Linguística

LI BAI
APONTAMENTOS NÓMADAS

Carlos Morais José*

"(...) Não faz parte dos animais domésticos, (...) o seu aspecto não se presta a classificações. Não é como um cavalo ou um boi, como um cão ou um porco, como um lobo ou um cervo. Nestas condições, mesmo se estivéssemos perante um unicór-nio, seria difícil saber se ele o é realmente. Os animais com cornos, sabemos que são bois; os animais com crina, sabemos que são cavalos. O cão e o porco, o lobo e o cer-vo, sabemos quem são. Só o unicórnio não podemos reconhecer."

(Prosa chinesa do Sec. IX, in Jorge Luís Borges, "Manual de Zoologia Fantástica").

Existem seres assim, dificilmente classificá-veis. Pouco importa se têm uma existência mate-rial ou foram elaborados pela imaginação dos homens. Uma ou outra situação implica, pratica-mente, um mesmo estatuto de realidade. Rara-mente fixam residência, movem-se sem cessar, aparecem onde menos os esperam: causam pâni-co, espanto, admiração, arrastam os homens ao longo de toda a escala das paixões.

Li Bai não é um caso isolado na literatura da dinastia Tang. A decadência dos detentores do poder contrastava com a qualidade da produção poética, basta lembrar igualmente Bai Juyi ou Du Fu. No entanto, gostaríamos de pensar o "caso Li Bai" tendo em consideração a sua diferença, não as semelhanças ou as filiações históricas, mas a sua especificidade. É provável que o poeta assim seja incluído num outro grupo, não redutível à literatura de uma época ou de uma língua. Talvez, por tanto, ele pertença à literatura universal.

TEORICUS

Certos autores preferem sonhar a poesia de forma radical: entendem-na, não somente como uma questão de escrita mas, sobretudo, como o produto de um olhar exquis e uma forma superior de sensibilidade, aliada a uma invulgar acuidade discursiva. O acto estético, isto é, "a iminência de uma revelação que não se produz"(1), é forjado nas experiências de subjectividades anómalas.

Edgar Allan Poe considera, num texto ainda hoje talvez excessivamente "moderno" (2), que o valor de um poema é directamente proporcional ao grau de excitação produzido no leitor. Este au-mento súbito de energia é conseguido "by eleva-ting the soul". O poeta deverá agarrar o leitor através da rede de sons e sentidos do poema, ar-rastá-lo, operando uma deslocação, por meio de um aumento de energia, para um espaço onde pensamento, dor e prazer se confundem e um corpo em chamas ilumina lugares ignotos e temí-veis.

Deparamos, é claro, com a ideia de intensidade. Uma ideia traduzível em quantidades, em números, surpreendemente relacionável com cer-tas concepções de poesia. Freud fala do princípio do prazer em termos quantitativos, antes de o fi-xar em arquétipos (3). Contudo, estabelece um fim para essa progressiva excitação: a satisfação e consequente queda do valor quantitativo da in-tensidade. No nosso caso, interessa-nos um pres-suposto diverso: o objectivo não seria a satisfa-ção, o fim da tensão, mas conservar essa intensi-dade (almejar mesmo a sua exponencialização ad infínitum).

Para além da existência de um nomadismo geográfico, que se define a partir de um movimento em dadas coordenadas espaciais, devemos considerar um nomadismo do espírito, o que levava François Chatelet a propor uma geografia das ideias no lugar de uma diacronia do pensamento. Nesse espaço, onde a história das ideias é concebida ciclicamente (ainda que cada ciclo seja produtor de diferença), o objectivo é preterir uma perspectiva que dá conta das sucessões a uma análise das vizinhanças, das similitudes e do contágio.

Penso agora numa linha que demarca os li-mites da cidade, da academia, da família, do insti-tucional, os espacos baços da sedentarização. Para lá dessa marca ficam a floresta, o deserto, as novas cartografias do espírito. Essa linha conota os diversos movimentos do ser além das propostas, dos limites e das regras das culturas; se fosse um ecrã, nele surgiriam expostos os comporta-mentos e as representações mais intensas, os se-gredos, sempre derivados de um movimento e da conquista de uma alteridade.

Neste ponto, estamos, inevitavelmente, in-teressados em admitir a existência de seres, ou modalidades de um ser, que habitam, ainda que por momentos, para lá dessa linha. Tal como as tribos nómadas habitavam as margens dos gran-des impérios e obrigavam os déspotas à constru-ção dos limes, das grandes muralhas.

Li Bai, o poeta chinês do século VIII, recen-temente traduzido e editado em português (4), foi um desses nómadas.

"Calcorreei todos os caminhos

e nenhum lugar me retém.

Parto de novo, sem rumo certo,

entre as folhas que caem sobre a terra" (5).

Inveterado viajante, revelou-se um persona-gem que dificilmente se entendia com os manei-rismos da vida na Corte e as vantagens sociais da sedentarização. Dessa errância, desse movi-mento incessante de terra em terra e de sensação em sensação, pretendemos discernir, ainda de forma algo primária e insuficiente, algumas con-sequências e indiciar pistas a explorar (ou aban-donar).

PERSONAS

Existe um espaço nómada, exterior às cida-des ainda que no interior dos impérios. Não se trata, contudo, de um território mas de um itine-rário. De uma deslocação constante entre diver-sos pontos, pré-estabelecidos ou não. Tem as suas leis, procedimentos próprios e habitantes. Em ri-gor, não se deve considerar um espaço habitado mas frequentado. Cada itinerário tem os seus fre-quentadores, partilham as experiências, quer seja no deserto, na planície ou na montanha. Por ve-zes temem-se e defrontam-se como inimigos irre-dutíveis. Os itinerários cruzam-se, entrelaçam-se, formam uma rede que existe por si, capaz de ga-rantir uma certa exterioridade relativamente aos impérios.

Podemos mesmo considerar a existência de pontos de encontro, os lugares mais frequentados. Para já, pretendemos um primeiro contacto com as personagens do mundo nómada de Li Bai.

Os mestres

Impossível ignorar a vertente e a vivência tauísta do pensamento de Li Bai. A vagabunda-gem faz parte intrínseca dessa experiência e, nessa viagem, é obrigatória a paragem junto aos grandes mestres que vivem solitários nas monta-nhas, em contacto pleno com a. natureza. São monges, eremitas, homens retirados do mundo dos outros homens, em processo de aprendizado constante.

Segundo Claude Larre (6), existem três vias para tentar compreender o tauísmo: a dos xama-nes, a dos principais textos, a da prática pessoal. Neste contexto, interessa-nos, particularmente, a primeira. O xamanismo encontra-se difundido em todo o mundo e há quem defenda tratar-se da primeira forma coerente de estabelecer uma rela-ção com as potências sagradas que regem o mundo e favorecem ou atormentam os homens.

Os xamanes, quer sejam de uma tribo ama-zónica, siberiana, australiana ou africana, pos-suem caraceterísticas invulgares que os distin-guem do resto da tribo. Existe uma certa propen-são para o xamanismo de parte de alguns indiví-duos, variável consoante os contextos: pode ser um defeito físico radical, a marca do diabo, como se costumava dizer na Idade Média (7), um com-portamento marginal como a homossexualidade em certas tribos da Amazónia (8) e da América do Norte (9), a loucura entre os Tunguses da Sibéria (10), ou simplesmente uma vocação natural pelo conhecimento e pela medicina.

Todos eles habitam fora do espaço da al-deia, onde vigoram as regras da cultura, em gru-tas ou tendas, mas nunca ninguém sabe precisa-mente onde eles estão; preferem o contacto com os animais, os deuses e os mortos. Dedicam-se a experiências extáticas, procuram o extâse, o transe, que lhes permita uma maior e mais profunda relação com o invisível. De acordo com as defini-ções clássicas, xamane é o mago, ou feiticeiro, que viaja, que percorre o mundo dos espíritos com a ajuda do transe provocado pela música e pela dança, pelas drogas, jejuns, meditação ou mesmo pelo adorcismo.

Esta gravura (e as seguintes) são pinturas de Liu Dan Zai que ilustram poemas famosos de Li Bai. "Adeus à montanha da Mãe Celestial, após uma viagem em sonho" é uma das obras-primas do poeta, representado sobre um veado branco, uma das montadas dos imortais do tauísmo.

O monge tauísta, isolado na montanha, ini-migo natural dos confucionistas e dos seus rituais de Estado, apresenta algumas destas característi-cas. Marcel Granet refere que "o pensamento dos primeiros autores tauístas não pode ser explicado sem ter em conta a prática do extase" (11). Este autor vai mesmo ao ponto de estabelecer uma re-lação directa entre tauísmo e xamanismo: "o ex-tâse descrito pelos pensadores tauístas (...) em nada difere do transe e dos procedimentos mági- cos graças aos quais os feiticeiros chineses, her-deiros de um antigo xamanismo, acresciam a sua santidade, aumentavam o seu poder e afinavam a sua substância"(12).

Os mestres do tauísmo dissertam longa-mente sobre a arte da longa vida. Trata-se de uma ideia, ainda hoje presente entre os chineses, que mergulha nas brumas do tempo e encontra a sua origem nos primórdios da religião na China. Si-gnificativamente, os ritos da longa vida surgem enquadrados pelas festas da longa noite. O tauís-mo, antes de ser uma especulação filosófica sobre o mundo, enquadra as suas práticas mais antigas em costumes religiosos que nunca foram sistema-ticamente organizados, mas que existem um pouco por toda a parte e são considerados como uma das primeiras formas de comunicação com o sagrado.

Estes monges, voluntariamente desterrados nos ermos e nas montanhas, são um dos pontos de paragem dos percursos de Li Bai. O poeta refere--se à tristeza de procurar um velho mestre e não o encontrar:

    "Subo a vereda, entro no vale, 
    chego ao velho mosteiro. 
    A alameda coberta de musgo, 
    pegadas dos pássaros em frente do portão. 
    Ninguém na cela do monge, 
    uma escova de cabelo coberta de pó. 
    Um longo suspiro, quero partir, 
    mas a névoa voando entre os montes, 
    uma chuva breve como flores caindo do céu
    e o guincho dos macacos, lá longe. 
    Desvaneceram-se os cuidados do mundo, 
    é minha a beleza em meu redor" (13). 

À melancolia sobrevem o deslumbramento, com origem na comunhão com a natureza. No entanto, noutro poema Li Bai deixa entrever um sentimento diverso:

"(...)

Ninguém sabe onde encontrar o velho mestre.

Triste, procuro apoio em dois ou três pinheiros" (14).

Sob a melancolia, surge o pressentimento de uma tristeza irreparável, relacionada com a dis-tância entre o ego e o mundo, apesar da eterna de-manda que, desta forma, adquire um carácter eminentemente trágico. Em certos poemas de Li Bai a figura do monge adquire as feições de um deus silencioso e teimosamente invisível. A sua ausência agrava a solidão do discípulo, é um acréscimo de individualidade, fornece-nos a po-derosa imagem de um homem que, dolorosa-mente só, encara a natureza e os mistérios.

O caçador

Ninguém conhece melhor o sentido da liber-dade do que um nómada. É que não se trata, no seu caso, de imaginar uma terra de leite e mel. Trata-se, isso sim, de habitar o deserto, o espaço por excelência da liberdade. No deserto, os hori-zontes são ilimitados e as fronteiras humanas ver-gam-se ao traçado sublime da natureza. O deserto não tem nada a ver com a beleza. É uma paisagem terrível e absoluta. O sentimento de inferioridade de um ser humano perante este absoluto trans-muta-se na exaltação da consciência e no primado de um ego que se quer à medida dessa grandeza e desse sublime. O nómada não semeia a terra, é um caçador-recolector. A tribo cria e transporta os rebanhos, mas não pratica a agricultura (15), para muitos povos um sintoma de sedentarização.

    "Vive longe, para além das muralhas da cidade. 
     Suas mãos jamais seguraram um livro, 
    sabe apenas caçar, é ágil e valente. 
    Monta um possante cavalo das estepes
    e, no Outono, parte orgulhoso à desfilada, 
    seu chicote dourado roça a neve, estala no ar, 
    ele grita ao falcão e parte à aventura. 
    Seu arco, uma meia lua, jamais falha o alvo, 
    abate dois grous com uma só flecha. 
    Quem o vê circundar o lago, afasta-se receoso, 
    sua reputação inspira temor nos confins do deser-to. 

Para quê envelhecer entre os livros da biblioteca? Os letrados não valem o bravo nómada da planí-cie"(16).

Li Bai assume, neste poema, a separação en-tre os dois mundos. Basta reparar nas oposições estabelecidas ao longo do texto:

-cidade...................................... planície, "longe, para além das muralhas"

-livro................ chicote, arco, falcão, cavalo

-cobardes... ágil, valente, infalível, orgulhoso

-letrados................................... nómadas

A cidade surge como espaço rodeado de mu-ralhas, fechado, circular, voltado para si próprio, como o lugar da repetição quotidiana das regras. Já a planície aparece como um espaço aberto, li-vre, lugar de encontros inesperados entre seres inusuais, portanto, produtor de diferença.

É sem grande dificuldade que podemos atri-buir características femininas ao objecto livro, por oposição aos objectos manuseados pelo nómada: chicote, arco, cavalo. Estes são símbolos clássicos das actividades masculinas fundamen-tais, a caça e a guerra, enquanto o livro é um ob-jecto doméstico, a linguagem domesticada pela escrita, permanece como algo fechado, miste-rioso e sagrado, que é necessário abrir e decifrar Pior ainda: ler um livro não é aprender consigo mesmo, solitário. Lao Tsé é bem claro: "Conhecer o outro é apenas ciência, conhecer-se a si mesmo, é compreender".

Finalmente, todas estas oposições são assu-midas e valorizadas nos dois últimos versos. A fi-gura do letrado é abertamente preterida face ao intrépido nómada. A cobardia do sedentário, a sua dificuldade perante as situações inesperadas, é vista à luz das capacidades de entender a natu-reza e, de certo modo, fazer parte dela, possuir a sua fluidez, capacidade de metamorfose e ener-gia. De outro ponto de vista, podemos falar da inutilidade do artifício, do horror a uma natureza acrescentada e modificada pela civilização, entendida como doença.

Em praticamente todas as tradições, o caça-dor mantém um contacto de tal maneira estreito com a natureza que faz mesmo parte dela, quanto mais não seja através do seu totem, ou seja, do animal que representa o seu clã ou linhagem, e com o qual se identifica.

O território de caça não pertence ao mundo dos homens, é habitado por espíritos e animais fe-rozes, aí não vigoram as regras da cultura. O homem que o frequenta reencontra a liberdade e, neste retorno à natureza, fica mais perto da sua pureza original.

O pescador

Segundo António Graça de Abreu, o pesca-dor é o representante, não apenas na obra de Li Bai, mas em toda a poesia da dinastia Tang, "do desapego pelas coisas terrenas, da sabedoria e da preservação da pureza"(17). É perfeitamente co-nhecida a analogia antiquíssima entre as águas que correm e o fluir do pensamento. Só que estas águas fluidas trazem consigo uma outra simbolo-gia: a do escoar do tempo e da variabilidade dos seres. Os antigos adivinhos estabeleciam os seus presságios através da leitura das folhas secas que deitavam no leito dos ribeiros.

O pensamento flui como as águas do rio, ca-prichoso ou subtil, tímido ou torrencial. Seja lá como for, a figura do pescador difere profunda-mente da do caçador. É um personagem contido, reflexivo, sentado calmamente na margem da vida, um voyeur, por excelência. É a imagem do contemplativo por oposição ao homem de acção. O espaço nómada não é uniforme, nem cíclico, nem repetitivo. Os seus habitantes são tão dife-rentes quão diversas podem ser as qualidades do universo.

Há na espera uma sabedoria antiga e miste-riosa. Certos homens têm o poder de atrair a si o mundo e os acontecimentos, ao invés de persegui--los. A discrição é outro dos seus avatares: "o homem sábio oculta o seu fulgor"(18). O pesca-dor aparece, pois, como símbolo de um sossego e uma quietude que o poeta admira e inveja. Não se trata da modorra dos sentidos sedentarizados, mas de uma calma proporcionada pela reflexão, pela sabedoria e a consciência da vacuidade dos bens terrenos.

Sentado na margem do rio, o pescador ob-serva aságuas e o seu escoar lento e subtil sugere--lhe a reflexão. A água não entra em confronto com nada nem com ninguém. Quando se agita é sempre por influência externa. Segue natural-mente o seu curso, adaptando-se a todos os cami-nhos, desafiando qualquer declive. O pescador é gémeo da água, e também ele um ser aquático, contagiado através de uma espécie de mimetismo universal pelas qualidades das águas.

"Riquezas, honrarias, tudo é efémero.

Tanto esforço, tanta luta e alcançar o quê"? (19).

"Gostaria de ficar sentado nesta pedra, para sempre, serenamente a pescar" (20).

O pescador lança a sua rede e aguarda o ve-redicto. É uma espécie de caçador que, em vez de desafiar as forças da natureza, aprendeu a co-nhecê-las e coexiste num ciclo universal de trocas reguladoras e equilibradas. Por isso, Li Bai, des-lumbrado, escreve:

"(...)

Na margem do rio, um velho pescador.

Eu e ele regressaremos juntos" (21).

POLITICUS

Faceta curiosa de Li Bai: a sua desajeitada vocação política. A tentação do poder não deixou de o atormentar, durante o período em que fre-quentou a corte do imperador Xuanzong. Contu-do, nunca conseguiu um cargo de responsabilidade, correspondente ao de um alto dignitário, ape-sar de ser um favorito e protegido do imperador.

O facto não surpreende se tivermos em conta que a sua acção, ideias e comportamentos pouco tinham a ver com os homens do aparelho. Os burocratas viam com maus olhos a presença do poeta na corte. Como refere. Gil de Carvalho (22), ele é, antes de mais, "um provinciano", um homem nascido nas margens do império, um via-jante que dificilmente respeita os protocolos e as hierarquias. Afinal, como todos os nómadas, ha-bituados à grandeza dos espaços abertos, livres e selvagens, e a observar a vigência da "ordem na-tural", Li Bai despreza a sagrada (artificial) or-dem do palácio imperial: não tem maneiras, é um bárbaro genial.

É difícil criar uma melhor versão das carac-terísticas, reais e imaginárias, do nómada. Li Bai é o homem que vem de fora, nasceu onde o poder do império se dilui, alto e com olhar dominador. Mais: deslumbra o monarca com os seus invulgares dotes poéticos. Logicamente, não podia dei-xar de parecer estranho e ameaçador aos burocra-tas celestes, homens do aparelho habituados ao convívio através de regras bem definidas. Certa-mente avessos à intromissão de elementos pertur-badores.

É a oposição clássica entre o homem de Es-tado, polido e convencional, e o nómada, o pro-vinciano, que traz a rudez do deserto nas manei-ras. Entre o roçagar suave das sedas e das intrigas de corredor e o poder carismático, intuitivo e desbragado. Entre o aparelho de Estado, rígido e se-dentário, e os nómadas, mestres da velocidade e do movimento, ambiciosos e descrentes.

"(...)

Não busco riquezas nem honrarias, viajo pelo mundo, quero apenas força em minha vida"(23).

Li Bai e Du Fu (712-770), outro grande poeta da dinastia Tang. Con-fesso admirador de Confúcio, Du Fu conheceu Li Bai em 744 e dedicou-lhe sempre uma grande amizade. Esta imagem representa um dos raros encontros entre os dois poetas, condimentado pelo vinho e disputas literárias.

O seu comportamento e exageros rapida-mente lhe trazem problemas:

"Calúnias enganaram o meu ilustre soberano.

Intrigas de um ministro astuto afastaram-me dos seus favores"(24).

Afastado da corte, proscrito, acabou por ser agraciado por Xuangzong, um imperador consi-derado protector das letras e das artes. A sua ma-neira de ser fica bem patente no tipo de projecto estratégico que propõe ao imperador. Trata-se de um "plano geral para aumento do poder da dinas-tia", testemunha Li Quanbai (25). Um projecto, certamente utópico, que o imperador se apressou a rejeitar. Provavelmente, Li Bai sugeria uma po-lítica outra, desligada dos interesses imediatos e pragmáticos da casa imperial, uma política vol-tada para a dilatação de um império expansionis-ta. Se pensarmos na história árabe, facilmente nos apercebemos dos resultados de uma existên-cia nómada no interior de um projecto de Estado.

PROFUNDIS

    "Eis-me livre e solitário! 
    Beberei esta noite até cair; 
    Então, sem medo e sem remorsos, 
    Deitar-me-ei sobre a terra" (26). 

Há poucas dúvidas sobre este facto: o álcool não é um simples excitante das faculdades do es-pírito. Bachelard chega mesmo a afirmar que "o álcool é um factor de linguagem. Enriquece o vo-cabulário e liberta a sintaxe"(27).

A reflexão passa muitas vezes pela leitura de um autor à luz das ideias de um outro. Já vimos como podemos inserir o imoderado consumo do álcool em Li Bai como derivado, de certa manei-ra, da origem xamanística do extâse dos tauístas. Não é, porém, um procedimento completamente satisfatório. Experimentemos, por exemplo, in-troduzir a seguinte frase de Ernst Jünger: "Esque-cer qualquer coisa, fugir de qualquer coisa e, ao mesmo tempo, querer ganhar qualquer coisa - 6 entre estes dois pólos que se move o problema da embriaguez"(28).

Em Li Bai podemos ler:

    "(...)
    Uma taça de vinho
    harmoniza a vida e a morte
    e mil coisas difíceis de ordenar. 
    Quando estou bêbado
    ignoro o céu e a terra, 
    trôpego, procuro o leito solitário, 
    esqueço a minha própria existência: 
    este o maior de todos os prazeres"(29). 

A lua parece representar, na poesia de Li Bai, um símbolo cruel da passagem do tempo e da efemeridade dos homens. "Morrem os homens, o natural fluir das águas/mas um dia todos fixaram na Lua o seu olhar".

Destaca-se, imediatamente, um aspecto, um tema inevitável em Li Bai: o esquecimento, dos homens, dos deuses e, mais importante ainda, o esquecimento de si. É o silenciar de uma voz ob-sessiva, lancinante e magoada, forjada pela ideia de morte, isto é, a consciência e a sua linguagem. Trata-se de um desvio do pensamento tauísta cujo extâse procura, antes de mais, uma consubstan-ciação com o mundo. É o que aparece expresso nos seguintes versos:

"Levantei-me bêbado e misturei-me a um regato inundado de luar".

O álcool em Li Bai não é apenas propiciador de alegrias nos encontros com os amigos e as mu-lheres. Quando acorda, depois de uma noite de bebedeira, no fervor frio da ressaca, pergunta à ave: "Diz-me, que tempo faz?". Charles Baude-laire, em idêntica situação, coloca outra questão: quer saber a hora. Em ambos, o resultado é uma nova, recente, embriaguez, ou seja, o desejo de conservar a intensidade perdida.

Em Li Bai, a embriaguez assume um carácter dolorosamente individual, ainda que assombrada pelos antigos ritos tauístas, herdados do primitivo xamanismo chinês.

O álcool está presente na festa porque ele é um poderoso factor de liberdade. Ele não liberta realmente os sujeitos, porque o esquecimento não é libertador, mas entreabre-lhes uma porta, adorna o mundo com novas regras, as quais, por um momento, dão a ilusão de imanar da vontade dos sujeitos. Tudo parece permitido na festa, in-verter os valores e as hierarquias, voltar ao caos, ao desordenado, à felicidade original.

No caso da festa, trata-se de uma sensibili-dade colectiva, inevitavelmente grosseira. No caso dos indivíduos deparamos com o mesmo de-sejo de liberdade não relativamente às regras mas, sobretudo, aos acontecimentos, ao presente puro, tal qual ele se apresenta e tem forçosamente de ser vivido. Por issoé que um outro bebedor fa-moso, o árabe Omar Khayyam, a quem Pessoa dedica parte do Livro do Desassossego, escrevia:

"Os nossos dias fogem tão rápidos como a água do[rio ou o vento do deserto.

Entretanto, dois dias me deixam indiferente: o que passou ontem e o que virá amanhã" (30).

Reconhece-se, aqui tal como em Li Bai, uma qualquer impossibilidade, um desejo insano de agarrar o presente (o tempo) que se escoa im-palpável, a cada momento. Há uma contradição fulcral que é necessário esquecer através de uma qualquer deslocação para um outro lugar, pela construção de uma utopia momentânea. O vício vive do terror do fim deste efémero reino, deste paraíso artificial.

"Se a festa aqui se prolonga por dez mil anos para quê regressar ao país natal?

Mais do que nunca, desejo voar com o vento e rodopiar, à vontade, na imensidão do céu " (31).

Despertar bêbado num dia de Primavera

Se a vida é tudo um grande sonho porquê desperdiçá-la em trabalho e sofrimento ?

Assim pensava, embebedando-me todo o dia à porta de minha casa.

Acordava e meus olhos cansados descobriam uma ave cantando entre as flores. "

Diz-me, que tempo faz?"

O pássaro respondia: "

O vento da Primavera dá voz ao verdelhão vagabundo".

Eu suspirava, emudecia, depois olhava o vinho, a meu lado.

Cantava e bebia, esperando o luar.

Por fim, adormecia.

Czligrafia de Tang Meng Wai

É próprio da natureza humana subverter a sua própria ordem, criar um culto e um altar dedi-cados ao lado nocturno de cada personalidade. Mesmo para o sujeito, muitas vezes, não é clara esta vertente: oculta-a a si próprio, procura afagá--la e domá-la pelo esquecimento. Não raramente está conotada com desejos, mais ou menos cons-cientes, que o próprio sujeito rejeita. É a parte mais profunda, inconfessável, de cada um de nós. Está subordinada a essa vontade superior de "ser eu toda a gente e toda a parte"(32). É também uma das metamorfoses do nómada, este místico ateísmo, que se traduz no desejo de mnipotência absoluta. Assim também podem ser entendidas as mais belas formas de traição.

NOTAS

(1) Jorge LUiS Borges, "Novas Inquirições", Quetzal, Lisboa. Esta frase do escritor argentino evoca a dou-trina a que gostaríamos de chamar materialismo me-lancólico, ou seja, o desejo de uma transcendência que não se acredita existir e sem a qual a vida e as obras dos homens têm um sentido frouxo, pouco satisfatório.

(2) Edgar Allan Poe, "The Poetic Principle", in"The Complete Poetry of E. A. Poe and Selected Criti-cism", Meridien, New York, 1981. Estamos muito perto da concepção de sublime de Edmond Burke que, por este motivo, é acusado por Kant de "fisiolo-gista".

(3) Sigmund Freud, "Más allá del principio del placer", Alianza Editorial, Madrid.

(4) Li Bai, "Poemas de Li Bai", tradução, prefácio e no-tas de António Graça de Abreu, Instituto Cultural de Macau, 1990.

(5) Idem, pág. 18.

(6) Claude Larre, "Les Chinois", Editions Lidis, Paris, 1981, pág.190.

(7) Marcel Mauss, "Ensaio sobre a magia", in Sociolo-gia e Antropologia, vol. I, EDUSP, São Paulo.

(8) Alfred Métraux, "Les religions des indiens de l'Amerique du Sud", Gallimard, Paris.

(9) Pierrette Desy, "L'Homme-Femme", in Libre, vol. 4, Payot, Paris.

(10) Mircea Eliade, "Les Techniques Archaiques de L'Extase", Payot, Paris.

(11) Marcel Granet, "La Pensée Chinoise", Albin Mi-chel, 1968, pág. 413.

(12) Idem.

(13) Li Bai, idem, pág. 55.

(14) Idem, pág. 54.

(15) Excepção feita às tribos amazónicas que praticam a chamada agricultura de queimada, o que as faz per-manecer no mesmo local por algum tempo. Feitas as colheitas, levantam o acampamento e partem para outro local.

(16)Li Bai, idem, pág. 56. É extremamente curioso-e si-gnificativo - o seguinte verso: "Quem o vê circundar o lago, afasta-se receoso".

Em numerosos autores, sobretudo ocidentais, os lagos, enquanto lugares de águas paradas, escuras e profundas, encontram-se directamente relacionados com a morte, nomeadamente nos seus aspectos mais desconhecidos e terríveis. A temática do lago atra-vessa toda a literatura ocidental desde o mito de Nar-ciso até aos românticos do século XIX, que a recupe-ram, pelo menos, das lendas celtas da Baixa Idade Média.

No tauísmo, a interpretação é assaz diferente. Ou, assim parece, à primeira vista. Para os mestres, aágua é símbolo de sabedoria, sobretudo quando pa-rada. "Ninguém se mira na água corrente. Só o que é fixo pode fixar o que existe de fixo". Isto é, reflecte o mundo tal como o "coração do Homem supremo" o deve reflectir. A água, quieta, ilumina todas as coi-sas. Existe neste pensamento uma crença num prin-cípio de continuidade entre os seres e um desejo de fusão original, através de uma forma específica de conhecimento: o conhecimento de si e da Natureza. Marcel Granet chama-lhe um "quietismo naturalis-ta".

(17) Li Bai, idem, pág. 53.

(18) Idem, pág. 53.

(19) Idem, pág. 90.

(20) Idem, pág. 88.

(21) Idem, pág. 52.

(22) Gil de Carvalho, "Li Bai, o Génio", in"O Indepen-dente", 10.8.90.

(23) Li Bai, idem, pág. 58.

(24) Idem, pág. 17.

(25) Idem, pág. 16.

(26) Charles Baudelaire, "Les Fleurs du Mal", Flamma-rion,1964.

(27) Gaston Bachelard, "A Psicanálise do Fogo", Estú-dio Cor, Lisboa, 1972.

(28) Ernst Jünger, "Drogas, Embriaguez e outros Te-mas", Arcádia, 1977.

(29) Li Bai, idem, pág. 167.

(30) Omar Kahyyam, "Odes ao Vinho", Estampa, Lis-boa, 1990.

(31) Li Bai, idem, pág. 97.

(32) Álvaro de Campos, "Ode Triunfal", Ática, Lisboa, 1980. No caso de Li Baia questão é duplamente inte-ressante por se tratar de um viajante e da relação que estabelece com a ideia de morte. Paul Virilio refere que, em viagem, o passageiro está morto, ressuscita quando volta a pôr os pés em terra firme. As relações sociais quotidianas desaparecem, todas as outras têm uma nova significação. De trenó, a cavalo, num navio, de comboio, automóvel ou avião, os corpos animados de velocidade e fora das suas habituais re-ferências, ganham novas posturas, respondem ao desenraizamento cultural. A presença da ideia de morte é, por demais, óbvia. A primeira velocidade é produto do medo da presa perseguida pelo preda-dor. Em viagem, o indivíduo sente-sé intensamente só perante o universo, perante a morte, o que lhe aumenta de forma drástica a consciência de si. Aliás, em numerosos mitos o aparecimento da consciência nos homens surge a par com o conhecimento da morte e o fim da imortalidade. Neste sentido, de uma forma algo tortuosa mas radical, pensar é, prati-camente, pensar a morte.

*Licenciado em Antropologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Hu-manas da Universidade Nova de Lisboa.

desde a p. 162
até a p.