Linguística

CAMILO PESSANHAE ASMIRAGENS DO TEXTO

José Augusto Seabra*

Página anterior: Camilo Pessanha na "Chácara do Leitão", em Macau, 1921.

«Imagens que passais pela retina Dos meus olhos, porque não vos fixais? » (C. P.)

Estranhíssimo destino, o deste texto-a--texto de Camilo Pessanha, corpus mínimo de poemas trabalhados em filigrana, de "fugitivos traços", infixos entre os manuscritos indeléveis de uns, os tiposcritos grifados de outros, as rasuras insistentes de tantos mais, e sempre, sem pre a obsessão poiética, insinuando-se nos interstícios do verso, nas modulações do ritmo, nas articulações torturadas do fonema, da silaba, da palavra, da frase, a escorrer com tinta sombria pelo branco da página, ou por sobre a letra impressa, na sua música silente, mental e transmental, em "movimentos vãos"... De que exílio longínquo e a que "país perdido" ele assim retorna, através dos arquivos salvos de uma revolução cultural tumultuosa, nos escaninhos de uma gaveta cerrada, ressuscitando neste espólio miraculoso que espíritos sensíveis guardaram, protegeram, transmitiram, copiaram e recopiaram, enquanto outros o retiveram na memória auditiva, multiplicando-lhe as varian-tes, as incertezas, as indeterminações, as miragens, na sua potencialidade infinita?

Talvez se possa dizer que estamos perante um caso exemplar do que hoje a crítica textual chama uma "genética escrítica", na expressão de Henri Mitterand (1), a qual não é mais, como diria Mallarmé, do que "a Escrita marcando os gestos da Ideia a manifestar-se pela fala e oferecendo-lhes a sua reflexão, de modo a perfazê--los no presente (pela leitura) e a conservá-los no futuro como os anais da fala e da sua filia\-ção", o que implica, em suma, que "O Verbo apareça por detrás do seu meio de linguagem, restituído à física e à fisiologia" (2). Pois não é Camilo Pessanha, poeta simbolista por exce\-lência, a expressão mais acabada da profecia mallarmeana, que antevia estarem "a fala e a escrita destinadas (desde que nos detenhamos nos dados da linguagem) a reunir-se ambas naIdeia do Verbo" (3)?

Registo fotográfico dos elementos constituintes do efémero Instituto de Macau, congregador da maior geração cultural deste Século e uma das mais distintas de toda a História de Macau. Da esquerda para a direita: Eng° Amorim, Dr. Camilo de Almeida Pessanha, D. José da Costa Nunes, Comandante Correia da Silva (Paço ri'Arcos), Dr. Humberto de Avelar, Almirante Lacerda Castelo Branco, Dr. Morais Palha, p.e Régis Gervaix, José Vicente Jorge, Dr. Silva Mendes, Dr. Tello de Azevedo Gomes e Francisco Peixoto Che-das.

Sabia-se como o autor de Clepsidra- livro que lhe foi quase arrancado pela solicitude e insistência de João de Castro Osório (4)era relutante em escrever e publicar os seus poemas, que preferia recitar aos amigos, condescendendo apenas de quando em quando em oferecer um autógrafo ou em dar um original à estampa. Mas fica a saber-se também, pelo caderno de capa de oleado negro legado por D. Laura Cas-tel Branco, sua depositária fiel após a morte do poeta, à Biblioteca Pública de Macau, que afinal Camilo Pessanha era o que se pode chamar um compulsivo da escrita, um perfeccionista sempre insatisfeito e reincidente do ante-texto. De certo modo, ele macerava sem descanso um texto in fieri, quer remoído interiormente nos seus solilóquios, quer inscrito no papel nervosamente, como se se tratasse de uma espécie de exercício espiritual, semelhante a algumas experiências orientais, de inspiração chinesa, a que sob a acção do ópio se abandonava. E não é a hesitação entre a fala e a escrita, estruturalmente constitutiva da poética de Camilo Pessa-nha, caracterizada pela composição de um discurso que "tem de procurar-se por tentativas", como ele diz ao referir-se à "duplicidade", à "imprecisão da linguagem" que teve de enfrentar quando traduziu algumas "elegias" do "chinês literário", em que essa imprecisão é uma "qualidade fundamental" (5)?

Quem melhor se apercebeu, com uma intuição premonitória, da importância da escrita para a fruição plena da poesia de Camilo Pessa-nha, foi sem dúvida Fernando Pessoa, na carta que lhe escreveu para Macau a convidá-lo a colaborar em Orpheu 3. Indo direito à sua pretensão, ele insistia na premência de fazer sair os textos do poeta das "laudas ocultas dos seus cadernos", pois os seus inéditos corriam "estropiados, de boca em boca, nos cafés". Ele próprio, que guardara de ouvir Camilo Pessanha recitar alguns deles, na presença do General Henrique Rosa, uma "religiosa recordação", obtivera copia de uns tantos, sabendo-os de cor (6). E Mário de Sá-Carneiro, num depoimentoprestado ao jornal República, em que designava Camilo Pessanha como "o grande ritmis-ta", fala dos seus poemas, que corriam então por Lisboa, como "a melhor obra de Arte escrita (sic) dos últimos trinta anos", dele tendo conservado "uma das impressões maiores" e "mais intensas" - "a Ouro"-, "ouvindo pela primeira vez os seus versos..." (7).

Do que os dois poetas de Orpheu se davam já então lucidamente conta era de que pelo autor de Clepsidra passavam os "caminhos de transformação da poesia portuguesa", como escreve Fernando Guimarães, que mostra como através dele o pós-Simbolismo "confinaria com o próprio Modernismo" (8). E essa transformação operou-se, fundamentalmente, releva-o aquele ensaísta, pela consciência da "suspensão de significado", ou suas "flutuações", que na poesia de Camilo Pessanha se manifesta e que o trabalho da escrita, do signifi-cante, permite apreender em acto.

Diploma da Maçonaria, passado a 6 de Junho de 1916, em Macau, atribuindo a Camilo Pessanha o Grau 15, de Cavaleiro do Oriente ou da Espada. No mesmo ano, a 22 de Julho seria concedido ao poeta o Grau 18 (Cavaleiro Rosa-Cruz).

Nesta amostra preciosa desse trabalho, que aqui fica uma vez mais registada para uso dos leitores e estudiosos (9), detectam-se as múltiplas modalidades poéticas que Jean-Bel-lemin Moël procurou recensear num ensaio sobre um poema de Milosz, tentando teorizar a partir daí uma concepção do texto em que este é considerado, relativamente ao ante-texto, por um lado, e à obra, por outro, "não um ponto de chegada visado durante a redacção", mas sim "um momento de equilíbrio", sendo ao mesmo tempo "o termo - que não o fim - de uma sequência de transformações materiais" e o "suporte e lugar de uma escrita e de uma leitura" (10). Desde as rasuras às correcções, desde os esboços ou bosquejos a um poema dado como praticamente acabado e inalterável, pela coincidência entre a versão manuscrita e a versão impressa, temos assim perante os olhos exemplificadas todas as metamorfoses de umaescrita que, cotejando-se este pequeno espólio (11) com a obra sucessivamente publicada, nomeadamente por João de Castro Osório, nas suas várias e atormentadas edições de Clepsi-dra, da Lusitânia à Ática, apresenta um sem número de variações e variantes, que este devotado apóstolo de Camilo Pessanha intentou inventariar e que se encontram também minuciosamente anotadas numa bela edição bilingue publicada em Itália por Barbara Spaggiari (12). Outros manuscritos e tiposcritos, além dos que em Macau ficaram, haverá que pacientemente descobrir, arquivar, preservar, na busca de uma ou outra "flexão casual" dos "dedos incertos" do poeta, na perseguição dessa mira gem infinita, feita de sucessivas "imagens" a perpassar nos seus "olhos desertos", que era para ele e é para nós o texto. Porque "desde a primeira palavra do seu primeiro esboço"- tantas vezes difícil de identificar - "até à última variante da última linha da sua mais recente publicação", como diz Henri Mitterand (13), nada mais pode fixá-lo, pois sempre quiçá outra edição a vir infirmará o que se julgava definitivo...

Camilo Pessanha e Alberto Osório de Castro, em Lisboa, cerca de 1916. Este amigo do poeta estivera em Macau, com a sua mulher, no verão de 1912. Ficou alojado no Hotel Bela Vista, que descreve "lindo nas suas galerias ou alvas varandas, abrindo sobre as águas em que deslizavam lorchas amareladas ou cor de sépia".

Dê-se o leitor ao cuidado de, com olhar agudo e ouvido fino, fazendo apelo à sua sensibilidade inteligente, penetrar no detalhe das rasuras e emendas, tentando mesmo desvendar (adivinhar) o que aqui e ali aparece à primeira vista indecifrável; compare depois estas versões com outras, relacionando as variantes, nada deixando de anotar, nem sequer os títulos e as dedicatórias, reparando nos mais pequenos pormenores de pontuação, nas diferenças gramaticais, estilísticas, nas alterações da estrutura versificatória e estrófica; tente aperceber--se, enfim, das razões das hesitações do poeta, das motivações da sua escolha (rítmicas, semânticas, morfo-sintácticas, fónicas, grafemá-ticas) e estará a compor, a recompor os poemas, de leitura em leitura, interpretando-os como se de uma partitura musical se tratasse. E sabe-se como para os simbolistas a poesia era "de la musique avant toute chose", segundo a poética de Verlaine, que numa epígrafe de Camilo Pessanha aqui comparece.

Mas se as sugestões verlaineanas estão presentes nesse e noutros poemas, como o das célebres "arcadas do violoncelo", que dir-se-ia glosar, com uma gama de recursos mais com-plexamente orquestrada, os "violons de l'au-tomne" do poeta francês, o que é certo é que a iniciação de Camilo Pessanha ao simbolismo-algo indirecta, ao que parece, nos tempos da Coimbra de "Boémia Nova", e "Os Insubmis-sos", a que se manteve lateral- se vai prolongar depois no que João Gaspar Simões chama, muito justamente, a "iniciação oriental" (14), para que parecia predisposto desde as suas primícias poéticas, em que evocava já os "ébrios chineses, delirantes..." (15). E é precisamente do primeiro período dessa iniciação - entre 1894 e 1896 - que são datados muitos dos poemas do Caderno, ao lado de outros imediatamente anteriores e posteriores.

Camilo Pessanha, na companhia do seu colega João Pereira Vasco, numa casa de Macau, por volta de 1899.

Um poema há, entretanto, da segunda fase do exílio de Camilo Pessanha em Macau, que, no seu título, realiza exactamente a simbiose dessas duas iniciações: "Viola Chineza". A intencionalidade é clara, rasurado como foi o título primitivo: "Rondel". Ao introduzir assim, ao lado dos instrumentos preferidos do simbolismo ocidental, em que um Eugénio de Castro se comprazia, um instrumento cuja ressonância oriental é explícita, o poeta dá o tom da sua diferença "simbolista"... E não é por acaso que esse poema é dedicado a Wenceslau de Moraes, seu colega no liceu de Macau, antes de ir fixar-se no Japão. Sem que isso signifique, porém, que Camilo Pessanha se identifique de todo em todo com esse prosador de um país exótico, como não deixa de o designar. É que o poeta tem o cuidado de vincar que, se quanto a ele escreve em verso, é porque, como aqueles que "vagueiam e se definham por longínquas regiões", vive apenas para "cantar a pátria ausente", dando expressão à "irremissível tristeza de todos os exílios" (16). Não vira ele a luz "em um país perdido"?

Camilo Pessanha com Carlos Amaro e Lúcio dos Santos, em Lis-boa, cerca de 1908. Carlos Amaro frequentava o Café Londres e o Royal onde frequentemente deparava com o poeta "fazendo a sua toillette de cadáver".

Camilo Pessanha e Venceslau de Morais, cerca de 1895, em Hong Kong.

É desse país perdido que estes quase perdidos poemas ficam a dar sinal, testemunho. Como na "Inscrição" liminar de Clepsidra, a escrita irá traçando o seu rasto, a "deslizar sem ruído", de texto a texto, de miragem em miragem... •

Paris, Março de 1986

NOTAS

(1)Leçons d'Ecriture - Ce que disente les manuscrits, Hommage à Louis Hay, Paris, 1985, p. VI.

(2)Ecrits sur le Livre, Paris, 1985, p. 70.

(3)Idem, p.69.

(4)Cf. Introdução Critico-Bibliográfica a Clepsidra e Outros Poemas de Camilo Pessanha, Lisboa, 1969, p.14.

(5)China, Lisboa, 1944, p.70.

(6)Páginas de Estética, Teoria e Crítica Literárias, Lisboa, s. d., p.357.

(7)Reproduzido in Cartas a Fernando Pessoa, l, Lisboa, 1959, p. 189.

(8)Simbolismo, Modernismo e Vanguardas, Lisboa, 1982, p.25 e segs.

(9)Uma reprodução do "Caderno" de Camilo Pessanha foi já publicada na revista Persona, 10, Porto, Julho de 1984, com uma apresentação de Danilo Barreiros.

(10) Le Texte et I'Avant-Texte, Paris, 1972, pp.15 e 17.

(11) Sobre o conjunto do espólio de Camilo Pessanha e seus avatares cf. Camilo Pessanha: um Espólio por (Ha) ver, Nota de Arquivística Lite-rária, por António Brás de Oliveira, Persona, 10, Porto, Julho, 1984.

(12) Clepsidra, a cura di Barbar Spaggiari, Adriatica Editrica, Bari, 1983.

(13) Op. cit., p. VI.

(14) In Camilo Pessanha, Col. A Obra e o Homem, Lisboa, s. d., p. 53.

(15) Cf. "Lúbrica", in "Poemas Iniciais", Clepsidra e Outros Poemas de Camilo Pessanha, Lisboa, 1969, p.261.

(16)China, op. cit., p.61.

*Poeta e ensaísta. Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, exilou-se em França, onde se doutorou em Letras pela Sorbonne, com uma tese sobre Fernando Pessoa, dirigida por Roland Barthes. Deputado à Assembleia Constituinte e depois à Assembleia da República, exerceu funções de Ministro da Educação entre 1983 e 1985, sendo actualmente Embaixador de Portugal junto da UNESCO. Publicou recentemente "Poemas do Nome de Deus", inspirados na cidade de Macau.

desde a p. 137
até a p.