Imagem

EM MACAUAS PRIMEIRAS FOTOGRAFIAS DA CHINA

Luís Sá Cunha

Jules Itier, 1844. Vista de Macau. Colecção do Musée Français de La Photographie.

Até há alguns meses- concretamente até à mostra em Macau da exposição "As primeiras fotografias de Macau e Cantão - as mais antigas fotos da China conhecidas no Ocidente eram no geral posteriores a 1860, e o veneziano Felice Beato era tido como "o primeiro fotógrafo estrangeiro conhecido na China"(N. C., (Nigel Cameron), "Pioneer Photographers", in "The face of China, As seen by Photographers and Travelers", Aperture Inc.). Não curando agora de apurar se antes da primeira grande reportagem fotográfica realiz ada na China por Beato algum chinês se lhe tenha antecipado, aquela asserção era válida internacionalmente, na opinião dos investigadores e na prova documental das fotografias datadas, ou datáveis por critérios de aproximação.

Nos álbuns publicados em Hong Kong, ondese recolhem os mais antigos documentos fotográficos da colónia britânica, e da China contactada po r ocidentais, nenhum antecede a data de 1860.

Em 1978, de 15 de Abril a 25 de Junho, foi patenteada ao público a maior colecção da s primitivas fotografias da China, organizada pelo "Phi-ladelphia Museum of Art", exposição de seguida reeditada em várias cidades do continente americano.

Com reproduções, notas explicativas, legendas, comentários e textos de enquadramento de especialistas, o catálogo dessa exposição foi editado em livro pela Aperture Book Inc., sob o título "The Face of China, as seen by Photographers and Travelers - 1860-1912".

Pela recolha e selecção das fotos foi responsável Fred W. Drake, professor associado de História da Universidade de Massachusetts (sinólo-go, investigador dos fotógrafos pioneiros da China) que se socorreu dos seguintes acervos e arquivos: Arnold Arboretum; Harvard University; Bi-bliotheque Nationale; British Museum; Museu m of Fine Arts; Boston Essex Institute; Freer Gal-lery of Art; George Eastman House; Library o f Congress; Museum of New Mexico; National Ar-chives; National Army Museum; Naval Historial Ce nter; New York Public Library; Peabody Museum of Salem; Smithsonian Institution; Victoria and A lbert Museum; e das colecções privadas de Chaoying Fang; Arnold H. Crane, Edmonton Art Ga llery, Elaine Ricketts e Daniel Wolf. Transcrevem-se apenas as principais fontes utilizadas.

Com recurso a tantos espólios de algumas das maiores instituições museológicas do Mundo, o próprio catálogo situa temporalmente os documentos entre 1860 e 1912.

Neste enquadramento, Felice Beato surge--nos não apenas como o pioneiro repórter estrangeiro, mas como o primeiro fotógrafo a colher imagens da China, com fotos comprovativas.

Entre os grandes repórteres fotográficos da China do Século passado, avultam os nomes de Beato, Thomson, Wilson e Hinton.

Fotógrafo desconhecido, 1873. Centro de exames em Cantão com 7500 celas, onde os can didatos à burocracia celeste eram periodicamente confrontados com difíceis testes à sua sabedoria e outras capacidades. Foi aqui que Hung Hsiu-ch'uan, o líder da rebelião de Tai ping, foi chumbado e, consequentemente, vedado o seu acesso a mais altos cargos. In "The Face o f China as Seen by Photograp-hers and Travelers - 1860-1912", L. Carrington Goodrich-Nigel Cameron; Philadelphia Museum of Art, 1978.

John Henri Hinton nasceu em Londres em 1875 e partiu para a China em 1894; afinador de pi anos, foi destacado para a empresa Samuel Montrie e C.a, com sede em Xangai. Na Chi na, durante os dois primeiros anos, viajou e iniciou-se na língua e cultura chinesas, tendo incluído no seu primeiro album 14 fotografias da China, sobretudo de Xangai. Quando os exé rcitos aliados che-garam a Tientsin, em 1899, Hinton seguiu-os até Pequim, fotografando os movimentos das tropas e a paisagem, material que incluiu num álbum datado de 2 de Novembro de 1901.

Ernest Henry Wilson, o "Chinês" Wilson, foi várias vezes à China em expedições de investigação e documentação de espécies botânicas. A sua primeira viagem data de 1899. Utilizando material já ultrapassado nesse tempo, fez cerca de 5.000 fotografias em placa s de vidro, reservando os respectivos negativos (à base de nitrato) para sua colecção pessoal.

O primeiro grande trabalho de reportagem fotográfica na China com impacto no Ocidente foi, porém, executado por John Thomson, natural de Edimburgo, e que, depois de ter passado pelo Camboja, Tailândia e Malásia, chegou a Hong Kong em 1868, donde partiu para uma excursão de 1.000 milhas dentro do continente chinês. Daí resultou um livro em quatro volumes - "Illus-trations of China and it's People" - com duzentas fotografias acompanha-das de notas e informações colhidas "in loco".

As suas primeiras fotos da China datam, pois, de 1868, e nelas se incluem algumas de Macau.

Mas a história dos primeiros repórteres fotográficos remonta a alguns anos atrás, quando as primeiras fotogravuras de cenas da Guerra da Crimeia começaram a ser publicadas pel o "Illus-trated London News".

Roger Fenton foi o primeiro repórter de guerra, enviado à Crimeia pelo jornal de Lon-dres, com instruções para não colher imagens muito chocantes do cenário bélico. Transf or\-mando uma carroça de distribuição de vinhos em "roulotte" de trabalho (com cama, cozi nha e es-túdio - cinco câmaras, 700 placas de vidro, uma tenda, ferramentas, produtos quí micos de revela\-ção e emulsão e 36 caixas), Fenton logrou colec\-cionar 360 fotografias, apesar das péssimas condi-ções climatéricas e logísticas, limitando-se a tra\-balhar num curto período do dia porque as altas temperaturas, secando rapidamente as chapas, não lh e permitiam tirar mais rendimento do pro\-cesso do colódio húmido.

No seu encalço (logo depois de ele ter regres-sado a Inglaterra debili-tado pela cólera) parti\-ram para a península da Crimeia James Robert-son, Gravador-Chefe da Casa Imperial da Moeda de Constantinopla, e Fe-lice Beato, seu assisten\-te. Fotógrafo e gravador, Robertson trabalhou com Beato na gravação de várias imagens da guerra, e numa série de fotografia s de Constanti-nopla, Atenas, Cairo e lugares bíblicos da Pales-tina, obtidas anterior-mente. As notícias das amotinações na Índia chamaram-nos ao conti-nente indiano, e en\-quanto Robertson se quedou por ali, Beato ru-mou ao Oriente, atraído pelos ecos do período derradeiro da 2a Guerra do Ópio.

John Thompson, 1868. Jui-lin, governador-geral manchúde Kwang-tung e Kwang-si. In "Illustrations of China and It's People", Sampson Low, Marston, Low and Searle, London,1873.

Beato (que na guerra da Crimeia já dirigira especialmente a objectiva para os quadros bélicos mais cruentos, as pilhagens em Balaclava) atre-lou-se aos exércitos que em 1860 partiam para capturar Tientsin e que haveriam de saquear o Pa\-lácio Imperial de Verão em Pequim, anterior-mente ocupado.

"Enquanto Robertson usava o processo do betume nas placas de vidro, processo inventario por C. Nièpce de St. Victor, no qual sais de prata sensíveis à luz eram suspensos em betumes for\-mando uma camada na placa de vidro, Beato, na China, utilizava um processo muito avançado - a placa de colódio inventada em 1848 por F. Scott Archer. Neste processo, os sais de prata sensíveis à luz eram finamente separados numa solução contendo gelatina.

Atendendo aos diversos factores envolvidos na fotografia, parece-nos surpreendente que alguma vez se tenha fotografado. Primeiro, as máquinas fotográficas tinham de ser bastante grandes de forma a conterem placas de vidro de 10x 12inches, ou de 12x 16 ou ainda maiores. O peso das placas de vidro, que tinham de ser transportadas cuidadosamente embaladas em caixa s de madeira, era só por si um enorme obstáculo.

A máquina tinha geralmente várias lentes para substituição, todas muito pesadas.

O tripé era bastante primitivo e uma espécie de câmara escura portátil tinha de ser transportada, incluindo uma tenda à prova de luz, todos os químicos para as placas e frascos de vidro herméticos para revelação e fixação das fotografias. Não é pois surpreendente ouvir falar de fotógrafos que contratavam um pe\-queno exército de transpo rtadores locais para le-varem todo o equipamento, de forma a poderem instalar laboratórios e m pleno campo e tirar as fo\-tografias em condições que apenas podemos imaginar.

John Thompson, 1868. Senhoras de Ningpo. In "Illustra-tions of China and It's People", Samps on Low, Marston, Low and Searle, London, 1873.

Naquela época, as camadas húmidas e sensíveis nas placas de vidro demoravam muito tempo a reagir à luz e as exposições tornavam-se muito longas.

As impressões tinham de ser feitas directamente dos negativos. O fotógrafo do séc. XIX -até 1899, quando Eastman introduziu o primeiro filme de celulóide emulsionado em brometo de prata - tinha de ser uma pessoa de força conside\-rável e acima de tudo com muita prática na quí-mica e nas suas aplicações pois tinha de saber pre-parar a sua pr ópria emulsão para revelar as foto\-grafias e saber imprimi-las com materiais bastante pri mitivos. Cada fotografia era o resultado de um longo teste de resistência durante o qual muit a coisa podia acontecer: uma lufada de vento podia sujar a placa com inúme\-ras partícu las (pó, palha, areia, etc., conforme o lugar); o burro que trans-portava o material podia tropeçar e partir algumas caixas de lentes ou fras\-cos com negativos já pre-parados". (Ob. cit. ibi-dem, "Pioneer Photo-graphers", "The Face of China, As seen by Photo-graphers an d Travelers", Aperture Inc.).

Imaginando o pro\-cesso complexo, moroso e penoso da escrita (gra\-fia) da realidade através da luz (foto) e o carácter aleatório dos seus resul\-tados nos tempos pio nei\-ros, temos hoje que ad\-mirar estes aventureiros fotógrafos - Wilson, Hin-ton, Th omson e sobre\-tudo Beato - que excur-sionando pela China du\-rante o Século passadonos tran smitiram em imagens o que até aí era ape\-nas imaginável nas descrições dos cronistas de viagens.

Mas, o que até há pouco se ignorava é que no Departamento de Essonne do Museu Fran cês da Fotografia hibernava uma colecção de fotografias tiradas em Macau e Cantão, dez asseis anos antes da chegada de Beato.

Trata-se, assim, de uma reportagem realizada no continente chinês apenas cinco anos depoi s de Daguerre ter apresentado oficialmente ao mundo (1839) os resultados de uma investigação que ficaram registados na História como a "invenção" da fotografia, e no mesmo ano em que as "partes da China" frequentadas por estrangeiros eram "reportadas" à Europa pelo traço de Au-guste Borget.

O seu autor foi o francês Jules Itier, funcionário das alfândegas que veio a Macau integrado na delegação francesa aqui enviada para negociar o tratado de paz com a China, em Outubro de 1844.

Munido da "grande caixa de madeira"com o complicado trem de acessórios, Itier sal ta para as ruas de Macau para fixar imagens exóticas jamais registadas pelo processo fotog ráfico: "consagrei estes dois dias (14 e 15 de Outubro) a fixar no daguerreótipo o s aspectos mais notáveis de Macau".

Dias depois, estará a fotografar Cantão, onde é assaltado com solicitações de faz er os retratos de altos dignitários e parentela.

Descoberta recente na Europa, a fotografia não era, nos primeiros anos, prática gene ralizada de amadores em cenários de ar livre; era exercício de estúdio e laboratório d e alguns poucos especialistas ou artistas iniciados nos seus segredos e mistérios. Com toda a probabilidade, se não a noticia da sua existência, ao menos o seu exercício prático, n ão tinha ainda chegado ao longínquo continente chinês.

Assim, não sendo oficialmente um "repórter" mas um fotógrafo amador "muito adiant ado para o seu tempo", Jules Itier sagrou-se o pioneiro repórter fotográfico, tendo ex ecutado as primeiras fotos não apenas de Macau e Cantão, mas rigorosamente as primeiras f otografias da China.

Até contestação provada, as primeiras fotos na China e da China foram realizadas em Macau em 1844, por um francês chamado Jules Itier.

Uma contestação "avant la lettre" destefacto foi publicada em Cantão (28-08-1979) no Boletim da Associação dos Fotógrafos de Cantão (Kuantong Suo Yang Tou Xun ).

Aí se reivindica para o jovem físico chinês Cao Pak Kei (1819-1869) a qualidade de "pioneiro da ciência fotográfica da China quando os estrangeiros estavam ainda em pe squisa da ciência fotográfica".

Nascido numa aldeia do Distrito de Namói, a poucos quilómetros de Cantão, o jovem c ientista (matemático, astrónomo, físico) teria já incluído no seu primeiro livro, es crito aos dezasseis anos (1835), um capítulo com aproximações teóricas ao princípio e técnica da câmara escura e da fotografia.

Segundo aquela publicação, Cao Pak Kei ter-se-ia inspirado em várias, antiqu íssimas, referências do secular património técnico-científico chinês; mais especi ficamente, no tratado Muojing do cientista Mo Tse ou Muozi, notabilizado há cerca de dois mil anos pelos seus inventos de maquinaria e engenhos de guerra (catapultas, torres de assalto, etc.). Já nessa obra Mo Tse se referia ao fenómeno das imagens invertidas projectadas através de um orifício e estabelecendo a relação entre a distância e o tamanho de imagens.

Na Dinastia Song, na enciclopédia Mong Si Pi Tang, surge uma referência ao mesmo fenómeno mas por reflexão das imagens através de um cristal (lente).

Segundo o Kuantong Suo Yang Xun, Cao Pak Kei, em 1835, "inventou o princípio fotográfico antes da descoberta da fotografia pelo alemão Lui Dakar em 1839"; e,"segundo. r egisto relativo, em 1844, Cao Pak Kei fez a primeira máquina fotográfica, tendo a primeira máquina estrangeira chegado à China em 1846, o que mostra que o invento de Cao é anterior à chegada da máquina fotográfica estrangeira a Cantão".

Segundo, ainda, a mesma publicação, alguns investigadores em missão de pesquisa, em casa do bisneto do cientista, encontraram três fotografias (uma delas um auto-retrato) fixad as em chapa de vidro, não chegando a apurar que sensi-bilizadores e reveladores foram por ele utilizados, à excepção do processo de fixação pelo mercúrio. Também não indicam datas de realização dessas primeiras fotografias por Cao Pak Kei.

Independentemente da correcção de erros objectivos, opomos a tudo isto algumas consid erações, dúvidas e os bastantes argumentos de rebatimento.

Nem Louis-Jacques Daguerre é alemão, nem a primeira máquina fotográfica chegou a Cantão em 1846, porque veio nas bagagens do Sr. Jules Itier, que chegou a Macau em Outubro de 1844.

E é preciso distinguir construção da máquina fotográfica da conquista da fo to-grafia, co-meçando por distinguir os contributos da Física dos processos da Química.

Os contributos físicos da câmara escura e da óptica há muito que tinham sido obse rvados e aperfeiçoados no Ocidente; a observação empírica do princípio da câmara escura, perde-se nos tempos, e é seguramente anterior a Aristóteles (n. 384 A. C.) que pela primeira vez descreve a projecção de uma imagem invertida, numa sala obscurecida para onde s e deixa entrar um feixe de luz exterior através de um orifício do diâmetro de um lápis. É presumível que o homem das cavernas tenha alguma vez observado este mesmo fenómeno. Le onardo da Vinci, em 1490, estudou as possibilidades da câmara escura.

Sabe-se como o uso prático da câmara escura foi introduzido pelos pintores italianos da Renascença, auxiliar interessante do delineamento de esboços na tela e da perspectiva.

A câmara oscura teve logo de seguida particular projecção nas gravuras e pintur as dos vene-zianos Canaletto e Francesco Guardi, grandes "cenógrafos" dos caprichos e vedu te da eterna Veneza.

John Thompson, 1868. Cabeleireira de Ning-po, com o cabelo apanhado ao modo tradicional Trata-se de uma profissional, igualmenteencarregada da confecção de perucas. In "Il-lu strations of China and It's People", Samp-son Low, Marston, Low and Searle, London,1873.

É longa a sequência dos aperfeiçoamentos da câmara escura. Um dos primeiros, fun damental, foi a adaptação da lente numa das faces de caixa. Já referida por Girolam o Cardano em 1550, a lente foi originalmente descoberta para corrigir defeitos da visão. Lente, do latim legere (ler) é o que lê ou pode ler, associando-se a sua primitiva forma biconvexa, por semelhança, às lentilhas.

Sabe-se do enorme impacto causado pela chegada das novidades culturais, científicas e tec-nológicas do Ocidente a Pequim, por via jesuítica e macaense, no Século XVI.

Segundo testemunhos chineses, entre tantas, a que mais geralmente terá impressionado fora m os óculos, conhecendo-se até uma curiosa poesia alusiva, dos fins da Dinastia Ming:

"Estranho objecto do Ocidente

De novo torna a vista clara.

Embora ensombrando os olhos

Lança-lhes mais luz para dentro".

Outro, foi o diafragma, atribuído a Daniele Barbero (c. de 1530). Depois, foi introduzid o o espelho a 45o (Johan Sturm, 1676) que permitia reflectir a imagem direita, e encaixes extensíveis para aumentar a longitude focal. O monje Johann Zahn, logo de seguida, substituiu o papel engordurado por um vidro opalino e aplicou duas lentes telescópicas (uma convexa, outra côncava) de diferentes campos focais para obtenção de imagens ampliadas.

Pelos homens da física (e apenas referimos alguns passos evolutivos), a câmara já estava sufi cientemente aperfeiçoada para a necessária captação das imagens. Faltava descobrir o processo de as fixar; a aspiração de fazer com que a imagem ficasse impressa numa superfície por acção da própria luz era, desde agora, tarefa dos químicos. Estava-se em princípios do século XIX e já se tinha verificado a capacidade da luz de alterar as propriedades cromáticas de certas substâncias.

Página anterior:

John Thompson, 1868. Testando dólares. Trata-se de uma operação conduzida pelos te soureiros das firmas e pelo seu pessoal de confiança, no sentido de verificar a autenticidade da moeda. Os chineses eram conhecidos e apreciados, mesmo pelos comerciantes europeus, pela sua habilidade em distinguir a moeda falsa da verdadeira. In "Illustrations of China and It's Peo ple", Sampson Low, Marston, Low and Searle, London, 1873.

Em 1727, o anatomista alemão Johann Shul-ze, quando procurava preparar fósforo, viu com espanto que o composto, deixado perto da janela, adquirira a cor púrpura. Tinha feito um precipitado de cal em ácido nítrico e, por eliminação, encontrou prata no ácido, deduzindo que os sais de prata eram obscurecidos pela luz intensa. Seguindo estas pistas, Jean Hellot, em 1737, fez aplicações de nitrato de prata sobre papel. Quarenta anos depois, o químico suíço Carl Scheele experimentou o cloreto de prata, descobrindo a sua particular sensibilidade à luz violeta e a sua insolubilidade no amoníaco, o princípio de um fixador.

A primeira tentativa experimental de fixar uma imagem pela acção da luz foi feita por Thomas Wedgwood e descrita por Humphrey Davy em 1802. Wedgwood, filho do grande ceramista inglês Josiah, estava familiarizado com a prática da câmara escura na gravação de desenhos e adornos nas cerâmicas e com os efeitos do calor e da luz nos compostos químicos.

Mas nem ele - utilizando nitrato de prata sobre papel ou couro branco para obter silhuetas de folhas e asas de insectos - nem o seu seguidor Sir Davy lograram os objectivos. Conseguiram impressionar por acção da luz, mas a ulterior acção da luz neutralizava os resultados, por não encontrarem forma de insensibilizar a solução.

Quem, afinal, obteve a primeira fotografia foi o francês Joseph Nicéphore Niépce. Niépce começou por explorar as possibilidades de uma substância chamada betume da Judeia, até aí utilizada em litografia, sobre placas de cristal. Essas possibilidades eram que o betume branqueava e endurecia à exposição solar, permanecendo solúveis as zonas prot egidas, o que permitia eliminá--las. Estas zonas eram então dissolvidas com óleo de lav anda e terebentina.

Em 1827, utilizando o betume da Judeia e os compostos anteriores numa placa de peltre (es tanho e chumbo), expô-la numa câmara provida de um prisma para corrigir a inversão da imagem. Focou uma vista da janela de sua casa em Gras (Chalon-sur-Saone), prolongou a expo sição durante oito horas, e obteve a primeira fotografia do mundo. No seu intento de aper feiçoar a fotografia, Niépce inventou o processo de fotogravação a que chamou hel iografia (escrita com o sol).

Associado desde 1829 a Niépce para aperfeiçoar a heliografia, Luís Daguerre concentr ou os seus esforços na obtenção de um fixador eficaz e duradouro. Depois de vários anos de busca, e durante uma experiência em que deixara uma placa exposta junto do seu armário d e arrumação de produtos químicos, verificou com surpresa, alguns dias depois, que se re velara uma imagem. Descobriu Daguerre que o efeito novo se devia aos vapores de mercúrio ema nados de um termómetro partido.

Assim se completou pela primeira vez o processo da técnica fotográfica, no cúmulo de séculos de investigação, a que o inventor chamou daguer-reótipo.

A substância sensível à luz era o iodeto de prata, obtido numa chapa de prata exposta a va pores de iodo, que era depois revelada por vapores de mercúrio e fixada pelo hipossulfito de sódio.

Não conhecendo os antecedentes científicos, sobretudo a tradição química, que o contributo de Cao Pak Kei pode ter culminado e resultado na invenção chinesa da fot ografia, parece improvável que em tão curto e solitário período individual de invest igação o jovem cientista tenha chegado às mesmas conclusões e, sobre isto, ao alcance d e uma descoberta (o mercúrio) feita por Daguerre por mero acaso, como tantas vezes aconteceu na longa história da Ciência.

Aperfeiçoar a câmara escura e construir uma máquina que permita a captação das imagens é uma coisa, obter os processos de impressão e fi-xação química das imagens é outra, muito diferente.

Sem retirar os méritos justamente atribuíveis ao cientista cantonense, os factos são estes fazendo fé nos registos invocados: há notícia de uma máquina fotográfica inven tada em 1844 na China, perto de Cantão, e há os documentos de uma reportagem fotográfica realizada no mesmoano em Macau e Cantão, pelo francês Jules Itier.

Que a fotografia não era conhecida dentro da China deduz-se das reacções da população narradas por JohnThomson, em 1868: algumas vezes o fotógrafo teve que fugir enquanto fotografava, acossado pelos impulsos supersticiosos e sob os projécteis da população e nfurecida.

E se isto não colhe muito (em toda a parte se assistiu à chegada tardia das modernidad es tecnológicas às zonas mais afastadas dos grandes centros culturais e muitas vezes à respectiva recepção desconfiada ou supersticiosa), o mesmo não poderá dizer-se noque toca aos relatos de Jules Itier no seu Diário. O seu invento foi acolhido com a surpres a e o sensacionalismo das grandes inovações inéditas, não apenas pela população, mas sobretudo pelas mais altas hierarquias de Cantão. O que não acontecia, evidentemente, se os dignitários cantonenses tivessem antes o conhecimento da fotografia e sido fotografados antes da chegada da delegação francesa: "Dejá vu, messieur...".

Assim, e até contestação probatória, as primeiras fotografias da China e na China foram feitas em Macau, escala que permitiu ao Império do Meio (Cantão) ver a primeira máquina fotográfica a funcionar. •

(Ver legendas página 77)

Legendas das fotografias das páginas anteriores.

1 Família chinesa abastada. Fotogravura extraída de "New China and Old", de Archdeacon Moule; Seeley and Co. Limited, Lon-don, 1891.

2 Fotógrafo desconhecido, 1860. Rua de Pequim. In "The Face of China as Seen by Photographers and Travelers"- 1860-1912", L. Carrington Goodrich - Nigel Cameron; Philadelphia Museum of Art, 1978.

3 Interior da casa de um mandarim. Fotogravura extraída de "NewChina and Old", de Archdeacon Moule; Seeley and Co. Limited, London, 1891.

4 Thomas Childe, 1875. Ruínas de Yuan-ming, velho Palácio de Verão, a noroeste de Pequim. Estes edifícios de estilo europeu foram concebidos no século XVIII pelo jesuíta Giuseppe Casti-glione. Em 1860, sob as ordens de Lord Elgin, as forças britânicas e francesas queimaram o palácio, em retaliação pelos maus tratos infligidos aos prisioneiros de guerra. In "The Face of China as Seen by Photographers and Travelers- 1860-1912", L. Carring-ton Goodrich-Nigel Cameron; Philadelphia Museum of Art, 1978.

5 M. A. Baptista (7): padres e leigos em oração, na sepultura de um cristão, Macau, c. de 1860. Assim vem legendada esta foto no ál\-bum "The face of China, as seen by Photographers and Travelers, 1860-1912".

Esta foto oferece particular interesse e campo de especulação, que não vamos agora aprofundar. Sublinhamos o facto de vir as\-sinada M. A. Baptista, o que em princípio não pode deixar de ser indentificação de Marciano António Baptista, artista macaense, pintor e cenógrafo (1826-1896).

A estela funerária e os tipos humanos, inculcam um cenário de Macau do século passado. A data atribuída (c. de 1860) coloca-riam Marciano Baptista, com Felix Beato, no lugar dos pioneiros fotógrafos da China.

Mas acontece que Marciano Baptista, tendo-se transferido com a família de Macau para Hong Kong na década de 40, parece que só uma vez tornou a Macau, provavelmente c. de 1875 como indica a legenda do seu desenho d6 Farol da Guia. De qualquer for\-ma, esta foto vale como documento biográfico interessante e comprovativo de que Marciano Baptista conheceu cedo e prati-cou a arre da fotografia, colhendo elementos fotográficos na China em que depois se apoiava para os seus quadros de paisa\-gens (vide, à frente neste número, artigo de César Nuñez).

6 Fotógrafo desconhecido, 1865. Pagode em Ningpo, um dos cinco portos abertos ao Ocidente na sequência do Tratado de Nanking (1842). In "The Face of China as Seen hy Photographers and Tra-velers - 1860-1912", L Carrington Goodrich-Nigel Cameron; Philadelphia Museum of Art, 1978.

7 Barco puxado por búfalos. Fotogravura extraída de "New China and Old", de Archdeacon Moule; Seeley and Co. Limited, Lon-don, 1891.

8 Camponeses do fim do século XIX, com guarda-chuva e fatos tra\-dicionais.

Fotogravura extraída de "New China and Old", de Archdeacon Moule; Seeley and Co. Limited, London, 1891.

9 Fotógrafo desconhecido, 1865. "Ha-ta-men Street", vista da Porta de Ha-ta (ou Ch 'ung-wen), no lado oriental da Muralha do Sul da cidade tártara, em Pequim. Esta rua í a da cidade chinesa à cidade tártara, onde estavam localizados os palácios dos rínci\-pes manchús mais importantes e a maior parte dos edifícios go\-vernamentais. In "The Face of China as Seen by Photographers and Travelers - 1860-1912", L. Carrington Goodrich -Nigel Ca-meron; Philadelphia Museum of Art, 1978.

10 John Thompson, 1868. Profissões de rua em Kiukiang, Kiang. Da esquerda para a dire ita: vendedor de sopa, escrivão público lendo a sorte a uma mulher, barbeiro e torneiro de ma deira com o seu cliente. In "Illustrations of China and It's People", Samp-son Low, Marston, Low and Searle, London, 1873..

11 Grupo de homens e crianças na Ponte da Prosperidade Eterna, durante uma pregação católica. Fotogravura extraída de "New China and Old", de Archdeacon Moule; Seeley and Co. Li mited, London, 1891.

12 Felice. A. Beato, 1860. Vista de templo confuciano tirada daPorta de An-ting, em Pequim. In "The Face of China as Seen byPhotographers and Travelers - 1860-1912", L. Carrington Goo-drich-Nigel Cameron; Philadelphia Museum of Art, 1978.

13 John Thompson, 1868. Senhora manchú com penteado de mu\-lher casada, que difere bastante dos restantes penteados das mu\-lheres chinesas. In "Illustrations of China and It's People", Sampson Low, Marston, Low and Searle, London, 1873.

14 Mulas de carga no norte da China. Fotogravura extraída de "NewChina and Old", de Archdeacon Moule; Seeley and (2o. Limited, London, 1891.

desde a p. 62
até a p.