Linguística

EUGÉNIO EM MACAU COM PALAVRAS AMO

Muito do universo poético de Eugénio de Andrade está nitidamente contagiado por imagens e ritmos do Oriente. Existe, aliás, na poesia portuguesa, sobretudo dos nossos "grandes", uma Ásia insinuante, horizonte último da viagem, a Ásia mítica dos prodígios e bizarrias, onde permanecem intocáveis as origens, o continente brando e cruel.

Eugénio de Andrade veio conhecer a Ásia real. Pela porta utilizada secularmente pelos portugueses: Macau. Passeou pela cidade, aproveitou para visitar Cantão e deu dois reci tais de poesia. O pretexto para a sua vinda foi uma exposição de retratos do poeta, desenhados ou pintados por amigos, alguns dos consagrados das artes plásticas contemporâneas. Uma estreia em Macau de um evento que veio a ter um apreciável sucesso em Portugal.

Simultaneamente, o Instituto Cultural de Macau, que promoveu a deslocação do poeta, editou a sua primeira tradução em chinês, a antologia "Com Palavras Amo", um trabalho de Yao Jingming.

Mário Botas, tinta da china 1980

Para o tradutor, Eugénio de Andrade "dá--nos a respirar o cheiro do ser e assim nos desperta para o amor do mundo". Yao Jingming, que vive em Portugal, fala de um encontro de universos, orientados para o ser que se consome "em luminosas revelações e na eterna reconciliação". Assim, ele explica o seu interesse por Eugénio de Andrade e, de certo modo, a facilidade do encontro. Por exemplo, a rapidez com que a sua sensibilidade se apropriou dos estímulos desta terra e os passou a escrita, são testemunho dessa remota orientalidade subjacente de forma difusa por toda a poética portuguesa e, em particular, na produção do poeta de "As Aves".

Júlio Pomar, tinta da China,1951

Não é tanto uma questão de temas ou de sujeitos, de simbolismos ou paisagens. É apró-pria respiração dos poemas, as atmosferas visuais, uma proximidade heraclitiana, por vezes triste, que situa o poeta português muito perto, contagiado por essa Ásia sonhada das profecias, transmitida ao Ocidente pelas suas próprias fontes. Eugénio disse ter sentido uma grande comoção quando se soube traduzido em chinês.

Ainda que se admita, de uma maneira geral e sobretudo em poesia, o "traduttore, tra-dittore", é inegável a importância destas traduções que despertam o interesse de um povo pelas produções artísticas de um outro. Mesmo que esteja longe dos poemas originais, como também o inevitavelmente estão as traduções dos poetas chineses na nossa língua, possui o enorme mérito de permitir, pelos menos um primeiro acesso, um primeiro contacto, entre duas poesias tão distantes e o mútuo conheci mento de personalidades e obras que ultrapassam de longe uma mera dimensão nacional ou cultural. Esta área abre perspectivas interessantes a uma antropologia da escrita ou, dito de uma forma algo primária, das formas de sentir o mundo.

Carlos Carneiro, tinta da China e aguada,1946

Durante a sua visita a Macau, Eugénio de Andrade por duas vezes encontrou os seus apreciadores locais para lhes dizer poesia. A primeira aconteceu no Salão Nobre do Leal Senado. Perante uma assistência curiosa, sob os retratos das personalidades da história de Maau, o poeta usou a voz para dar corpo à sua escrita, declamou poemas vários da sua extensa obra.-Dois dias depois, na galeria da Livraria Portuguesa, prestou homenagem a Camilo Pes-sanha. Foi um momento único em que um dos grandes poetas portugueses vivos fez reviver os versos de um grande poeta ausente, na terra que o acolheu no Oriente.

Augusto Gomes, tinta da China,1953

No mesmo espaço, estava já patente ao público uma exposição inédita de retratos de Eugénio de Andrade, executados por pintores, gravadores e escultores, geralmente seus amigos e admiradores. Carlos Carneiro, Júlio Pomar, Martins Correia, José Rodrigues, Mário Botas, Lagoa Henriques, Júlio Resende, entre outros, são alguns dos artistas plásticos que re-trataram o poeta ao longo da sua vida. Nestaexposição estava, talvez mais patente do que nunca devido ao facto de todas as obras se debruçarem sobre o mesmo objecto, as diferenças conceptuais e estéticas de várias individualidades das artes portuguesas deste século.

É interessante a relação entre os pintores e os poetas, e verificar como, ao longo das épocas, os segundos têm servido de modelo e fonte de inspiração aos primeiros. Os exemplos vêm do primeiro Renascimento quando Giotto pintava o seu amigo Dante Alghieri, da pintura portuguesa com os inúmeros retratos de Fernando Pessoa, de Camões, de Antero, entre muitos outros. Numa época em que a fotografia dava os primeiros passos o fotógrafo pioneiro francês Nadar fez questão de fixar para sempre o retrato do seu amigo e grande poeta Charles Baudelaire.

Há talvez algo de peculiar nas fisionomias dos poetas, real ou ímaginário, certos traços, certas rugas de expressão, que os pintores têm interesse em apanhar. Talvez disso fazer a sua metáfora de uma obra ou de um destino.

Martins Correia, carvão epastel,1959.

Neste caso, cada artista exprimiu de forma bem diferenciada a sua visão de Eugénio de Andrade. Lápis, tinha da china, guache, acrílico, barro cozido, todos estes materiais serviram de suporte às obras expostas o que permite facilmente imaginar a sua diversidade. O poeta falou dos retratos com simplicidade. Atribui-os à ocasião, a momentos não premeditados, a uma vontade súbita. Acompanhou algumas pessoas e os jornalistas presentes numa viagem a cada um deles, a memórias antigas de situações, a momentos da vida desses pintores e à amizade que mutuamente se dedicam. Mais tarde, escreveu-nos do Porto a agradecer o bom acolhimento e a relatar o sucesso desta mesma exposição em Portugal. Enviou-nos também alguns textos, óbvios testemunhos do interesse e do fascínio que estas terras e a sua diferença, lhe provocam. No entanto, a notória consonância destes versos com a sua obra e o seu percurso falam por si da sua subtil ligação ao Oriente.

OFÍCIODE PACIÊNCIA

Parece que se chama Baía das Pérolas, mas não tenho a certeza. Certo, certo, era tê-la todas as manhãs diante de mim, ao pequeno almoço. À esquerda, os barcos a caminho de Hong Kong; à direita, a longuíssima ponte desenhada a traço fino, ligando a cidade à ilha de Taipa. Não sei dizer porquê, mas a ponte era da família das garças. Tinha a mesma elegância, a mesma cor de cinza clara, era isso. Antes da ponte havia edifícios altos, enfaticamente chamados arranha-céus; para lá da ponte, a mesma coisa. A cidade - estou a falar de Macau- vista de longe tem um perfil enganador. Macau é uma cidade com as tripas de fora, mas isso não se vê do jetfoil que te traz de Hong Kong; nem quando te aproximas da fronteira, vindo da China. Mas é breve o engano, o carácter da cidade não tarda a revelar-se: os seus rumores, os seus cheiros, a pulsação do seu olhar, o suor do seu corpo vêm ao teu encontro ao dobrar da primeira esquina. Porque, na verdade, estamos no Oriente- estes homens, estas mulheres têm na rua a sua casa: aqui trabalham e comem, aqui discutem e riem, aqui fazem dos seus dias um longo ofício de paciência. São muito pobres, mas não se sentem humilhados na sua pobreza. Talvez saibam que há ricos muito mais pobres do que eles. Porque o que lhes sai das mãos, trabalhado em abundância de espírito - cerâmica, palha, bambu, comida, caligrafia, pintura, papel, poesia, tecido, pedra, música - tudo revela um saber delicado, subtil, superior.

I1ustração de Carlos Marreiros

Vais por estas ruas, por estes becos (com nomes que já não encontras noutras cidades: Rua dos Ervanários, Beco dos Marinheiros, Praça das Seis Casas, Travessa da Paixão, Avenida da Amizade, Travessa de Sancho Pança), o coração em revolta, como diz o poeta; mas sabe-se lá se com grande razão. Estás cansado. Entras num jardim, há velhos por todo o lado, a jogar, a conversar. Lá para o fundo, uma mulher faz exercícios corporais, ou espirituais, ou ambas as coisas. Mais longe ainda, uma rapariga e uma velha parecem contemplar do muro a cidade, ou o mar. A velha tem os olhos cravados na distância, a rapariga leva à boca uma flauta - um fio de música sobe, sobe no ar como estrela de papel. Não tardará que anoiteça.

Macau, Outubro de 1990

I1ustração de Carlos Marreiros

I1ustração de Carlos Marreiros

TRÊS APONTAMENTOS DE VIAGEM

Macau, Outubro de 1990

Jardim de Lou Lim Ieoc

Deste jardim o que levo comigo

é um ramo de bambu para servir

de espelho ao resto dos meus dias.

Balança

No prato da balança um verso basta

para pesar no outro a minha vida

Templo da Barra

O verde dos bambus mais altos é azul

ou então é o céu que pousa nos seus ramos

I1ustração de Carlos Marreiros

AS PEDRAS

É menos frequente do que gostar de cavalos, mas há quem goste de pedras. Não é raro verem--se na parte mais nobre da casa, sobre a mesinha baixa da sala, aquecidas pelo vermelhão e o negro das lacas- ganham assento em taças de jade escuro, os pequenos seixos de pele limpa e transparente. Mas não faltam em jardins públicos, onde os bambus sobem altos e azuis, e os salgueiros, imitando os pintores da época Tang, se inclinam com suprema elegância para as águas invisíveis, tão bastos eram os nenúfares. Erguendo a massa rotunda, como rolados da montanha por lendários dragões em fúria, ou delicadamente pousadas nos canteiros como torso desvelado, elas aí estavam, as pedras, desafiando o tempo e a sua poeira. Sem nenhum toque humano, ou apenas trabalhadas por mão inábil mas amante, pareciam postas ali mais para dançar com o vento do que para serem contempladas. Só me surpreendeu não as ter visto nos templos, no regaço dos budas de carnes opulentas e doiradas - porque aí seria o seu lugar próprio, ardendo na obscuridade do silêncio. Ilustração de Carlos Marreiros

Macau, Outubro de 1990

I1ustração de Carlos Marreiros

desde a p. 111
até a p.