Artes

MARCIANO BAPTISTA SUA VIDA E ARTE

César Guillén Nuñez*

MARCIANO António Baptista, foi o melhor pintor macaense do Século XX. Embora a sua arte não tenha sido completamente ignorada ao longoda sua vida, só desde os princípios do nosso Século se tem procurado, espora-dicamente, atribuir-lhe o seu verdadeiro valor.

Em Macau, na segunda década do Século XX, já as suas obras eram ob-jecto de atenção por parte de um público mais culto. Silva Mendes, em 1914, chama-o "aguarelista notável" (1). Em 1918, Humberto de Avelar, editor da de-saparecida revista "Macau", depois de seleccionar um dos seus desenhos, classifica-o de "o melhor artista que até hoje nasceu em Macau" (2). Dez anosmais tarde, Maria Ana Tamagnini, num artigo sobre uma exposição de arte pa-tenteada no desaparecido Palacete da Flora - uma das primeiras em Macau-comenta que, além de George Chinne-ry, "outros houve que nesta terra de-monstraram incontestável valor artís-tico como o Barão do Cercal, Marciano Baptista, etc." (3)

Vista do Porto Interior (aguarela sobre papel; assinado; c. de 1875-80; Martyn Gregory Gallery).

Marciano Baptista nasceu em Ma-cau a 5 de Junho de 1826. Pouco se co-nhece da sua infância, com excepção de que era filho ilegítimo de Manuel Joa-quim Baptista e de Ana Laureana. O pai legitimá-lo-ia mais tarde.

Parece que a sua juventude foi po-bre, tendo estudado, no entanto, no Se-minário de S. José, então uma respeitá-vel escola portuguesa para rapazes, de orientação católica. Sabe-se que se ma-triculou em Junho de 1838 na escola pri-mária com a idade de 12 anos (4). Des-tes poucos, mas significativos, dados se pode concluir que a sua juventude foi tí-pica de um rapaz macaense. Durante esse período, diz-se ter conhecido o ar-tista inglês George Chinnery. Segundo a tradição familiar, a amizade de Baptista com Chinnery data da sua meninice, quando se diz que "andava sempre atrás do artista", pronto a fazer tudo o que ele lhe pedisse, inclusive misturar as cores (5).

Este aspecto comovente da sua ju-ventude parece ser verídico. Daí ser fá-cil supor que mais tarde se tenha desen-volvido uma relação de mestre a discí-pulo. Posteriormente, Baptista conti-nuou influenciado pelas pinturas do seu mestre, mesmo quando interpretava os temas com o seu próprio estilo. As obras mais tardias de Baptista são disso prova, tanto na temática como na estilís-tica e, mais concretamente, as inscri-ções nas suas pinturas. Uma das agua-relas desta exposição tem a legenda "segundo Chinnery" e Baptista anun-ciava a sua arte em jornais de Hong Kong, nos quais se lia "Vistas de Hong Kong, Macau, etc., segundo o falecido Sr. Chinnery" (6).

É de supor que foi depois de termi-nar os estudos no Seminário de S. José que começou a sua amizade com Chin-nery, embora seja lógico admitir-se que tenha contactado anteriormente com o artista, quando Chinnery residia na R. Inácio Baptista, perto de S. José (7).

Os finais de 1830 foram para Chin-nery anos de grande produção artística. Como o melhor artista laico que se esta-beleceu no Sul da China até essa altura, tinha grande sucesso como retratista, especialmente entre os elementos da Companhia Inglesa das Índias Orientais, então uma força poderosa na Índia, Ma-cau, Cantão e outras zonas do Oriente. Depois de passar por várias residências, Chinnery arrendou, finalmente, uma ca-sa na R. Inácio Baptista, atrás da belís-sima igreja neo-clássica de S, Lourenço e perto dos escritórios da Companhia das Índias Orientais, na Praia Grande. No seu estúdio, o velho artista produzia aguarelas de tamanho médio, de Macau e Cantão. Tinha um pequeno grupo de discípulos entre os expatriados, ansio-sos por aprender os rudimentos do desenho e da aguarela (8). Depreende-se de muitos dos seus desenhos que Chin-nery informalmente ensinava a (relativamente nova) técnica da aguarela, bem como as regras clássicas da pintura que tinha aprendido na Academia Real de Londres.

Foi parte desses rudimentos que Baptista absorveu. Em minha opinião, a influência da escola da paisagem inglesa do Século XIX está bem patente nas suas pinturas. É necessário tê-la em mente quando pretendermos analisar os seus trabalhos.

Vista da Ilha de Hong Kong (aguarela sobre papel; assinado; c. de 1875-80; Martyn Gregory Gallery).

A segunda metade da vida de Bap-tista não foi a época tranquila que as suas aguarelas cheias de sol parecem transmitir. Do ponto de vista da história da China, o Século partiu-se em dois por causa da Guerra do Ópio, de 1839 a1842. A cidade de Macau, no dizer de al-gumas testemunhas da época, quase chegou à ruína. Abbé Huc comenta com tristeza que Macau parecia uma cidade fantasma, cheia de mansões elegantes abandonadas, e não lhe augurava mais que um par de anos para desaparecer (9). Um "Diário" anónimo americano de 1857 corrobora esta opinião notando que "Macau está em estado de ruínas" (10). Grande número de importantes crónicas, desde Abbé Huc até Montalto de Jesus nos finais do Século, atribuía à abertura de Hong Kong, como porto livre, a principal causa desta desgra-ça (11).

No que diz respeito à vida privada de Marciano Baptista, a segunda me-tade do Século é marcada pela sua fuga para Hong Kong. Este episódio ocorre nos finais de 1840, ou durante a década seguinte. No entanto, sabe-se que em 1857 residia, em definitivo, com a famí-lia, no n° 2 do Oswald's Terrace e que vi-veria o resto da sua vida na Colónia Bri-tânica (12).

Esta mudança deve ter sido ocasio-nada pelas difíceis condições de vida em Macau. Montalto de Jesus deixou--nos um relato sombrio do destino que esperava os macaenses que se aventu-ravam na vizinha colónia (13). E, embora a sorte de Baptista não pareça ter sido tão triste, o certo é que também não foi fácil.

A fuga para Hong Kong foi também influenciada pelo seu casamento, em 1848, com Maria Josefa do Rosário e pela necessidade de manter a família, que crescia constantemente até nascer o último dos 12 filhos, segundo alguns testemunhos. Nas palavras duras, de Silva Mendes, "Marciano era pobre e Macau, Hong Kong e Cantão não são terras que alimentem poetas ou artistas no exercício de altas e puras realizações estéticas" (14).

Deste modo, encontramos Baptis-ta como "homem dos sete instrumen-tos": pintor, professor de arte, desenha-dor, ilustrador gráfico, cenógrafo e, nos finais do Século, também fotógrafo, aparentemente.

Forte de D. Maria II (aguarela sobre papel; assinado; c. de 1875-80; Martyn Gregory Gallery).

Contudo, uma vez radicado em Hong Kong, a arte de Baptista não passou completamente despercebida. Um número limitado de referências con-temporâneas, dá indícios de certo reco-nhecimento por alguns amantes da arte. Uma carta do China Mail de 3 de Setem-bro de 1857 - a 1.a referência que se co-nhece do artista na Colónia Britânica-dá-nos um bom exemplo, se a aceitar-mos como um testemunho: suplica ao público que ajude a manter a arte de Baptista, em vez das produções em sé-rie de artistas chineses de fraco talento. A última frase é uma referência clara aos artistas menos criativos da China Trade, que proliferavam nessa época (15).

Que pinturas de Baptista eram es-sas, tão apreciadas pela sua qualidade "artística"?

Podemos dividi-las nos seguintes grupos: 1) - Pinturas de dimensões maiores, com cenas de portos de mar e de paisagens, executadas principal-mente em aguarela; 2) - Álbuns com conjuntos de aguarelas de tamanho médio, com vistas dos " Portos do Trata-do" e outros locais, uma espécie de lembrança turística; 3) - Desenhos e pinturas de cenas de rua; 4) - Pinturas ou desenhos de motivos históricos.

Para além destes tipos, sabemos que pintou cenários de teatro e forneceu desenhos a revistas.

Esta divisão em grupos é feita por razões práticas, apenas para ordenar os trabalhos dispersos do artista. Numa ex-celente introdução de seguida publica-da, Patrick Conner atribui a Baptista in-fluências da pintura topográfica evoluída dos artistas ingleses e da estédica do pitoresco, aprendida com Chinnery.

Em nossa opinião, a corrente da China Trade, mais orientada para a co-mercialização, teve também influência, embora em menor escala, na arte de Baptista. Podemos observá-la num es-tudo da sua obra, não só no estilo mas também em pormenores da sua técnica e da sua prática de produção e venda por anúncios.

Embora a paleta de Baptista fosse limitada, com uma preferência pelas co-res primárias azul e vermelho, bem como pelo verde e o castanho, o artista utilizava muitas vezes o pincel à maneira típica da arte chinesa. Para escolher só um exemplo: se examinarmos a sua vista do "Bund" de Foochow, da colec-ção do Museu Luís de Camões, pode verificar-se como aplica uma mancha uniforme vermelha para delinear as es-truturas dos edifícios, sem se preocupar com dar um efeito de três dimensões. Baptista combina esse tipo de pincela-das com a perspectiva e a cor ociden-tais. Uma das suas cores mais caracte-rísticas é o azul e torna-se difícil ima-ginar as harmonias subtis por ele criadas fora do ambiente oriental em que vivia. O mesmo se pode afirmar da maneira como pinta os juncos e as árvores, além da sua delicadeza de toque.

Uma das actividades mais agradá-veis de Baptista deve ter sido a sua ligação a artistas chineses de Hong Kong, contribuindo deste modo para um dos importantes intercâmbios entre a pin-tura ocidental e oriental.

Este intercâmbio, e o consequente interesse pela pintura ocidental por parte dos pintores chineses e japone-ses, como é sabido, foi eventualmente importante para a evolução da pintura contemporânea em Cantão. Silva Men-des já falava da Escola Nova no Ja-pão (16).

Colina da Guia (desenho a lápis sobre papel; assinado; c. de 1875-80; colecção de Francisco Jorge, Museu Luís de Camões).

Quanto ao quarto tipo, que trata dos acontecimentos históricos, é um gé-nero típico da arte ocidental. Silva Mendes não tinha uma opinião muito posi-tiva destes trabalhos de Baptista. Além disso, chamou ao artista "cenógrafo" e fala de uma cena pintada para o City Hall de Hong Kong, que nos seus dias era tido em grande consideração. Referia--se ao elegante Teatro Royal do City Hall, onde se apresentou pela 1. aḁ vez uma representação de teatro amador, em Novembro de 1869? Não se sabe ao certo, pois pesquisas recentes indicam o contrário (17). Sabe-se, no entanto, que Baptista executou um cenário nos finais de 1850 para o empresário inglês Albert Smith, impressionado pelos "ta-lentosos desenhos" de Baptista (18).

Os trabalhos de Baptista agora ex-postos, mostram-nos um Macau em vias de extinção; não só vemos pago-des, fortalezas, edifícios chineses e eu-ropeus do Século XIX, mas também graciosos e coloridos juncos de diferentes tipos, nos rios e águas de Macau, Hong Kong e Cantão.

Quando vivia em Hong Kong, sabe-mos que Baptista visitou a sua terra na-tal, pelo menos uma vez. O desenho aqui exposto do Monte da Guia em 1875, comprova-nos esse facto. Macau tinha um ano antes sido acossado pelo mais terrível tufão da sua história ao longo de 400 anos. O ambiente de sau-dade deste desenho, com o seu farol, forte e colina distantes, símbolos da re-sistência de Macau e de Baptista, diz--nos muito sobre o artista e sobre a sua arte.

O artista faleceu quando residia em Caine Road, Ilha de Hong Kong, a 18 de Dezembro de 1896.

BIBIOGRAFIA COMPLEMENTAR

Berry-Hill, Henry and Sidney. Chinnery and China Coast Painting, Leight-on-Sea, 1970.

Brito Peixoto, R., Dragões No Mar, Os Pescadores Chineses de Macau, Museu e Centro de Estudos Marítimos, Macau, 1989.

Cameron, N. Barbarians and Mandarins, Thirteen Centuries of Western Travelhers in China, New York, 1970.

Carmona, B., Leonel, A., Lorchas, Jun-cos e Outros Barcos Usados no Sul da China, Imprensa Oficial de Macau, 1985.

Clark, K. M., Landscape Into Art, Lon-don, Sedgwick, 1950.

Cluns, C., Chinese Export Waterco-lours, Victoria and Albert Museum, London, 1984.

Coates, A., Prelude to Hong Kong, Rou-tledge & Kegan Paul, London, 1966.

Colis, M., Foreign Mud, Faber and Fa-ber London,1946.

Conner, P., The China Trade 1600-1860, The Royal Pavilion, Art Gallery & Museum, Brighton, 1986.

Cremer, R. D. ed., Macau, City of Com-merce and Culture, U EA Press Ltd., Hong Kong,1990.

Crossman, C. L., The China Trade, Ex-port Paintings, Furniture, Silver and Other Objects, Princeton, 1972.

Gomes, L. G., Efemérides da História de Macau, (Colecção Notícias de Macau), VI. XII. Macau, 1954.

Hong Kong Museum of Art, Gateways to China, Trading Ports of the 18th and 19th Centuries, (intro. by J. S. P. Ting), Urban Coun-cil of Hong Kong publ., 1987.

George Chinnery, His Pupils and Influence, (intro. by G. W. Bonsall), Hong Kong Urban Council publ., 1985.

Tingqua: Paintings From His Studio, (intro. by J. Warner), Hong Kong Urban Council publ., 1976.

Hutcheon, R., Chinnery: The Man and the Legend, South China Morning Post., Ltd., Hong Kong, 1975.

Instituto Cultural de Macau, Pinturas da "China Trade", (intrd. de C. Guillén Nuñez), Instituto Cultural de Macau (sem data).

NOTAS

(1). Silva Mendes, Manuel da, "Um Museu em Macau", O Progresso, 1. °Ano, Macau, 29 de Novembro de 1914, N. ° 13, editorial não assinado.

(2). Macau, Semanário Artístico, Literário e Social. Anol, VI. I,16 Dezembro, 1918, p. 16 sem número.

(3). Tamagnini, M. A., "Uma Exposição de Arte em Macau", Monografias, artigos, mapas e gráficos estatísticos... de Ma-cau na exposição Portuguesa em Sevi-lha, Macau, 1929, p. 9 e p. 97.

(4). Dados biográficos segundo M. Teixeira. Teixeira, M, Toponimia de Macau, VI. II, Macau, Imprensa Nacional, 1981, pp. 413-415., George Chinnery, No Bicentenário do seu Nascimento 1774-1974, Macau, 1974, pp. 115-118.

(5). Hayes, Holly, "Tribute to Chinnerys pu-pil, Baptista legend prevails", South China Morning Post, 30 March, 1975. Silva Mendes, Manuel da, "Notas Soltas Sobre a Arte Chinêsa", Macau, Sema-nário Artístico, Literário e Social, Ano l, 23 Dez.,1918, p. 26.

(6). China Mail, 3 Sept., and 5 Nov., 1857, anúncios em miscellaneous.

(7). Teixeira, M., George Chinnery, pp. 82-88.

(8). Sobre os alunos de Chinnery vid., Geor-ge Chinnery, His Pupils and Influence, Hong Kong Museum of Art, catálogo da Exp. de 15.3- 14.4, 1985, Urban Council of Hong Kong publication.

(9). Huc, M., The Chinese Empire, Longman, Brown, Green, and Longmans, London, 1855, p. 144.

(10). Underdown, M., Macao in 1857, Macau, Imprensa Nacional, 1974, p. 6. No entan-to, o escritor do diário menciona que Ma-cau se recuperava, devido à paragem do comércio de Cantão.

(11). Huc, M. op. cit., Montalto de Jesus, C. A., Historic Macao. Oxford Uni. Press, 1984 reprint, pp. 364-67. Macau revigorar-se--ia com o Governador Coelho do Amaral.

(12). Anúncios, China Mail 3 Sept. e 5 Nov., 1857, Baptista residiria no mesmo edifício que Lamqua, o discipulo chinês mais famoso de Chinnery, Hutcheon, R., Chinnery, The Man and the Legend, Hong Kong,1975, p. 135.

(13). Montalto de Jesus, op. cit., p. 366.

(14). Silva Mendes, "Notas Soltas", op. cit., p. 27.

(15)."The Labour is Worthy of His Hire"!, China Mail, Letters to the Editor, 3 Sept., 1857, N. °655.

(16). Silva Mendes escreve sobre um quadro de Baptista representando Camões e os Lusíadas, que diz ter ido para Inglaterra. Silva Mendes, op. cit., p. 27; e p. 28 so-bre a Escola Nova no Japão.

(17). The Public Records Office, Hong Kong, não tem registo sobre Baptista relacionado com o antigo City Hall Theatre.

(18). Smity, Albert, To China and Back, Hong Kong, 1974 ed., 30 vid.; Orange, J., The Chater Collection, Pictures Relating to China, Hong Kong, Macao, 1655-1860, Thornton Butterworth Ltd., London, 1924. J. Orange atribui um número de obras a Baptista, vid. p. 300 e pp. 365-66. Só uma delas, "The Racecourse at Hap-py Valley", estava asinada. Ibid., pp. 362--63.

*M. A. em História de Arte (Universidade Pennsylnamia, USA) tendo-se especializado em Arte Barroca da América Latina, Espanha e Portugal. Natural do Panamá, fez estudos em várias cidades da Europa e foi professor de História de Arte na Universidade de Hong Kong. Exerceu funções de Conser-vador-Adjunto do Museu Luís de Camões (Leal Senado de Macau) onde tem actualmente a responsabilidade de organi-zação de exposições e investigações na área artístico-histó-rica de Macau. Autor de vários artigos e livros, foi o organiza-dor de exposições sobre a obra de George Chinnery e da pri-meira grande exposição do artista macaense Marciano Bap-tista.

desde a p. 173
até a p.