séculos, na mesma família gerados, de pais para filhos, unsatrás dos outros, coroados à vista ou esperando a vez genealógica e só por bastardia mudando o nome da sua única dinastia capetíngea; até que um Coburgo veio fazer príncipes louros de outra varo-nia. Na galeria que nos é mostrada, porém, a história acaba muito atrás, em Al-cácer-Quibir - como os homens de 1870 tinham achado, com Oliveira Martins, sendo póstumos todos os mais, reis de Bragança. (...) ... Acabaram então os nossos reis em D. Sebastião. De qualquer modo, ele foi o último mais ocidental rei da Europa a sonhar impérios contra o Islão oriental que já ia conquistando o centro do conti-nente cristão. Com ele, sem filhos nem com que os ter, terá acabado o Ocidente como tal, medieval e de cruzadas, numa crise maneirista que em D. Sebastião teve a mais fatal e inocente das encarna-ções históricas.

(...) Que um pintor português cha-mado Costa Pinheiro, cem anos depois, exactamente, plantado num desses sítios que também supôs melhor, acabe no mesmo ponto da história, não pode ser por acaso.

D. Sebastião, óleo sobre tela, 1966.

Apenas, em vez de "estrangeirado" de Coimbra, ao som provinciano da "ca-bra", ele é-o em Munique, Baviera, es-trangeiro mesmo e, ao contrário, já sem vontade de o ser. Nem necessidade?

Aí a dúvida é de rigor, porque foi a necessidade que há trinta anos para lá o levou, e as necessidades de emigração não se resolvem com melhorias de mer-cado, significando tanto a inflação do escudo como a da história. Esta, o pintor foi-a vendo viver, defendendo-se, pela distância, das maiores ilusões que os ou-tros tiveram. Dúvida também quanto à verdade? Só porque vontade nunca hou-ve, na sua verdade lastimada, na alma dos emigrantes nacionais; ou só a houve não a havendo, naqueles que nunca che-garam a sê-lo - no cais donde nunca par-tiram, e ao qual os outros têm sempre voltado. O Português não será, tanto as-sim, aquele que parte - mas aquele que volta.

(...) O pintor em questão, que se foi e vai vindo tanto quanto lhe calha, ao Alentejo natal, reparte vontade e neces-sidade, em média de fatalidade, mas sem fazer batota em labirintos de saudade, como geralmente acontece. Tem-na mesmo e não procura desculpas, nem dela tira proveitos. Por isso não conti-nuou a série dos reis, quando lhe vale-riam a pena e o pincel, e livre se deixou ficar, para vir de Munique ao Alentejo, e vice-versa, quando lhe apetecer. "Figu-ras mortas", como tal ficaram enterradas na sua memória, e na nossa também, sete reis, três rainhas, três ou quatro príncipes, e mais um de cada, depois da exposição de Munique, em 1966. (...)"

(...) "Em Dezembro de 1966, Costa Pinheiro expôs numa galeria de Munique uma série de obras intitulada "Os Reis", "Die Könige", óleos, águas fortes e serigrafias. Vinte e sete peças ao todo, catorze óleos que cobrem a iconografia usada, com excepção do infante. D. Pe-dro que ficou em serigrafia, mas agora tem óleo também.

Retrato a retrato, temos os reis de Portugal que já vimos acabarem em D. Sebastião e único, e podemos agora sa-ber que vieram do princípio, isto é, de D. Afonso I. Outros monarcas, por sua or-dem cronológica, foram D. Dinis I, D. Pedro I, D. Duarte I, D. João II, D. Ma-nuel e D. João III. Depois temos três rai-nhas, Dona Inês, Dona Leonor e Dona Filipa, e dois príncipes, os infantes D. Henrique e D. Fernando, o Navegador e o Santo, e mais o D. Pedro das sete parti-das do mundo. A par destas personagens régias, o condestável D. Nuno Álvares Pereira, tronco de reis que seria e logo sogro de um infante bastardo. Quinze imagens no seu total, pouco menos de um terço de baralho - cartas que são, como veremos. Estas são, porém, as "personae dramatis" em cena - e por-quê, não o sabe o pintor, ao pensar em cada uma delas ou em outras que não ti-veram forma; ou podendo ter acontecido, às vezes, ser o baptismo, com hesitações, posterior à imagem. Uma figura assim, assim deve chamar-se, no mistério das razões poéticas: "Nomes de guerra" são sempre os nomes mais exactos, sabemo-lo com Almada Negreiros.

(...) Identificarmos nós, por obser-vação ou palpite, as figuras anunciadas, seria empenho vão: se uma ou outra tem traços conhecidos (o bacinete e a cota de malha nas pernas de D. Afonso Henri-que), já nelas o restante da indumentária e dos símbolos que a ornamentam parece aleatória. Porquê este escudo ou esta cruz ou esta mão ou este pássaro, porquê este naipe - e não outros, para outro nome?

Ingratidão ou insolência seria pôr tais questões: D. João II é quem é, com. escudos na coroa, os braços em cruz de Cristo, uma estrela e uma lua pontuando outra cruz, um búzio do outro lado, pombas nos olhos. Não seria antes assim o seu primo D. Manuel? Não, porque não, e não chega como razão ter este de preferência uma planta central de edifí-cio no campo figurativo (se é que o é) e também piões rodopiantes, e, pendura-das das pupilas, cruzes gregas: nada de "manuelino" no caso; e que pensar da pinta de espadas, rachada sobre a cabe-ça, entre outras duas, no retrato de D. João III?

são à Santa Inquisição. Se podemos ver em D. Pedro I olhos irados e em D. Duarte I barba de sábio conselheiro, ou-tros tiveram tais qualidades régias, que tanto fazem. O pintor conta-nos as his-tórias que quer, bonifrates que são as fi-guras, brinquedos de articulação - a anunciarem já os "citymobiles" a que em breve se dedicaria com utópico afã, e cu-jos projectos rodeiam as figuras reais, ou entram nelas próprias, seus parceiros de corte e seus berloques.

Porém, as três rainhas que pintou, damas do seu baralho, representam-se mais pessoalmente: Dona Inês de Castro chorando das pupilas-coração lágrimas de sangue, e toda ela imagem de altar, mártir fixada para a eternidade, Dona Leonor Teles, a altiva flor mostrando os seios que tem, e o olhar de raiva (mais ainda nas lágrimas do segundo e mais re-cente quadro, agora exibido), e Dona Filipa, serena mãe de família Lancaster, cujos olhos, do desenho para a pintura, se transformaram de pombas como que em frangos caseiros, prontos para o ali-mento da ínclita geração a que deu o ser, e o pintor retrato.

O jogo dos símbolos inventados, pela liberdade de humor que tem, rodeia qualquer código (com fintas de cigano alentejano - direi?...) e torna-se inteira-mente absurdo, ou faz do absurdo a sua razão de ser pintura. Daí que estas car-tas, de reis, damas-rainha e valetes ou príncipes, possam ser deitadas como nos apetecer, para traçarem dédalos de des-tino, ou fazerem vazas, por aleatória decisão. Na certeza, porém, de que o pin-tor sabe que a liberdade delas se prova no domínio lúdico da mitia - e não da mi-tologia como sistema fechado e predestinado. Esta história de Portugal "par coeur" não tem qualquer obrigação de-monstrativa, para anunciar, como no Almada, um regresso à pátria, mesmo in-grata. Quando chegar a vez de D. Pedro, a sua Alfarrobeira passa-se entre bonecos articulados, e a boca e o olho cosidos, por razões de Estado, não trazem drama nem história. História, o pintor conta sempre outra, ora divertido ora melan-cólico, carta a carta, que dos seus arranjos e combinações elas resultam, de cada vez. A galeria que pintou é, então, como de antepassados seus, por direito e dever de imaginação, como os traços e as cores que lhe apetecem; e estas mãos e estes olhos de brinquedo vão sair de cada tela para o espaço festivo de um Dia de Reis, ou a ela voltam, arrumados como os brinquedos falsamente se arrumam, à espera da liberdade sem dono que pela calada da noite lhes acontece.

Tudo isso está certo e sentende, se tal for o caso, até que D. Sebastião, o úl-timo dos reis, ressurja, muitos anos de-pois, como se esperava, ou sabia..."

desde a p. 206
até a p.