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BURLANDO POR MEIO DE JORNAIS

Luís Gonzaga Gomes*

A China com os seus quatrocentos e quarenta milhões de habitantes é considerada como o país onde existe a maior percentagem de analfabetos. Porém, desde a implantação da R epública, muito se tem feito para a difusão de instrução no meio da massa popular, e é grato constatar que, em Macau, pelo menos, é raro encontrar chinês da nova geração qu e não saiba ler.

Assim, antes do actual conflito sino-nipónico, quando com três ou quatro cobres se podi a adquirir um exemplar de jornal, era frequente verem-se nas ruas da cidade cules de riquexó s-últimos seres na escada social chinesa-a entreterem-se com a leitura das últimas notí cias, enquanto se encontravam estacionados nas esquinas das ruas à espera de quem necessitass e de se servir dos seus veículos.

Há muitos escritores que dizem ser a China o país editor do mais antigo jornal do mundo: - o Kêng-Pôu ou Kêng-Tch'áu, isto é, a Gazeta de Pequim.

Esta publicação, cujas referências se encontram tanto nos escritos do poeta Sôu -Tông-P'ó (1101) como nas T'óng-Si (Poesias da dinastia T'óng, 618-907), est ava porém muito longe de corresponder ao sentido moderno dum jornal. Era simplesmente uma e spécie de Boletim Oficial de dez a doze páginas, atadas em cima e em baixo por dois pedaci nhos de papel enrolado a servirem de cordéis, com capa de um amarelo vivo e impresso com tipos móveis de madeira. O formato era de 18xl0cms, cada página era dividida por linhas encarnada s em sete colunas e, em cada uma destas divisões, imprimiam-se catorze caracteres. O texto era constituído pelos registos de cerimónias oficiais da corte chine-sa, por decretos e despac hos imperiais, promoções e sentenças, e como estes assuntos oficiais eram de impresci ndível interesse para os que precisavam de se conservar a par da pragmática e das decisõe s im\-periais, muitos indivíduos ganhavam a sua vida co\-piando a Gazeta, na sua forma resumida, para su\-prir as necessidades daqueles que não podiam ad-quiri-la na sua edição original ou integral. De resto, estas cópias manuscritas ou sé-pun eram postas à venda uns poucos de dias antes da edição oficial sen-do, por isso, muito procuradas.

Os vice-reis faziam também imprimir nas respectivas províncias as suas gazetas part iculares, as chamadas Ü n-mun-pôu.

Até aos tempos modernos, não existia na China outra publicação periodica além da Gazeta de Pequim e o jornal, como órgão noticioso e orientador da opinião pública, só foi introduzido em 1822 com o Abelha da China, publicado em Macau, e em língua p ortuguesa. Em 1827, editou-se em Cantão o The Canton Register, o primeiro jornal em língua inglesa. Em língua chinesa, só em 1870 é que se iniciou em Xangai a publicação do Sân-Pôu que, então, não passava duma simples folha volante, que foi, em seguid a, substituída pelo Shen Páu, propriedade dos ingleses e por eles dirigido. Em Macau, consta que só no 23o ano de Kuóng-Sôi (1898) é que se publicou o pri meiro jornal chinês, Tchi-Sân-Pôu, cuja redacção se encontrava instalada no prédio No 4 do sítio conhecido pelos chineses por Tái--tchèang, isto é, próximo do edifício das Obras Públicas, sendo este local assim chamado por nele ter existido um grande poço, que é o significado da palavra chinesa tái-tchéang.

Presentemente, com a reforma da escrita chinesa, advogada principalmente pelo filosofo U-Sêk, autor do célebre Tchông-Kuók Tchit-Hók-Si Tái--Kong (Esboço da História da Filosofia Chinesa, do qual só se encontra publicado o 1o volume) e antigo embaixador chinês em Washington, que limitou o conhecimento da língua chinesa a uns quatro mil caracteres, o suficiente para se poder ler e entender o texto de qualquer assun to pouco profundo, e a aceitação geral da sintaxe que rege a linguagem falada em substitui ção da que era usada na redacção antiga, tão complexa, já pelo seu laconismo já pelo emprego dum variadíssimo número de caracteres, os indivíduos de pouca instrução passaram a poder ler e compreender com grande facilidade a linguagem escrita.

Por este motivo não há cidade na China que não possua vários diários, atingindo alguns dos que são publicados em Xangai o número de 100.000 exemplares de circulação diária.

Além disso, tendo-se ocidentalizado o gosto dos chineses, encontra-se o mercado literá rio inundado de revistas científicas, filosóficas, literárias, artísticas, teatrais, co m óptimas gravuras e magnífica impressão, bem como traduções de toda a espécie de livros científicos, principalmente técnicos, e todas as obras-primas de escritores modern os de Inglaterra, América, Alemanha, França, Rússia, Hungria, Polónia, etc.. Escusado será dizer que tanta literatura, das ideias mais desencontradas e absorvidas num brevíssim o período de brusca transição, não deixou nem deixará ainda de causar graves indiges tões intelectuais nos cérebros dos jovens chineses.

O gosto pela leitura na China tomou tal incremento que, mesmo numa cidade tão pequena com o Macau, se publicam nada mais nada menos que quatro periódicos: Uá-K'iu-Iât-Pôu, o de maior circulação; o Sâi-Kái-Iât-Pôu, o Tcheng-Vá-Pôu e o Tái--Tchông-Pôu.

A maior empresa jornalística de Macau é, porém, a do Uá-K'iu-Iât-Pôu.

Todos estes jornais publicam notícias mundiais e locais que ocupam, como artigo de fundo, toda a primeira página do jornal, a chamda tchêng--hón. As restantes páginas, fu-hón, são ocupadas por contos ou folhetins, novelas policiais e judiciais, criticas de costumes, etc.. O que possui mais anúncios é o Uá-K'iu Iât-Pôu pois que duas p áginas e um quarto deste jornal são inteiramente mantidas pelos anunciantes.

Dum modo geral, até ao conflito sino--nipónico, a imprensa chinesa das grandes cidades, com a excepção de alguns jornais de grande circulação, distinguia-se pela pouca vera cidade das suas notícias, pelos seus artigos maliciosos, inflamatórios ou de gosto deprav ado, constituindo um verdadeiro perigo, por exercerem grande influência na opinião pública.

Muitos destes jornais, principalmente os de pequeno formato, que eram geralmente de um qu arto duma folha vulgar e conhecidos pelos ingleses pela designação de "mosquitoespaper s", mantinham- se quase exclusivamente à curta de chantagem. Estes pasquins conseguiam e xtorquir substanciosos subsídios a pessoas gradas, por meio dos seus escritos difamatórios acerca de actos menos honestos dos mesmos, não se pejando até de bulirem com a vida íntim a daqueles que desejavam alvejar.

Há também quem utilize o jornal para burlar os incautos e assim conta-se que, em tempos, nos três principais jornais de Cantão, o Kông-Pêng-Pôu, o Ut-Uá-Pôu e o Kuók-Uá-Pôu, apareceu publicado o anúncio de uma fábrica recentemente estabelecida em Xa ngai que, para entrar em laboração, necessitava de técnicos, operários e empregados de escritório, num total de trezentos indivíduos.

Aqueles que julgassem possuir as necessárias habilitações, correspondentes às exi gências do anúncio, deveriam endereçar os seus pedidos ao escritório da fábrica, aco mpanhados de um selo de dois avos, para a franquia da respectiva resposta.

É claro que o indivíduo em questão, dentro de pouco espaço de tempo, recebeu mil hares de cartas dos pretendentes com os respectivos selos de dois avos. Como para cada mil ca rtas conseguia obter vinte patacas em selos, o burlão pôde governar-se com umas mil pataca s, pois conseguira, por este artifício, lograr mais de cinquenta mil pessoas.

É claro que os logrados nunca receberam resposta alguma às suas cartas e, porque o ass unto fosse de pouca monta, ninguém ligou importância ao caso.

Porém, durante algum tempo, de dois em dois meses, tornava a aparecer o mesmo anúncio e assim, o caso principiou a tornar-se suspeito. As autoridades de Cantão trataram então de pedir aos seus colegas de Xangai para averiguar a procedência do anúncio, sendo, em breve, apanhado o burlão.

Desde então, para pôr cobro às actividades dos cavalheiros de indústria que utili zavam os jornais para exercerem a sua profissão, passou a exigir--se a responsabilidade dos editores dos jornais pelos anúncios que publicavam.

* Investigador e historiador de temas da História de Macau; escritor e sinólogo (11 de Julho de 1907-1976+). Texto publicado no "Folhetim" do "Notícias de Macau", "Chinesices", 1952.

desde a p. 41
até a p.