Artes

ENTREVISTA COM BARTOLOMEU CID DOS SANTOS

Um noite, em Setembro de 1989, o grava-dor Bartolomeu dos Santos acedeu a responder a algumas perguntas a propósito da sua vida e obra. Poucos dias antes chegara a Macau, pela primeira vez. Na galeria do Leal Senado mos-trava-se uma exposição de cerca de cinquenta gravura suas, que despertava grande interesse na comunidade portuguesa e franca admiração por parte de artistas e amadores de arte chine-ses.

Também poucos dias antes fora inaugu-rada a Academia de Artes Visuais. Logo no dia seguinte, varridos os papelinhos vermelhos dos panchões, Bartolomeu arregaçou as mangas, atou em volta o vasto avental negro e deu início a um workshop sobre gravura em cobre. Pensa--se que foi o primeiro jamais dado em Macau. Vinte e dois alunos, chineses e portugueses, as-sistiam às suas aulas.

Depois desta ocasião, já voltou a Macau mais duas vezes, para dar continuidade ao en-sino de gravura na Academia. A oficina está agora perfeitamente equipada, "tanto quanto se poderia desejar", e conta com um dedicado grupo de aficionados que diariamente a utiliza. Por duas vezes já, o público de Macau pôde apreciar o resultado desse trabalho. Muito bre-vemente uma exposição será mostrada em Lon-dres e Lisboa.

Não é nada ingrato entrevistar Bartolo-meu dos Santos: é um grande conversador e vai, muitas vezes, para além das perguntas, perdendo-se em analogias e a-propósitos. E en-tão, tratando-se de Gravura, de Portugal, de li-vros ou de cinema, de História ou de viagens, de Borges ou do Avô Reynaldo, é um rio de his-tórias, contrastes e coincidências misteriosas.

Poucos artistas, que eu conheça, darão tantas pistas sobre a origem das suas obras: como lhe apareceu a ideia, como ela se desen-volveu e cruzou com outras vindas de uma ob-servação directa, ou de uma leitura, ou da me-mória de há muito atrás. Terminada a explica-ção, costuma dizer, invariavelmente: "-Mas eu não tinha nada que estar a contar estas coisas. A obra está aí e deve falar por si". E fala. Mesmo para quem nunca esteve em Lisboa, nem é lido em Borges ou Pessoa. Basta um pouco de capacidade de admiração pelo misté-rio das coisas. É a condição suficiente.

Aqui fica uma boa parte dessa conversa com o Luís Sá Cunha e eu próprio.

Nuno Barreto

BARTOLOMEU CID DOS SANTOS nas-ceu em Lisboa em 1931.

Desde muito jovem tem oportunidade de via-jar em Portugal e no estrangeiro na companhia de seu avô Reynaldo dos Santos, um dos mais reputa-dos historiadores da Arte Portuguesa.

A partir de 1961 instala-se em Londres, em re-gime permanente, como professor da Slade School of Fine Art, a mesma escola onde estudara Gravura com Anthony Gross. É hoje o responsável pelo res-pectivo Departamento de Gravura. Participou, desde 1951, em mais de 130 exposições colectivas em todo o mundo e em dezenas de exposições indi-viduais. O Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian organizou, em Outubro e No-vembro de 1989, uma grande retrospectiva da sua obra.

Fotografia de Numo Barreto

Está representado nalgumas das mais ilustres colecções públicas e privadas, tais como o British Museum e o Victoria & Albert Museum de Lon-dres, a Albertina Gallery de Viena, a Bibliothèque Nationale de Paris, o Museum of Modern Art de Nova Iorque, o Museum of Fine Arts de Boston, o Art Institute de Chicago, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian de Lisboa.

Visita Portugal com muita frequência, onde tem uma residência em Sintra.

Prepara actualmente a execução de dois pai-neis de mármore gravado a ácido, que irão decorar uma estação do Metropolitano de Lisboa.

Está representado em Portugal pela Galeria 111, em Lisboa.

N. B.

Nuno Barreto O Bartolomeu vive em Inglaterra há mais de trinta anos. Contudo, pressente-se na sua obra um forte vínculo com Portugal, não só através de referências mais directas, paisagísticas ou literá-rias, mas sobretudo pela atmosfera emocional que comunica. Este convocar Portugal à sua oficina não terá a ver com um espécie de autodefesa, uma ne-cessidade de preservar a sua identidade no meio das brumas Londrinas, dos horizontes de chami-nés e tijolo vermelho? Bartolomeu dos Santos Vivendo em Londres, tenho uma perspec-tiva de Portugal que talvez não tivesse se lá vives-se. Vivi em Portugal até 1956, altura em que parti para Londres para estudar na "Slade School". Mas antes dessa ida para Inglaterra viajei por muitos países da Europa na companhia de meu avô, Reynaldo dos Santos. Tive assim ocasião de ver muito, de conhecer muitas e diferentes gen-tes. Por isso, antes mesmo de ir para Inglaterra já havia adquirido suficiente conhecimento para me permitir uma ideia do nosso país, diferente da que teria se nunca de lá tivesse saído. Esta perspecti-va, este poder de comparação reflecte-se, certa-mente, no meu trabalho, mas não pretende ser uma forma de preservar a minha identidade. Nuno Barreto Falou em informação e em distanciamento crítico. Está bem; mas há a emoção e os sentimen-tos de saudade... Só nesta exposição, que agora apresenta em Macau, há seis títulos sobre a "Ode Marítima"; um título "Na praia", que é uma praia portuguesa; um "Nocturno", que o é também de um espaço português; "Sete figuras esperando", em Lisboa; um "Regresso a casa", um "Adeus", outra praia que, se calhar, é também portuguesa. Luís Sá Cunha Se me permite, eu concorro com o Nuno: perante apenas esta sua série de trabalhos expos-tos, eu descortino neles algo do "subconsciente colectivo português", na figuração convocada e na expectativa anímica. Associo-lhe, em geral, estas palavras: nau ou navio, cais ou praia, mar (água, atlantismo), partida, distância, espera, de-manda, mundo, cartografia, noite, presságio, descoberta, regresso, lusco-fusco ou crepúsculo, segredo, mistério. Ora, isto refere-se mais funda-mente ao universo da ânima (muito pessoano e português), à viagem e à saudade (a viagem pres-supõe a inexpressa convocatória de um mistério ou segredo a desvendar), e ao próprio clima dessa revelação - que é o da fronteira entre o dia e a noite, ou vice-versa. Já foi dito de Portugal que é um país crepus-cular, o melhor cenário do crepúsculo é a praia...
Águaforte e águatinta, Goya, de Desastres da Gucrra.

BS

Não, possivelmente não teriam. Se tivesse ficado em Portugal o meu trabalho teria evoluído diferentemente, certamente na forma, se bem que não no espírito. Mas em Portugal existem muitos artistas que têm medo de olhar à sua roda e transformarem esse olhar num espelho do mun-do que os rodeia. Há em Portugal um medo de não estar "à la page", que é de facto uma lamen-tável forma de provincianismo cultural. Pintam--se Rauchenbergs em Campo de Ourique e Ba-cons na Reboleira. Isto metaforicamente falando, claro está. De facto, curiosamente, reparará o Nuno que a maioria dos artistas portugueses que vivem no estrangeiro fazem mais uso de temas portugueses do que, em proporção, artistas que vivem em Portugal. Note, no entanto, que não estou a defender uma forma de paroquialismo cultural ou mesmo uma arte "portuguesa". Devemos estar atentos ao mundo que nos rodeia sem, no entanto, ignorarmos as nossas raízes culturais. Parace-me isto uma questão muito importante. Não é preciso dizer isto aos nossos vizinhos espanhóis que mostram uma confiança que, em muitos casos, nos falta.

LSC

Creio que vamos ao encontro daquela fase do Almada que cito de memória: "O artista não vive sem a sua Pátria; descobri isto para sempre no estrangeiro". É claro que isto é o contrário do tal paroquialismo (na expressão do Bartolomeu) e que já o Eça caricaturava naquela frase: "A veiro é a capital do aveirismo". O que há é cer-tas raízes culturais que são irrecusáveis, que se insinuam... que são a situação, a circunstância, a singular "tradição" do artista. Assim o universal é realizável no particular. O ponto de partida pode ser uma praia, não será assim?

ESPAÇO, TEMPO E MISTÉRIO

BS

É exactamente isso. A praia é mítica, a praia é uma metáfora. Sabe, a mim não me interessam só as artes visuais. Interessam-me, de facto, todas as formas de criação. A maior parte dos meus li-vros não são de arte. São livros de história, livros sobre viagens, literatura de ficção, poesia. O meu trabalho tem origens em muitas fontes, incluindo fontes literárias, musicais e de cinema. Não há ar-tista que não tenha sido influenciado por outros. Quando um artista nega influências externas, não está a ser franco. Dos artistas, diria melhor dos criadores, que afectaram ou influenciaram o meu trabalho durante os últimos anos, curiosamente, nenhum deles é artista plástico. Se a poesia de Álvaro de Campos teve uma enorme influência nas minhas gravuras dos últimos dez anos, também o cinema de Tarkovsky, a música de Schubert e as obras de Borges marcaram o meu trabalho. Em todos eles existe um elemento de espaço, de tempo e de mistério com que eu me identifico.

NB

O Bartolomeu falou há momentos que todos os artistas são influenciados e depois citou alguns nomes. São homens de letras, um cineasta, um músico, que terão contribuído para a sua persona-lidade artística, para a sua maneira de estar nas artes. Citaria agora dois ou três nomes de artistas plásticos que tenham contribuído para a sua pró-pria expressão artística?

Sete Figuras Esperando, Bartolomeu Cid dos Santos, 1988.

BS

Há imensos artistas que me interessam. Goya sempre me interessou. A pintura manei-rista também e há certas gravuras minhas de há cerca de oito anos em que se nota esse interesse. Actualmente interessa-me certa pintura espa-nhola do Séc. XVII, a pintura de Pereda e de Val-dez Leal sobre o tema da "Vanitas". Novamente temas sobre a passagem do tempo. Caspar David Friedrich, em que as figuras, sempre de costas para o observador, olham para espaços imensos. Mas estes nomes dariam a impressão de que eu es-tou constantemente virado para o passado, o que não é correcto. Muitas das minhas gravuras são à base de colagens fotográficas, fotografias que eu próprio tiro e um dos artistas do nosso tempo que eu mais admiro é Rauchenberg. Mas, de facto, os primeiros artistas que influenciaram a minha obra, era ainda muito novo, e estava na Escola de Belas Artes, foram os pintores metafísicos italia-nos, Chirico, Morandi e Campigli. A primeira pintura que fiz, quando entrei para a Escola de Belas Artes, foi uma cópia de um gesso; parece--me que era a estátua de Antinous. Por detrás, como fundo, pintei uma paisagem à Chirico, com uns arcos e umas sombras. Fui então admoestado pelo Mestre. Dizia ele: "O senhor está aqui a fa-zer coisas modernas, veja lá!". Passava-se isto à roda de 1950! Você há-de ver que, de vez em quando, nas minhas gravuras, surgem naturezas--mortas com garrafas e outros objectos. Quando não sei bem o que quero fazer, faço naturezas--mortas. São evocações do tempo. Isso dá-me um certo descanso. Aliás natureza-morta é para mim uma classificação infeliz; os ingleses usam a ex-pressão "still life", vida silenciosa, o que me pa-rece muito mais correcto e poético.

NB

A arte da gravura estava, antigamente, mui-to relacionada com os livros, através das ilustra-ções, do mapas e dos extra-textos. Muitas das suas obras transportam textos literários, parecem inspiradas por leituras. O Bartolomeu vinha no barco a caminho de Macau e já perguntava quando podia visitar os alfarrabistas da cidade! Diga lá: os livros são muito importantes para si, não são?

Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, Al-bretch Dürer (1471-1528), Xilogravura, in Apo-calipsis, 1498.

BS

São. Os livros são o labirinto do conheci-mento. Primeiro, quando se tem uma biblioteca, é preciso saber usá-la. O Borges tem um conto em que a biblioteca é um labirinto, um enigma, em que as palavras nos livros estão todas trocadas. Não vamos agora entrar nisso, basta dizer que a ideia de biblioteca como forma do conhecimento universal me fascina. Para Borges a biblioteca é uma metáfora para o nosso conhecimento, ou falta do conhecimento do mundo. Eu nasci rodeado de livros. O meu avô tinha uma biblioteca onde a Arte, a Literatura e a História se complementavam. Todas as semanas vinham livros novos, e era sempre uma festa! Eu cresci com essa biblioteca e, quando tinha dezasseis anos, um dia o meu avô disse-me: "Põe a biblioteca na ordem". Passei seis meses sentado em cima de um escadote a ordenar livros, e como ignorava quaisquer sistemas de classificação, tive que inventar um. Li nessa altura uma vasta quantidade de livros, pus a biblioteca na ordem e chumbei o sexto ano... Mas ganhei um grande gosto pelos livros! Um tio meu, Ernesto de Vilhena, tinha uma biblioteca fantástica, e em casa de meu pai eram três andares de livros! A coisa entrava já no conceito borgeano de labirinto. E agora os livros continuam a aparecer e a crescer... É como estar rodeado de amigos.

Xilogravura da página de rosto da Cró-nica do Condestável.

LSC

De facto, não sei que produto poderia, me-lhor do que o Livro, representar simbolicamente o trabalho do Homem, a sua vocação como ser de Cultura. Tem o espírito na palavra, a arte na ilus-tração, as técnicas específicas na impressão e na encadernação. Mas o objecto livro é sobretudo um produto de imprimissão e, dos tipos às gravu-ras, desde os primórdios, anda associado à gra-vura e aos gravadores, a xilógrafos e ourives. Bar-tolomeu, não terão tido a sua paixão e convívio com os livros uma influência original na sua voca-ção de artista de gravura?

UM NOVO MODO DE VER

BS

Não. Eu tornei-me gravador por acaso. Co-mecei a desenhar antes de ir para a Escola de Be-las Artes, sobretudo desenhos de paisagens, dese-nhos de Lisboa. Também de vez em quando já apareciam desenhos de conteúdo, ou melhor, de comentário político. É um tema que de vez em quando vem à superfície no meu trabalho. Mas ainda tenho desenhos de quando eu tinha dezas-sete anos em que a imagem é complementada por texto.

Fui para a Escola de Be-las Artes, para Es-cultura, mas no ano seguinte mudei para Pintura. Antes de entrar para a Escola queria ser arquitec-to, sempre me interessei por Arquitectura, mas o meu forte não eram os números, nunca foram os números, e por isso mudei as ideias. Ao fim de quatro anos na Escola, a atmosfera em Portugal era tão má, tão opressiva que decidi ir-me embo-ra. Fui para a "Slade School". Os meus primeiros três meses passei-os totalmente perdido. A ati-tude em relação ao trabalho, na "Slade", a ma-neira de pensar e agir dos ingleses eram tão total-mente diferentes daquela a que me tinha habi-tuado em Lisboa que levei, de facto, três meses para perceber o novo mundo em que me encon-trava. Em Lisboa, falava-se muito e pensava-se pouco, e o que se pensava era geralmente às es-condidas. Em Inglaterra encontrei um mundo de gente reservada, artistas com grande poder de síntese e de observação, o qual se reflectia no tipo de desenho e pintura que faziam. Aliás, deveria dizer, mais correctamente, na "Slade School", onde esta tradição de ver o objecto já vinha de longe. Nessa altura na Escola de Belas Artes, em Lisboa, para fugirmos ao academismo que nos rodeava, pintavam-se Modiglianis... Em Inglaterra, encontrei artistas e estudantes a desenhar com uma precisão, a observar com um cuidado a que eu não estava habituado. Tentei imitá-los, mas sem sucesso. Na "Slade" todos os estudantes têm um tutor, isto é, um professor/artista que é direc-tamente responsável por um determinado estu-dante. O meu tutor era um pintor chamado Will-iam Townsend, um pintor dotado de grande per-cepção e de poder de observação em relação aos trabalhos dos seus estudantes. Ao fim de três me-ses de me conhecer, olhou um dia para os meus trabalhos, que eram todos negros, e disse-me: "You should do etching, I will take you to Ant-hony Gross, who is an european". O Anthony Gross tinha um ar de "paysan" francês, de bigo-de, camisa e colete mas sem casaco, calças de bombazina. Encontrei nesse dia o artista que me iniciou na arte de gravar, e sem cujos ensinamen-tos eu não seria o que sou hoje.

Ode Marítima I, Bartolomeu Cid dos Santos, 1988.

LSC

Aproveite este balanço para se referir um bocado ao seu percurso, de aprendiz a mestre da"Slade School"...

BS

Estive dois anos em Inglaterra e depois vol-tei a Portugal. O meu pai facilitou-me coisas que geralmente não se facilitam: ofereceu-me um ate-lier, que um arquitecto desenhou. Tinha carro, atelier, um apartamento. Tinha casado e já tinha uma filha, mas, ao fim de três anos ainda não ti-nha conseguido readaptar-me aos hábitos nacio-nais. Aqueles dois anos em Inglaterra tinham-me feito ver as coisas de outra maneira, e já não podia voltar atrás. Eu já falava uma linguagem diferen-te. Esta falta de readaptação ao regressar à Pátria é uma ocorrência que eu vejo acontecer com mui-tos dos meus estudantes estrangeiros. Estão um ano fora do seu país e não há problema. Mas, se estudam durante dois anos, ou se ao fim de um ano pedem para ficar mais um, sei que muitos me perguntarão se há possibilidade de ficarem em In-glaterra. Isto porque se habituaram a um outro sistema, que pode ser melhor ou pior, mas é o sis-tema a que se habituaram, o qual, com todos os seus defeitos, e tem-nos muitos, é no entanto bom para trabalhar. Ao fim de três anos em Portugal, com pouca informação nos jornais, falta de liber-dade de expressão, gente pomposa por todos os cantos, e "paisanas" por todas as esquinas (tive um à porta durante um mês que nunca descobriu o que deveria ter descoberto), disse a mim mes-mo: "Vou-me embora!" e escrevi para a "Slade" para me aceitarem outra vez como estudante. Quando a carta chegou à "Slade" o Anthony Gross leu-a e disse: "Temos dois dias de ensino vagos em Gravura", e escreveu-me perguntando se eu estaria disposto a aceitar o cargo. Respondi na hora: "Yes, thank you". E assim fui para Ingla-terra ensinar e trabalhar em gravura. Deixei o apartamento, vendi o carro, e emprestei o atelier, o qual nunca mais utilizei. Comecei com um quar-tinho e móveis em segunda mão. Aos trinta anos recomecei do zero e nunca mais olhei para trás. De vez em quando em Inglaterra perguntavam--me (ainda me perguntam) "Why don't you have a British passaport?", ao que eu respondia "Be-cause I am Portuguese". E sou. E, se bem que a minha forma e maneira de pensar tenha mudado ao longo destes anos, continuo exteriormente a portar-me como português. Faço uso dos braços e das mãos para pôr ênfase no que digo (o que émuito latino), falo mais alto, excito-me mais... Com um pé em Inglaterra e um pé em Portugal, às vezes pergunto-me onde pertenço. É uma dicoto-mia que se reflete no meu trabalho, meio expres-sionista e meio clássico.

BORGES, ÁLVARO DE CAMPOS GOYA E BUÑUEL

NB

Na altura em que eu vi pela primeira vez as suas gravuras, o Bartolomeu andava pelos labi-rintos, 1960 e tal, não?

BS

Fins dos anos sessenta, começo dos setenta.

NB

Eram uns labirintos! Pelo menos havia um que parecia uma paisagem de Londres mas, de perto, via-se que era um labirinto. Como chegou aos labirintos?

BS

Eu digo-lhe. Fui para a América ensinar, dar um Workshop de gravura no Verão de 69. Era na universidade de Wisconsin, em Madison. Con-vivi lá com o Jorge de Sena. Tínhamos grandes conversas ao calor da noite, na varanda, que du-ravam pela noite adiante. Mas voltando aos labi-rintos: antes de partir para a América, a Paula Rego disse-me: "Devias ler o Jorge Luís Borges; com certeza que te interessa". E com os labirintos também houve um filme que está igualmente na origem destes; que, revisto há pouco, achei total-mente datado. É o "2001" do Kubrik. Tinha visto o filme em Londres. Parti para os Estados Uni-dos. Uma tarde em Madison, olhando para a montra do "University Bookshop", sózinhos, em lugar em destaque, estavam dois livros do Borges, os "Labirintos" e as "Ficciones". Lembrei-me da recomendação da Paula e disse-me: "Pronto, va-mos comprar". A combinação do "2001" e das obras do Borges está na origem dos meus labirin-tos. Regressado a Inglaterra, peguei numa gra-vura que havia deixado meia feita, retrabalhei-a e o resultado foi a quebra total com o meu trabalho anterior. Para mim, eu divido o meu trabalho em antes e depois dos labirintos. Há certas alturas em que num artista tudo está pronto para uma quebra com o trabalho anterior, para um evolução drás-tica noutras direcções, sem que o artista esteja consciente disso. É nessas alturas que uma pala-vra ouvida, um som, um filme, um livro, uma con-versa de acaso, um quadro há anos visto mas já es-quecido, podem ser a causa dessa mudança. Suce-deu-me o mesmo com a "Ode Marítima" do Álvaro de Campos. Estava em Tavira, julgo que em 51, no serviço militar. Era um serviço militar cal-mo, pouco havia para fazer, as guerras de África ainda não tinham chegado. Numa pequena livra-ria que ainda hoje lá existe, encontrei as obras completas de Álvaro de Campos. Desde o dia em que li a "Ode Marítima" que quiz fazer uma série de trabalhos com base nela; não ilustrações, mas baseados nela. No entanto, só cerca de vinte e cinco anos depois da primeira leitura é que conse-gui fazer uma primeira série, e isto porque um dia, na feira de Sintra, comprei um postal que re-presentava um navio e tinha do outro lado uma mensagem escrita em S. Vicente de Cabo Verde, nos anos 20. Esta combinação de tempo, distân-cia, imagem e anominato, esteve no início de toda a série, a qual culminou com as seis grandes gra-vuras intituladas "Ode Marítima" que criei recen-temente. Aconteceu que todas estas gravuras com temas pessoanos ou representando o próprio Poeta, foram publicadas durante aquele período de euforia e inflação pessoana que começa agora a esmorecer. Foi uma pura coincidência...

LSC

Falou do tema dos labirintos como uma fronteira em meio do seu percurso artístico, refe-riu-se à séria inspirada na "Ode Marítima" de Pessoa. Quer falar de outras linhas, outros mo-mentos?

Nocturno, Bartolomeu Cid dos Santos, 1988.

BS

Há uma outra série de gravuras, estampas a preto e branco, representando bispos ou figuras petrificadas. Vão de 58 até aí a 63. Quando era es-tudante na "Slade", vi um filme do Buñuel que me impressionou muito. Geralmente este filme é atribuído ao Dali porque ao Dali atribui-se tudo! E, no entanto, o Dali foi responsável unicamente por uma cena. O filme é "A Idade do Ouro" e tem uma cena, famosa, que representa bispos em es-queleto à beira mar, nas rochas. Esta imagem nunca mais me saiu da cabeça. Alguns anos de-pois esta memória transparecia nas gravuras que estava fazendo. Outra experiência, outra memó-ria que também marcou esta fase da minha obra foi uma experiência que nunca esquecerei: o ter visto desenterrar o rei Henrique IV de Castela no convento de Guadalupe. É um história longa e fascinante de como o seu caixão foi encontrado. Sabia-se que ele e a rainha, (D. Joana de Castela, infanta portuguesa que era filha de D. Duarte e de D. Leonor), tinham sido enterrados em dois grandes túmulos de bronze. Estes desaparece-ram, presumivelmente fundidos, e os corpos fo-ram descobertos atrás de um altar, numa cripta, em dois caixões de madeira. Eu encontrava-me em Madrid com o meu avô e formou-se nessa al-tura uma comissão, de que este fazia parte, para fazer a abertura oficial dos túmulos. Eu, como se diz em popular, "fui à pendura". Entre os outros, faziam parte da comissão o professor Marañon, médico e historiador, e o doutor Gomez Moreno, figura pequena, vestindo de preto, e ostentando uma barbicha branca, o qual era à altura o direc-tor dos Monumentos Nacionais de Espanha. Assistimos à cerimónia, à noite, na grande igreja, depois de tocarem Bach no órgão, e à luz de fortes projectores. Antes, havíamos visitado a sacristia, onde à luz de uma lâmpada eléctrica, admirámos os "Zurbarans". O rei, de botas de montar, en-volto numa capa de veludo muito bela, estava na-turalmente mumificado. Era uma cena à Buñuel; como não o podiam tirar da cripta passaram a ca-beça para mim, e eu pu-la no altar. Aparte as fo-tografias oficiais, eu tirei duas fotografias com uma máquina muito primitiva que tinha. Essa ex-periência ainda hoje está na minha memória. Da associação desta experiência com os filmes de Bu-ñuel e as "Vanitas" que atrás mencionei, saiu a série dos bispos. Estilisticamente, se têm memó-rias de Chirico, também devem muito às gravuras de Goya. Isto, sei-o hoje, na altura não o sabia. Uma vez, quando estava a fazer esta série, Will-iam Townsend estava comigo na inauguração duma exposição, na Leicester Galleries, de um artista à altura muito popular pelos seu quadros neo-românticos mas hoje já esquecido, e apresen-tou-me então ao Francis Bacon como "um artista português que também faz Papas". O Bacon estava nessa altura pintando, ou tinha acabado de pintar, a sua série sobre o Papa Inocêncio pintado por Velasquez. Eu imediatamente corrigi esta apresentação dizendo que, se era português, não pintava papas mas sim gravava bispos e estes de muito pequenas dimensões...

Estava agora a pensar noutra série antiga. Quando cheguei a Inglaterra, a cidade era negra. O Nuno ainda conheceu uma Londres preta. Agora está a ser lavada. É uma cidade diferente. Mas até era bonito aquele negro que contrastava com o branco onde a fuligem victoriana não havia entrado. Mas, quando cheguei a Londres em 56, vi pela primeira vez aquele céu cinzento muito claro, totalmente oposto ao céu que conhecia em Portugal. Tudo se recortava no céu: eram as cha-minés, os sinais de comboios, de perfis mordentes e diferentes dos que agora existem, as locomoti-vas a vapor e os seus fumos. À noite a cidade lem-brava um poema do William Blake. Londres ti-nha nessa época um ar sempre nocturno. Fiz mui-tas gravuras com chaminés e sinais.

PAISAGEM COM BARCO AO FUNDO

NB

Há muitos barcos nas cerca de 450 gravuras que até hoje assinou. Barcos ao longe, barcos em tempestade ou naufragados, escunas e paquetes de passageiros, cartas marítimas antigas e moder-nas, ou ainda gente que se despede ou que espera a chegada do vapor.

BS

São tudo barcos. As pessoas continuam à es-pera... O país também...

NB

Donde vêm todos estes barcos? Da sua me\-mória de Portugal, do porto de Londres, das suas leituras ou das viagens que gostava, um dia, de poder fazer?

Four Bishop's, Bartolomeu Cid dos Santos, 1962.

BS

Não, não, vêm de mim. Não me pergunte porquê porque não sei. Mas, desde pequeno que os barcos me fascinaram. Lembro-me de, quando era pequeno, tinha uns cinco ou seis anos, ir ver os barcos às docas na companhia do meu tio avô e padrinho, João de Vilhena, um excêntrico que co-leccionava rótulos de garrafas e encadernações que arrancava aos livros e espalmava em cartões como se fossem borboletas. E lembro-me de ver, no tempo da revolta dos marinheiros, um navio, na doca da Rocha, todo esburacado...

LSC

Em todas as tradições, em todos os tempos, o barco surge-nos como símbolo. Não lhe per-gunto a simbologia, mas que significado para si tem o barco?

BS

Não sei, mas até gostaria de saber. A minha casa em Sintra está cheia de barcos. Modelos anti-gos de navios de vela, de navios a vapor; de livros sobre barcos, bem como de livros sobre viagens e mapas. Aqui em Macau visitei o Museu da Mari-nha, que achei fascinante. São mundos interiores autónomos e com vida própria. Um barco tem o seu carácter, a sua personalidade; para mim é como se fosse um ser vivo. Talvez por isso eu o use como uma espécie de metáfora. Pode ser tomado como uma unidade total na imensidão do oceano.

A GRAVURA: A NEGRO, EM PORTUGAL

NB

Bartolomeu, quase todos os artistas portu-gueses fizeram ocasionalmente gravuras. Mas gravadores de vulto e trabalhando continuamente há pouquíssimos. Quer nomear alguns dos que lhe pareçam mais interessantes?

BS

Portugueses?

NB

Portugueses...

LSC

... Eu gostava de sugerir que ao discursoviesse um pouco da história da gravura em Portu-gal, até porque não há nada escrito sobre isso..

BS

Comecemos pelo princípio e digamos que até ao nosso tempo, por razões que me escapam, não fomos um país de gravadores. Não tivemos nem Mantegnas, nem Dürer, nem Piranesis, nem Goyas. As primeiras gravuras de que me recordo são as da "Vita Christi" do Séc. XV e em madeira. Do Séc. XVI encontram-se, sobretudo, em livros, veja-se, por exemplo, a gravura em madeira re-presentando D. Nuno Álvares Pereira, na sua Crónica. Mas são quase todos trabalhos de rotina. Do Séc. XVII pouco conheço, se bem que me re-corde de uma gravura de Josefa de Óbidos para os "Estatutos da Universidade de Coimbra". O Séc. XVIII é mais promissor e Vieira Lusitano e Car-neiro da Silva são de mencionar. De Joaquim Carneiro da Silva, fundador da Aula Régia de Gravura possuo o manual de gravura de Abra-nham Bosse, publicado em Paris, e que lhe per-tenceu. Está cheio de notas manuscritas e tem as medidas para a prensa que mandou fazer e que se encontra hoje na Escola de Belas Artes. É um li-vro fascinante e que tenho na minha gaveta da "Slade", pois uso-o frequentemente. Dá-me um certo prazer ter em uso corrente um livro que per-tenceu a um grande gravador português. Sequeira deve ter sido o primeiro artista português a expe-rimentar com a litografia, então recém criada. O Século XIX também é de facto um vazio de grava-dores. Tudo isto é de estranhar se pensarmos que no Século XVI os dois Feitores portugueses em Antuérpia, Rodrigo e Brandão, receberam do seu amigo Dürer, segundo o diário deste, além de pinturas, cerca de uma centena de gravuras que certamente acabaram em Portugal.

Cabeça de Henrique IV de Castela.

Fotografia de Bartolomeu Cid dos Santos.

LSC

A do rinoceronte, que toda a gente deve ter visto...

BS

A do rinoceronte, que deve ter sido tirada de um desenho enviado a Dürer. Se ler os diários deste, neles se fala muito de Portugal, ou melhor, de portugueses. Há dois grandes diários de artis-tas no Século XVI. O do Cellini, que é o diário de um artista extrovertido e em permanente admira-ção por si próprio. Esse é um deles. O outro é o diário da viagem que Dürer fez aos Países Baixos. É uma mistura de livro de contas e de relatório. Sempre que dava ou recebia um presente - e dava e recebia muitos - registava sempre os seus valo-res. Mas o número de gravuras e desenhos que ele deu aos seus amigos portugueses foram muitos. Os feitores mandavam-lhe papagaios, ovos de avestruz, coisas exóticas e, em troca, ele retribuía com gravuras. Esta presença da gravura nórdica em Portugal em nada afectou as nossas artes, se bem que, curiosamente, quatro baixos-relevos em Santa Cruz de Coimbra sejam tirados de gravuras do Dûrer. Isto mostra que as suas gravuras eram conhecidas ao tempo em Portugal.

É de facto preciso chegarmos ao Século XX para encontrar um primeiro grande gravador por-tuguês, hoje quase desconhecido do público e ignorado da crítica. Trata-se de Sousa Lopes, um pintor vindo do naturalismo, que ainda conheci, e que pintou algumas grandes composições para o Museu Militar.

NB

Fez gravuras em aguaforte sobre motivos deguerra, não?

BS

Sim, fez uma série de gravuras sobre a guerra de 14 que são extraordinariamente pode-rosas. De todos os artistas ingleses da época, e fo-ram muitos que trataram o tema da guerra, ne-nhum é comparável ao Sousa Lopes.

NB

Ele aparece de geração espontânea em Por-tugal? Quero dizer, com quem é que ele aprendeu gravura?...

o Rinoceronte, Albretch Dürer, xilogravura, 1515.

BS

Deve ter aprendido em França, mas não sei com quem. Seria altura de o redescobrir. O Diogo de Macedo esteve cerca dos anos 20 em Paris. Foi amigo do Modigliani e de muitos outros artistas. Era um grande raconteur. Também este fez algu-mas gravuras de qualidade. Também está esque-cido. O mesmo sucede a Francisco Franco, o es-cultor, que em Paris fez algumas pontas secas e gravuras em madeira. E Milly Possoz que, tam-bém em Paris, executou belas pontas secas na li-nha de uma Marie Laurencin. Houve mais alguns, mas não se podem nomear todos. Em 56, parece--me que foi em 56, criou-se a "Cooperativa de Gravadores". Estava eu em Inglaterra. Quando regressei já ela estava a funcionar e nela me ins-crevi. Havia já bastantes artistas a trabalhar na Cooperativa. Partia-se do zero.

NB

Como o Pomar.

BS

O Pomar, o dr. Vieira Santos, médico, mas de facto um dos impulsionadores da Cooperativa, o Sá Nogueira...

NB

Alice Jorge...

BS

... a Alice Jorge, o Jorge Barradas e outros. Quero dizer, foi esse núcleo que lançou a gravura contemporânea em Portugal. Aprenderam à custa de livros e de experimentar.

NB

Não havia praticamente gravura em Portu-gal.

BS

À parte as excepções que mencionei, de fac-to não havia. Como também não havia equipa-mento ou o que havia estava em perfeito estado de abandono. Lembro-me, quando estava na Es-cola de Belas Artes, de ver a grande prensa de gravura datando do Século XVIII que há pouco mencionei, bem como mais duas prensas, uma de-las para gravura em madeira, e que ninguém sabia trabalhar com elas... Hoje de facto, pode-se dizer que há muitos gravadores em Portugal, alguns de grande qualidade.

NB

Contudo havia em Portugal uma instituiçãoque se dedicava à gravura para fim de documen-tos, de papel moeda...

LSC

... A Imprensa Régia, que tinha a funcionar em anexo a Real Fábrica de Cartas de Jogar...

BS

Havia essa instituição. Deve ser de onde vem a actual Casa da Moeda. Não tenho a certe-za, mas não tinha realmente que ver com a gra-vura como forma de criação artística. Quanto às cartas de jogar de que o Luís fala, parece-me que houve uma fábrica de cartas de jogar fundada no tempo do Marquês de Pombal...

De facto foi a Aula Régia de Gravura, fun-dada no reinado de D. João VI e dirigida por Car-neiro da Silva, que já mencionei, que está na ori-gem da nossa gravura artística. Julgo que estava situada no Convento de S. Francisco, em Lisboa, onde hoje está a Escola de Belas Artes, que possi-velmente foi a sua continuadora. Lembro-me, quando era estudante na Escola, de entrar um dia numa pequena sala e que nela se encontravam a monte centenas de chapas de cobre. Tratava-se do corpus da Aula Régia de Gravura! Hoje creio que fazem parte da calcografia nacional, que é uma destas organizações culturais que em Portu-gal nascem nado-mortas...

NB

Dos artistas gravadores actuais mencionaria alguns?

BS

Não. Acho que não devo mencionar nomes mas posso no entanto dizer que há hoje muito bons gravadores em Portugal, fazendo uso de to-das as técnicas que se conhecem e, como em tudo, há uns que são mais interessantes do que outros.

LSC

Será que Portugal nesse aspecto está mais atrasado?

BS

Não. Em Portugal já existem hoje alguns ateliers de gravura, há mesmo artistas que possuem a sua própria prensa. Mas, evidentemente, e já falámos disso, o grande impulso foi dado pela "Gravura".

LSC

Há agora uma oficina em Macau, não é?

BS

E agora há efectivamente, uma em Macau, a qual eu diria que está a par de qualquer boa oficina de gravura ou atelier na Europa. E o interesse que já há hoje em Macau pela gravura é idêntico, se bem que ainda em menor escala, ao que já de há anos para cá existe em Portugal. Hoje, muitos dos nossos gravadores têm um nome internacional, e também já acontece artistas estrangeiros irem trabalhar a Portugal.

LSC

O que não acontecia antes...

Bartolomeu dos Santos

E há muitos portugueses que estudaram gravura, uns em Londres outros em Paris ou na América. Um que, que eu saiba, nunca trabalhou fora de Portugal e que nunca teve aprendizagem artística, foi João Hogan, marceneiro por treino, bebedor por gosto e grande gravador, além de pintor.

DA MADEIRA AO "LASER"

LSC

Podia abordar agora o futuro da gravura, tendo em conta a entrada da fotografia, dos progressos da impressão e dos novos materiais, da Química, do laser e de todas as implicações dessas inovações nas técnicas da gravação e da impressão?

BS

Há uma coisa curiosa, e que é a de que todas as técnicas de gravura hoje usadas por artistas, nenhuma delas foi inventada por estes mas sim por técnicos, cuja intenção era melhorar a forma de reprodução e a velocidade de impressão. É bom, no entanto, notar que nos primórdios da gravura a diferença entre o artesão e o artista, se é que a havia, era muito nebulosa. As primeiras gravuras que apareceram eram em madeira, que foi a primeira forma de reprodução em massa que se conheceu. De alguns blocos publicaram-se milhares de provas. Os temas eram religiosos, isto é, promoção da iconografia dos santos, por exemplo, mas também os havia políticos, do tempo da Reforma, atacando o Papa. Mas, se a gravura em madeira era fácil de imprimir, não permitia grande detalhe. O buril, outra técnica, era usado pelos ourives da prata e do ouro para decorar as suas peças com desenhos incisos. Mantegna, em Itália, e Dürer, na Alemanha, foram dos primeiros artistas a adaptar essa técnica à gravura. Também foi Dürer um dos primeiros artistas a usar a aguaforte, a qual era, originalmente, usada por armeiros que gravavam decorações a ácido nas armaduras que faziam. Tintavam esses desenhos e tiravam provas em papel de que faziam um catálogo de modelos para mostrar aos clientes. De aqui, a ser aproveitada por artistas, foi só um passo. A aguaforte e o buril também foram excelentes instrumentos para executar cópias de pinturas. Foi assim que muitos dos grandes artistas da Renascença passaram a ser conhecidos noutros países. Esta actividade também marcou o início da gravura como meio de reprodução, em oposição a criação. Este uso da gravura desapareceu com o aparecimento da fotografia. O Luís pega no "Ilustrated London News" do Século XIX que era todo ilustrado com gravuras copiadas de fotografias. No dia em que a fotolito foi inventada este exército de copistas deixou de ter razão de ser e desapareceu. E, falando de fotolito-grafia, esta é um sucedâneo da litografia em pedra, inventada no começo do Século XIX por Sennefelder. Foi esta uma técnica que, pela sua velocidade de impressão e capacidade de reprodução, revolucionou as artes gráficas no começo do Século passado. Goya, no fim da sua vida e exi-lado em Bordéus, foi um pioneiro do seu uso como forma de criação artística. Hoje todas estas técnicas, e muitas outras que não mencionei, só se mantêm vivas pelo uso que os artistas fazem de-las. No nosso tempo, a serigrafia é outra técnica que os artistas adaptaram para os seus fins e o mesmo se pode dizer da fotografia, a qual combi-nada com técnicas tradicionais oferece surpreeen-dentes possibilidades criativas. Hoje também já usamos xeroxes, lasers, e mesmo faxes. Absor-vem-se novas técnicas sem pôr de parte as antigas.

NB

Quer agora falar sobre o seu estúdio, o es-paço em que normalmente trabalha? É um sítio reservado ou aberto? Recebe lá pessoas? Traba-lha quando os amigos o visitam?

BS

Eu sempre trabalhei no atelier de ensino na "Slade School". Nunca seria capaz de passar dias inteiros a "ensinar". O meu ensino é empírico, isto é, é feito à base da demonstração, da prática e do exemplo. Por isso, os ateliers de gravura da "Slade" foram de facto transformados por mim numa grande oficina de gravura onde os professo-res (somos sete) trabalham lado a lado com os es-tudantes. Habituei-me assim, a trabalhar, ro-deado de gente, e por isso em nada me perturba. Também há pessoas que vão visitar os ateliers; isso às vezes pode causar uma certa perturbação, mas se não tivéssemos uma reputação assegurada ninguém nos viria visitar... Mas, se quero traba-lhar com sossego, posso trabalhar no atelier nos fins-de-semana, o que faço regularmente. O que é preciso entender é que uma escola de belas artes, para ser viva, tem que ser um centro aberto à dis-cussão e onde a única diferença entre o professor e o estudante, é o primeiro ter mais frequência que o segundo.

Sintra, Bartolomeu Cid dos Santos, 1988.

NB

Portanto, a convivência com gente mais nova, com os alunos, é-lhe importante e estimu-lante?

BS

Claro que é. E é fascinante ver o trabalho de jovens artistas a aparecer diante de nós. E, assim como eu critico o trabalho deles, eles também cri-ticam o meu trabalho e eu estou-lhes reconhecido por isso.

On the beach, Bartolomeu Cid dos Santos, 1987.

NB

E agora?

BS

Estou pensando em montar um atelier em Portugal. Um dia destes reformo-me da "Slade", como professor, claro está, não como artista por-que um artista nunca se reforma, e nessa altura te-nho que ter um local para trabalhar. Sei que pode-ria continuar a fazer lá o meu trabalho, mas certa-mente que nunca seria em permanência, pois é preciso dar o lugar aos novos e não interferir com eles. O que é certo é que, seja como for, seja em Portugal, em Inglaterra ou em qualquer outro sí-tio, continuarei a trabalhar em gravura e, muito possivelmente, também em pintura, pois a minha gravura, nesta altura, aponta nessa direcção.

Novembro passado Graça Morais expôs em Macau, no Jardim de lou Lim loc. A pintora trouxe quadros grandes, pintados óleo, os rostos graves de mulheres e as distâncias no amor. Trouxe também desenhos, apontamentos de viagem, registos mais simples da sensibilidade.

Graça Morais divulgou entre nós, através da pintura, o que de bom vai su-cedendo em Portugal. Mostrou a sua técnica, o seu universo teórico, as suas influências e O ténue resíduo da pre- sença de seus mestres. MoStrou aos ar-tistas plásticos de Macau uma lingua-gem diferente, diversemte feren-ciada, uma experiência transculturalque, evidentemente, tem algo de seme-Ihante com o trabalho dos pintores desta cidade portuguesa do Sul da Chi-na

Também a pintora nã esquece os seus primeiros objectos, os que mais decisivamente lhe formaram olhar. Lado a lado com a presença africana e a refe-rência às vanguardas contemporaneas, permanece a memóna do Portugal, transmontano.

O Presidente da Républica, doutor Mário Soares, de visita a Macau, não perdeu o ensejo de visitar a exposição, ainda inédita em Portugal, e cumprimentar Graça Morais, presente na inaugura-ção a convite do Instituto Cultural de Macau.

desde a p. 186
até a p.