Linguística

CAMILO PESSANHA 70 ANOS DA CLEPSIDRA

São muitas vezes rememorados os Poetas nos aniversários do seu nascimento ou morte: como as grandes figuras políticas, cuja acção em vida o tempo inscreveu no património da História.

Melhor fora, e assim o preferíamos, que os Poetas, celebrizados na sua obra, por ela fossem comemorados. Desgraçados da sorte e malditos do génio, parece que, ao menos nisto, são agraciados os "poetas de um livro só" - com ele perdurando na memória dos pósteros, atentos à data da sua primo-edição.

Praticamente, "poetas de livro único" foram-no António Nobre, e Cesário, e João de Deus, e Florbela, e quase Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa (em vida). E Camilo Pessa-nha.

Mas, mais do que todos os outros, pagou este último o preço do "exílio" em Macau, virando as costas a uma Lisboa que o enfastiava, desfrequentador das suas tertúlias e tresmalhado das suas paróquias literárias.

O incensório que, nos últimos decénios, esfumarou o templo das letras lusas em glorificação de Fernando Pessoa, não excluiu todavia que Florbela Espanca e Mário de Sá-Carneiro fossem, à vez, turibulados em culto próprio. Não foi, porém, Camilo Pessanha suficientemente alçado em mais elevada peanha, como seria jus. É--se mais impressionável ao suicídio brutal, do que ao lento suicídio. Morre jovem aquele que os deuses amam...

Como que esgotada no analismo das obras, afundou-se a crítica na investigação de recessos biográficos dos poetas, e até em devassa de inti-mismos que em nada lustram as obras, transcendentes da sua condição de seres necessitantes.

À margem deste biografismo ficou, de certo modo, o Dr. Camilo de Almeida Pessanha, força do desterro macaense.

Se mais não bastasse, vem agora Macau reafirmar títulos de terra anfitriã e de legítima "posse" do Poeta, assinalando a passagem dos 70 anos da primeira edição da "Clepsidra" com um conjunto de actos culturais que, tornando mais esclarecida, completa e acessível a obra dispersa, reconstituem também o seu perfil humano, devolvendo-nos um retrato que há muito se esbatera nos parcos testemunhos soltos sequentes à sua morte.

A recolha desses testemunhos (sobre o Poeta e a sua Poesia) acaba de ser dada à estampa, em co-edição do Instituto Português do Oriente e do Instituto Cultural de Macau, e sob o título "Homenagem a Camilo Pessanha", que só peca pela modéstia, merecendo a nosso ver enfileirar de parelhas com os "In Memoriam" já dedicados a outros grandes autores portugueses.

É autor desta recolha antológica o Dr. Daniel Pires, central animador, na concepção, na investigação e na edição, de todo o programa pessanhiano, que tem o patrocínio das duas referidas instituições culturais de Macau.

Estão ainda em fase de produção editorial "Camilo Pessanha, Prosador e Tradutor” e “Ca milo Pessanha. A Imagem e o Verbo" - uma Fo-tobiografia do Poeta; e em preparação a colecção da "Correspondência” e uma edição crítica da "Clepsidra" (títulos da responsabilidade de Daniel Pires).

Quase em simultâneo estiveram patentes duas exposições: uma de Pedro Barreiros, pinturas inspiradas em títulos da "Clepsidra”, e outra Biobibliográfica (organizada por Daniel Pires), com manuscritos autógrafos, poemas, cartas, processos, apontamentos, documentos biográficos e espécimes bibliográficos raros e inéditos. Foram ainda em Macau feitas conferências por António Dias Miguel, Arnaldo Saraiva, António Braz de Oliveira, e três seminários animados por estes três especialistas de Camilo Pessanha.

Recepção oferecida pelo fundador da República chinesa, o Dr. Sun Iat-Sen, em 1912. Entre os convidados, à esquerda na primeira fila, está o poeta Camilo d'Almeida Pessanha.

Associando-se à comemoração do Poeta, e visando sobretudo a maior publicidade a tanto material disponibilizado e tão pouco conhecido, RC dedicará parte deste e dos próximos números ao autor da “Clepsidra”.

Resolvemos começar com a publicação, em moldes de "separata" ou caderno em extra-tex-to, do famoso Caderno de Poemas de Camilo Pessanha, também conhecido como Caderno Negro em razão das capas de oleado preto com que o poeta rebuçou a sua pequena colecção de poemas revistos e manuscritos, hoje à guarda do Arquivo Histórico de Macau.

Não se trata de edição de todo inédita, como se esclarece na história do Caderno, constante da Nota Introdutória de Manuel Coelho da Silva à edição dos Serviços de Educação (1986) e de que transcrevemos a parte interessante: «A primeira parte da vida do "Caderno" é--nos dada pelo Dr. Danilo Barreiros no seu trabalho - INÉDITOS - o "Caderno" de Camilo Pessanha, publicado na Revista Persona 10, de Julho de 1984, - e, que passamos a transcrever com a devida vénia:

"Só à véspera de deixar Macau, há cerca de 38 anos, após a guerra, foram os meus esforços coroados de êxito, pois que "descobri" na Biblioteca Pública de Macau um caderno de 28 páginas, formato 21,5 x 19,5, com capa de oleado preto, com o registo no 3358, no inventário, com bastantes folhas em branco, falta de outras e "recortes" de poesias várias, profusamente emendados e anotados pelo autor.

"O caderno contém ainda alguns manuscritos, sendo dois deles a lápis ("Cristalizações salinas"... e "Nesgas agudas do areal"), estes inéditos.

"O caderno fora oferecido por Camilo Pessanha a D. Laura Castel Branco, ou emprestado, o que é mais lógico, tendo aquela Exma. Senhora, após a morte de Pessanha, enriquecido a dita Biblioteca com esse valioso documento.

"À falta de máquinas de fotocopiar e na impossibilidade de retirar o caderno da Biblioteca para o fotografar num atelier (não dispúnhamos ainda dos modernos aparelhos de fotografia), copiei os textos e as emendas. Mais tarde, para efeitos de publicação e dada a imperfeição da minha reprodução, pedi ao Bibliotecário de Macau, o mui distinto investigador Luís Gonzaga Gomes, fotocópias (já tinham sido adquiridas máquinas para o efeito) ou fotografias, vindo a saber, com enorme desgosto, que não se encon trara o menor rastro do "Caderno". Só em Março de 1967, depois do assalto e depredação, pelos estudantes chineses de Macau, inflamados pela Revolução Cultural, de que foi objecto o edifício do Leal Senado e da Biblioteca, se recuperou o desejado caderno que jazia esquecido na gaveta de um armário que, arremessado de uma varanda, se desconjuntou na rua...

"O meu amigo Gomes enviou-me imediatamente as fotocópias pedidas, agora publicadas, e que devem certamente ser de interesse para quem possa e queira fazer uma edição crítica de toda a obra poética de Pessanha cuja feição primitiva foi, de modo geral, diversas vezes burilada, sempre em busca de uma maior perfeição".

«A segunda história é mais recente, data de 1984. A dinamização que se procurou imprimir à Biblioteca Nacional de Macau passou pela realização de obras e por uma profunda reorganização interna. Numa primeira fase no edifício--sede, na Av. Conselheiro Ferreira de Almeida, na segunda fase nas velhas instalações da antiga biblioteca do Leal Senado, para onde deverá passar a biblioteca histórica.

«Quando se procedia à arrumação de livros e papéis, antes de se iniciarem as obras na biblioteca do Leal Senado, a bibliotecária Dra. Maria da Graça Jácome Correia encontrou alguma dificuldade em abrir as gavetas de uma velha secretária. Em boa hora o conseguiu porque, duma delas, voltou a surgir o "fugidio" caderninho de capa preta do bacharel Camilo Pessanha, professor do Liceu, advogado, conservador, juiz, que sei eu!, um pouco de tudo nesta terra».

Dessa mesma edição, publicamos também de seguida o belo texto de José Augusto Seabra, apresentação por certo inultrapassável deste "corpus mínimo de poemas trabalhados em filigrana".

Resta-nos o pequeno mérito do cuidado e do ineditismo formal com que damos essas páginas à estampa buscando, com a mais fiel reprodução, proporcionar ao leitor o sabor de ter em mãos o próprio original, e ao investigador interessado mais acessível matéria para estudo crítico ou escrítico de Camilo Pessanha.

desde a p. 133
até a p.