Artes

MARCIANO BAPTISTA E A TRADIÇÃO EUROPEIA DA AGUARELA

Patrick Connor*

Marciano Baptista, pelo que dele até agora sabemos, passou a maior parte da sua vida em Macau e Hong Kong, com expedições ocasionais de desenho ao longo da costa do Sul da Chi-na. Deve-se ter sentido isolado e desligado, por um lado, das grandes tradi-ções do continente chinês e, da distante Europa, por outro.

No entanto, é evidente que a arte de Baptista se enquadra melhor dentro desta última tradição. A partir do século XVI, os artistas europeus começaram a produzir um tipo de desenho denomi-nado "desenho topográfico", isto é de-senhos de locais específicos, aos quais se poderia acrescentar a aguarela. Por vezes, desenhos exactos deste tipo eram necessários para fins militares ou para medição de terrenos. A destreza necessária para este tipo de desenhos, também podia ser ensinada aos jovens como constituinte de uma educação re-quintada.

No Séc. XIX, quando o desenhador e gravador Wenceslaus Hollar, natural da Boémia, visitou Londres, fez numero-sos desenhos de edifícios ingleses. A partir daí, os artistas ingleses começa-ram a fazer desenhos semelhantes e, no início do Séc. XIX, já a prática do dese-nho topográfico se tinha estabelecido como uma especialidade britânica.

Honam(Henam). Cantão(aguarela sobre papel,13.5×22.3cm., assinado, c.1875-80; Martyn Gregory Gallery).

Nas mãos de artistas como Paul Sandby, Michael Angelo Rooker e o jo-vem J. M. W. Turner, a aguarela topo-gráfica desenvolve-se como arte subtil, na qual tanto a cor como a linha obti-nham um lugar significativo dentro da pintura.

Uma palavra-chave entre os teóri-cos daquela época, era a palavra "pito-resco". Os artistasprofissionais e tam-bém os amadores deambulavam pelos campos à procura de temas "pitores-cos" para desenhar e contemplar. Visto ter existido uma agitada polémica sobre o significado exacto da palavra, muitos defendiam que uma composição "pito-resca" podia e devia representar pelo menos objectos naturais ou construídos pelo homem com um grau considerável de veracidade e detalhe. Além disso e na medida do possível, uma vista "pito-resca" devia mostrar variedade e irregu-laridade: a linha do céu devia aparecer cortada e assimétrica e caso se mos-trasse a costa ou um grupo de edifícios, tinha de ser a partir dum ângulo, em vez de frente directamente. Deveria apare\-cer um pormenor na parte da frente da cena, formado com figuras humanas ou animais, ou talvez algumas plantas, ro\-chedos ou botes. No céu deveria ser re-presentado um grupo de nuvens, em vez dum céu uniformemente azul ou cin\-zento.

Fortaleza de S. Tiago da Barra - entrada do Porto Interior (aguarela sobre papel; assinado; c. de 1875-80; Martyn Gregory Gallery).

Foi este ideal estético que prevale-ceu durante o período de formação de George Chinnery na Inglaterra e na Irlan-da. Chinnery partiu de Inglaterra para a Índia em 1802 quando a moda pela topo-rafia "pitoresca" tinha atingido o seu apogeu e, em 1825 prosseguiu para a costa da China. Nunca mais voltou à sua terra natal mas, se o tivesse feito, tinha encontrado mudanças consideráveis nos métodos e nos ideais dos aguarelis-tas ingleses. Teria observado uma incli-nação para composições mais elabora-das e um gosto pelas cores opacas-em "gouache" (aguarela misturada com branco) - que foi pouco usada nos pri-meiros anos da geração de Chinnery. Longe de todas estas mudanças, Chin-nery continuaria a usar a técnica pura da aguarela, a mesma que foi adoptada em larga escala pelo seu discípulo Marciano Baptista.

Pode afirmar-se, portanto, que a técnica de Chinnery foi determinada pela sua longa permanência na Índia, pois se Chinnery tivesse vindo para Ma-cau em 1825 directamente da Inglater-ra, certamente que teria trazido consigo uma concepção bastante diferente da pintura a aguarela, facto que se observa-ria nas obras de Baptista.

Com efeito, as aguarelas de Bap-tista estão de acordo com muitas das re-gras do "pitoresco". A acção por figuras chinesas e sampanas, por vezes em contraste com um barco a vapor à dis-tância; as fachadas dos edifícios são vis-tas a partir de um ângulo e misturadas com vegetação; os céus contêm nu-vens, cujas margens soalheiras e bri-lhantes estão pintadas de acordo com o estilo clássico dos aguarelistas, quer di-zer, deixando que apareça a cor branca e natural do papel, em vez de lhe acres-centar cor branca. Para certos efeitos especiais, como por exemplo a luz da lua no mar, Baptista utiliza o método de "scratching out" (arranhar) com uma ponta afiada, para produzir um efeito bri\-lhante, também com o próprio papel.

Pelo acima exposto não podemos concluir que Baptista seguia consciente-mente uma série de preceitos que ti-nham sido formulados quase cem anos antes num país a cerca de dez mil mi-lhas de distância. Também não se pode afirmar que a sua obra tenha sido igual-mente hábil ou bem sucedida. Não dis-frutou da vantagem de Chinnery que aprendeu a desenhar num local onde as exposições se sucediam a um grande rítmo, com associações de artistas, con-tando igualmente com o entusiasmo do público. No entanto, Baptista pode ser considerado um seguidor digno duma forte tradição topográfica em aguarela.

Junco chinês no porto de Hong Kong (aguarela sobre papel; assinado; c. de 1875-80; Martyn Gregory Gallery).

Se é certo que as suas sementes foram lançadas na Europa muitas gera-ções antes da sua, as aguarelas de Gir-tin, Turner, Cotman e Chinnery repre-sentam o seu desabrochar. As de Mar-ciano Baptista um último e exótico flo-rescer.

Poster RC

Vista da Praia Grande

Marciano Baptista, c.1875-80

(aguarela sobre papel, assinado, Martin Gregory Gallery)

*Especialista em Belas Artes, foi conservador do Royal Pavilion, Art Gallery and Museums (Brigh-ton); actualmente é um dos proprietários da Mar-tyn Gregory Gallery de Londres. Entre a vasta obra publicada, destacam-se Savage Ruskin (1979), Oriental Architecture in the west(1979), Michael Angelo Rooker (1746-1801) (1984), The Inspiration of Egypt (1983) e The China Trade 1600-1869 (1966). Prepara actualmente um livro sobre George Chinnery.

desde a p. 178
até a p.