Artes

O Rosto do Mundo Graça Morais

Maria João Fernandes

"Na voz de oiro e sombra da guitarra. Algo de mim a si próprio renuncia". (Sophia de Mello BreynerAndresen -llhas)

"(...) tento que a minha pintura seja de certa forma uma visão trágica da vida, mas onde perpasse, como na ópera, qualquer coisa de poético". (Graça Morais)

Desde a sua primeira exposição individual em Lisboa em 1980, tenho podido acompanhar o percurso de Graça Morais, uma artista que se situa longe das modas e preocupações vanguardistas, inventando uma linguagem moderna, marcada por um realismo que ela própria qualifica de vivencial, mas adquirindo uma vertente mágica, surrealizante, que a crítica não tem deixado de acentuar.

A aldeia transmontana de Vieiro, que a viu nascer, o mundo rural que lhe está associado, a experiência parisiense nos anos setenta, foram influências marcantes do seu Imaginário, oscilando entre a representação dos dramas que definem a condição humana, as suas obsessões e fantasmas e ao mesmo tempo voltando-se para a busca de uma harmonia, de que a natureza pos-sul o segredo.

A linguagem plástica da artista, de um expressio-nismo marcado nos anos 80 pelas mitologias picassea-nas, prolonga os excessos, os contrastes violentos de uma tradição barroca e a fuga maneirista que lhe inspi-rou o seu mestre Caravaggio. Dos primeiros desenhos; rostos enigmáticos e telúricos de mulheres transmonta-nas, semelhantes de algum modo aos rostos de cabo-verdeanas de 89, até às suas pinturas mais recentes, Graça Morais mantém e reinventa as constantes do seu estilo.

Na pintura actual, os traços vindos de navegações antigas, inscrevem-se com a suavidade de iluminuras so-bre o dramatismo e a violência de uma luz vermelha, onírica e teatral.

O poente dourando Lisboa antiga. Invade no mo-mento da minha visita, o atelier da artista, descobre o aveludado palpitante da cor. No vermelho sanguíneo acorda a polpa saborosa dos frutos e das flores proibi-das, as figuras ganham um ritmo, movem-se delicada-mente, criam uma vida fugitiva e sábia. Tudo se confun-de, como num horizonte submerso, guardando ao mes-mo tempo os seus contornos.

Fotografia de Inês Gonçalves

Sob o signo da metamorfose. Uma viola é fambém um barco, avançando no continente desconhecido do corpo e do mundo, sedutores como os frutos. A máscara tem a presença de um rosto vivo e as figuras olham-nos com a fixidez de máscaras.

Pequenas paisagens inscrevem a serenidade de universos protegidos e preciosos, de uma beleza quase suspeita, nos cenários cheios de formas incompletas, in-candescentes. Figuras de uma outra era, fantasmáticas e serenas avançam, no encontro do tempo com o tem-po, do espaço com o espaço, O tempo antigo e o ins-tante, um passado arcaico de primitivos rituais, os perfu-mes da infância, a sombra fresca das oliveiras, mártires degolados, Caravaggio revisitado, o entrelaçar de talhas ingénuas, as figuras de uma actualidade intensa-mente vivida, E o súbito explodir de uma claridade sur-real,

Luz e sombras dos dias vividos, sofridos e sonhados, luz interior ressuscitando fragmentos de memórias es-quecidas, ganhando sobre a tela uma nova vida. Uni-verso compósito, fragmentado, movente, cristalização de um momento, da profundidade de um momento, Uma imagem da vida, mas não como se esta se detivesse para complacente, deixar que sobre ela pouse o olhar da pintora. É a pintora, que ao fixar o mundo com os olhos da alma, obriga o tempo a deter o seu fluxo, dando-lhe um rosto entre todos os rostos possíveis, fixando o infixável, guardando as impressões mais fugitivas, fazendo-nos perceber a fragilidade dos aspectos e o sopro profundo que os anima e liberta.

Ao pintar o rosto do mundo, a artista encontra o seu próprio rosto. O rosto da melancolia, da compreen-são e da incompreensão dos opostos: o corpo, a sensua-lidade e o espírito, a noite e a luz, a terra, o fogo e o ar, a morte e a vida, o profano e o sagrado, o erotismo e o amor impossível-possível, único ímpeto capaz de reunir numa mesma respiração todos os contrários.

No seu auto-retrato imaginado encontram-se al-guns destes temas, que ao longo dos anos têm vindo a definir o universo mítico de Graça Morais, na relação as-sumida entre a realidade e o tecido fantástico que a percorre, entre o humano, o cósmico e o divino, uma bio-grafia individual e a consciência da aventura humana que lhe dá e à qual pretende dar um sentido.

Sem Título, carvão e pastel sobre tela,1990.

O sol desce no horizonte, o ouro da tarde desenha as suas próprias sombras, a cidade e as telas anoitecem, coincidência mágica, acaso maravilhoso em que re-pousa a linguagem secreta da arte. Que destino o des-tas imagens? Agonia e esplendor do poente a que res-ponde e eco musical o tanger delicado e forte de uma guitarra, acordando de tela para tela uma nostalgia sem nome, eco de uma ausência, de uma renúncia, que se transforma na dádiva de uma presença.

1 Sem Título, desenho e pintura com colagem sobre papel, 1990.

As formas de contornos definidos, mostrando a im-portância do desenho, transportam-nos à terra firme de um universo que podemos visitar, que se nos oferece, na mobilidade do mundo das sensações, das fantasias que estão na sua origem.

2 Sem Título, desenho e pintura com colagem sobre papel, 1990.

Graça Morais anota as vibrações do Instante nos cadernos da memória a que a sua obra recente dá ex-pressão, revelando uma plena maturidade. A artista conduz-nos à descoberta da sua visão trágica da vida", "onde perpassa como na ópera, qualquer coisa de poético", uma nova sonoridade, um avesso das formas rigoroso e fluido, talvez a sua figura mais verdadeira.

3 Sem Título, desenho e pintura com colagem sobre papel, 1990.

desde a p. 203
até a p.