Linguística

UMA CARTA INÉDITA DE CAMILO PESSANHA

Daniel Pires*

A correspondência de Camilo Pessanha é escas-sa. Este facto é o corolário lógico da sua voluntária re-clusão, relativamente à sociedade em que vivia. Esta sua faceta é-nos revelada pelo próprio poeta, em mis-siva dirigida a Alberto Osório de Castro, seu dilecto amigo, de Leça da Palmeira, datada de 24 de Maio de 1907: "Largos anos passei sem escrever uma única car-ta. A ninguém!...."

Tão breve produção epistolar contrasta vincada-mente com a doutro eremita, homiziado em Tokushi-ma, no Japão, e perene amigo do autor da Clepsidra, Wenceslau de Moraes, de quem se conhecem largas centenas de cartas. Com efeito, relativamente a Ca-milo Pessanha, apenas tenho conhecimento de 72 car-tas e postais, dirigidas aos familiares (pai, Francisco de Almeida Pessanha, mãe, Maria do Espírito Santo Pe-reira, primo, José Benedito Pessanha, e tia, Maria Au-gusta de Almeida Pessanha) e aos amigos (Ana de Cas-tro Osório, Alberto Osório de Castro, João Baptista de Castro, Carlos Amaro, Henrique Trindade Coelho, Mário Beirão, Francisco Xavier Anacleto da Silva e António Pinto de Miranda Guedes).

Houve, ainda, certamente, correspondência tro-cada com Fialho de Almeida, Gomes Leal, Wenceslau de Moraes, Pires Avelanoso, João Jardim, Ayres de Castro e Almeida, Abel Aníbal de Azevedo e os ir-mãos, que a voragem do tempo se encarregou de dissi-par ou, com optimismo, poderá ainda ser recuperada de algum acervo que teima em se conservar oculto.

Tendo em consideração que a sua poética é de extrema subjectividade e que alude mais do que explica - facto que é pedra de toque da verdadeira poesia-, éainda maior o valor das cartas que Camilo Pessanha es-creveu. Com efeito, são nucleares para a compreensão da sua mundividência e da sua complexa psicologia, pois trazem-nos elementos de carácter biográfico que nos poderão ajudar a trilhar uma senda tão hermética como a Clepsidra.

A carta inédita que ora se apresenta, foi gentil\-mente cedida pela Dra. Maria Eduarda de Miranda Guedes, filha do Engenheiro António Pinto de Mi-randa Guedes, a quem foi endereçada. Revela-nos uma faceta da personalidade polivalente de Camilo Pessanha: a sua empatia relativamente à arte chinesa, que coleccionou criteriosamente durante cerca de 30 anos. A propósito, abra-se um parêntesis para registar que o poeta doou ao Estado Português, em 1915 e, pouco antes de falecer, em 1926, duas colecções de arte chinesa. O primeiro conjunto esteve "arquivado", du-rante 10 anos num anódino armazém do Museu de Arte Nacional em Lisboa, subestimado pelo seu direc-tor, José de Figueiredo, um dos intervenientes na fa\-mosa "Questão dos Painéis"; posteriormente foi recu-sado pelo Museu Etnográfico de Belém. Seguiu, final\-mente, em 1926 para o Museu Nacional de Machado de Castro, de Coimbra, onde foi meticulosamente com-pulsado, sob a égide de António Augusto Gonçalves, fundador daquela instituição. No que diz respeito à se\-gunda doação, só chegou a Portugal em 1928, para onde fora enviada pelo Governador Maia Magalhães. De Lisboa, seguiu integralmente para a exposição de Sevilha, onde foi apresentada com assinalado êxito, como refere a Gazeta de Coimbra, de 3 de Janeiro de 1931. Porém, no regresso, encontrava-se indelevel\-mente mutilada: tinham-se extraviado, misteriosa-mente, seis peças.

A colecção de Camilo Pessanha, que prima pelo seu ecletismo, é composta de cerca de 300 peças- pin-tura, caligrafia, cerâmica, brocados, indumentária, cloisonné, etc. e encontra-se, como foi mencionado, no Museu Nacional de Machado de Castro, à excepção das peças referidas nesta carta, que foram ofereeidas ao Museu da Macieirinha, do Porto, pelos herdeiros de António Pinto de Miranda Guedes.

Meu Exmo. am.o(1) Peço-lhe para aceitar, como sinal do meu alto apreço pelo seu delicado espírito e penhor do meu reconhecimento pelos cativantes favores com que me tem distinguido, as duas bagatelas que estas li-nhas acompanham - uma jarrinha para flores sem outro merecimento que o do galbo esbelto, e um minúsculo exemplar, quanto possível modesto, de por-celana do tempo dos Ming (2). É de Fôc-Io, - o ivory-white de Fukien do catálogo da colecção Mor-gan, com que o meu querido amigo teve a lembrança, tão amável, de me presentear. A figurinha creio que o senhor Miranda Guedes a reconhecerá: é a Kun-Iam (3) dos chineses, Avalo-Kitesvára dos hindus, - úbere de inexaurível piedade para todos os budistas, e que fundamentalmente não difere daquela "Cheia de graça, Mãe de misericórdia " do soneto de Antero e dos místicos enternecimentos da nossa adolescência. Da maneira como foi interpretada nessa desvaliosa peça de cerâmica, parece-me que não destoaria em qualquer ingénuo oratório de Trás-os-Montes ou da Beira.

Pela adorável concepção de que é o símbolo, para cuja fidelidade contribuem, no meu sentir, a pureza do caulino de que foi fabricada e o suave brilho imarcescível do esmalte que a reveste, escolhi-a para mensageira dos votos ardentes para que o meu querido amigo senhor Miranda Guedes, com a digna Esposa que o seu coração elegeu, disfrutem toda a alta, imaculada e duradoira felicidade que merecem.

Peço que como mensageira desses votos se digne aceitar-ma, desculpando, pela liberdade, o

de V. Exa

admirador sincero

e amigo agradecido

Camilo Pessanha

NOTAS

(1)António Pinto de Miranda Guedes (Poiares da Régua, 1875 - Porto, 1937), engenheiro civil e de minas, foi fun\-cionário em São Tomé, Angola, índia, Moçambi que e Macau. Neste território, dirigiu as Obras Públicas e presi-diu ao Grémio Militar, instituição que pautou a sua a¢ti-vidade por uma ampla dinamização cultural, no início da década de 10 do presente século. Data desta época o seu relacionamento com Camilo Pessanha, sendo o apresen\-tador do poeta na conferência por este realizada sobre es-t6tica chinesa. Considerava o autor da Clepsidra um "bri\-lhantíssimo e complexo espírito que, em todas as lumino-sas demonstraç6es do seu vigor, honra incontestavel\-ment e o País a que pertence. (...) A originalidade e a cin-tilação constituem feição dominante do seu grande ta-pento e nele vão até à excentricidade notável - essa grande característica de espíritos verdadeiramente supe\-riores e independentes". (A Verdade, Macau, 2 de Junho de 1916).

Camilo Pessanha dedicou-lhe duas das "Oito Elegias Chinesas", que com proficiência verteu para o português.

(2)A dinastia Ming floresceu na China, de 1368 a 1644. Suce\-deu à Yuan (1280-1368) e foi derrubada pela Ching, a úl\-tima dinastia. Em 1911, o médico Sun-Yat-Sen, de quem existe uma fotografia com Camilo Pessanha e o Governa\-dor, entre muitas outras personalidades, implantou a re\-pública.

(3) Deusa da Misericórdia dos Budistas.

*Lic. Filologia Germânica (Univ. de Lisboa). Leitor de Português na Universidade de Glasgow (1983-1987), leitor na Universidade da Ásia Oriental, Macau (1987-1990). Actualmente leitor de Português na Uni-versidade de Jinan, em Cantão. Investigador da história da literatura portuguesa, com várias obras publicadas (v. g. "Dicionário das Revistas Literárias Portuguesas no Séc. XX", "As Polémicas de Raúl Proença", "As Polémicas de António Sérgio", no prelo, "O Caso da Biblioteca", "Homenagem a Camilo Pessanha", e colaboração no "Cambridge Guide To World Theatre" e no "Dictionary of Literature of the Iberian Peninsula").

desde a p. 159
até a p.