Imagem

A REVOLUÇÃO, O JUIZ E UM JORNALISTA PIONEIRO
Notícia breve da "Abelha da China"

João Guedes*

O cirurgião José de Almeida, o. padre frei António de S. Gonçalo de Amarante e o tenente-coro-nel Paulino Barbosa: estes, três dos personagens que assistiram em 1822 ao nascimento do primeiro jornal de Macau, que seria também o primeiro da Ásia Oriental. Paredes meias, vencidos, mas preparando desde logo a desforra, o juíz Miguel de Ar-riaga Bru n da Silveira, o governador José Osório de Castro Cabral e Albuquerque e o barão de S. José de Porto Alegre, entre outros, que rejeitavam "ab initio" esse filho do escândalo que era a liberdade de imprensa dada pela revolução do Porto às colónias da Coroa.

A "Abelha da China", semanário das quintas--feiras de Macau, que era também (espant e-se!) a folha oficial do governo, reivindicou para si o estatuto de primeiro jornal de toda a Ásia a Leste da Índia, e para o seu redactor o de primeiro jornalista de um mundo onde, ironicamente, existia imprensa há mais de mil anos. O nascimento do jornal resultou de um "parto" difícil e dramático, provocado pelo choque inevitável do liberalismo que avassa lava o mundo, contra o "status quo", antigo e aceito, do regime monárquico absoluto. Este, e m matéria de pa-lavra escrita, vinha, com ligeiras alterações (essencialmente provocadas pela expansão colonial de quinhentos), a percorrer imperturbável a história desde o pri meiro Rei, envolto ainda no pó da catedral de Zamora e empunhando os códices antiquíssimo s dos visigodos e os textos dos doutores da Igreja, como se fossem os únicos produtos possí veis das máquinas de Gutemberg.

A imprensa Ocidental, também pioneiramente introduzida na Ásia pelos portugueses (Jes uítas) do século XVI, vivia de facto há séculos em Macau, mas só a lei resultante da Revolução Liberal de 1820 permitiria o aparecimento de um jornal semelhante aos que desde há mais de cem anos formavam a opinião pública e influenciavam os destinos políticos da s nações europeias. Antes da lei libertadora apenas obras pias saíam das prensas da Dioce se de Macau.

A "Abelha da China", cujo nome comportava uma clara intencionalidade política (picar o "es ta-blishment"), viu a luz do dia numa quinta-feira, dia 12 de Setembro de 1922.

"Havendo o Leal Senado incumbido a redacção do presente periódico, julgamos ser uma das principais obrigações de um redactor o expôr com verdade e com franqueza os motivos que aceleraram a gloriosa façanha sucedida no dia 19 do mêspassa- do, dia memorável, em que os macaenses arvoraram o Pavilhão da Liberdade e derrocaram o horrendo colosso do Despotismo, que tantos anos haviam suportado. Confessamos, todavia, que est a tarefa é superior às nossas forças; mas nem por isso deixaremos de mostrar o quanto de sejamos cooperar da nossa parte para a justificação de um facto que pôs termo à arbi trariedade e que consolidou os direitos e os deveres do Cidadão, instalando-se entre as salva s de um contentamento público, e incessantes vivas de alegria, um Governo Provisório, segun do a vontade geral de todos os moradores, o qual, no pouco tempo da sua instalação, tem dad o sobejas provas do seu patriotismo, do seu zelo e da sua actividade pelos interesses naciona is". Este, um excerto do primeiro editorial da "Abelha", saído do ousado aparo de Frei Ant ónio de S. Gonçalo de Amarante. A citada prosa definia com resolução e desassombro os objectivos do jornal, situando-o claramente no campo do liberalismo, não como instrumento pa ssivo das novas ideias, mas como arma ideológica que não cessaria desde o primeiro dia de desferir contundentes estocadas sobre a "reacção" legitimista.

Num terreno completamente "minado", desde logo a "Abelha" serviu os liberais como inst rumento de defesa (mantendo embora sempre a ofensiva), tribuna de doutrinação política e porta-voz. O projecto foi o resultado natural de um tácito consenso, forjado e amadurecido n o decorrer de um processo político que se desenvolvia em crescendo. O liberalismo chegava à cidade nos brigues e escunas da longínqua Metrópole através de oficiais e funcionários, que eram cada vez em maior número. Na colónia portuguesa, por seu turno, osportadores do nov o espírito juntavam-se a americanos e ingleses difundindo as ideias e tornando mais consistent es as consciências liberais. À medida que estas hodiernas concepções germinavam, abriase também um fosso entre dois campos. Num, postava-se uma oposição heterogénea e do out ro o poder localizado em torno da Ouvidoria, Leal Senado e do Governador, instituições que formavam o governo odiado.

Uma história por fazer

"A falta de confiança, pois, que ele (o povo de Macau) tinha no governo e o aferro com que este pretendia entronizar-se, valendo-separa esse fim de modos não só impróprios, mas até indignos do carácter português, foi a causa principal por que, reiteradas vezes, se apresentou ao Senado a necessi dade que havia de um governo que obstasse e servisse de barreira à torrente impetuosa de males que ameaçavam o comércio; um novo governo que impedisse uma inevitável e próxima anarquia; pois que tudo lhe augurava um futuro assaz desagradável e das mais funestas consequências, uma vez que as coisas continuassem do mesmo modo que até ali continuado haviam, isto é: conservando-se no lugar uma das autoridades (o Ouvidor Miguel de Arriaga, cuja exclusão exigiam) como fonte e origem donde brotava todo o mal ao comércio e, por consequência, à cidade inteira". Isto dizia a "Abelha", resumindo as razões latentes de uma revolta que apenas esperava o pretexto para eclodir. Tal pretexto surgiu logo que chegaram as primeiras notícias da Revolução de 24 de Agosto de 1820, levando-a a irromper triunfante nas ruas de Macau, arrasando oposi-çóḽs com tanto ímpeto quanto dura tinha sido a repressão.

A história do Liberalismo em Macau continua ainda por fazer, mas pode dizer-se que as forças em confronto no Território possuíam, fundamentalmente, as mesmas características das de Portugal, seguindo também um percurso político semelhante. O epílogo sangrento da guerra civil da longínqua Metrópole, impossível em Macau por falta de dimensões geográficas e de gente em número capaz, foi por isso mesmo evitado, mas nos anos da "Abelha" a colónia tornou-se um espelho pequenino dessas convulsões, que reflectia quase passo a passo.

Como afirmava a "Abelha", Macau estava desde há muito sujeita à vontade de um reduzido número de pessoas que geriam a cidade segundo a flutuação dos seus interesses pessoais, ligados em exclusivo ao comércio do ópio, o único sustento da economia local. Capitaneava este grupo Miguel de Arriaga Brun da Silveira, o jovem e talentoso magistrado que, às suas qualidades de senhor do governo e diplomata exímio, juntava a de hábil comerciante activo e bem sucedido. Multiplicando os lucros, ignorava a lei e pouca importância concedia à ét ica, dedicando-se indiferentemente - e com o mesmo entusiasmo - à magistratura, ao governo de Macau e ao comércio. Revestidos de poderes muito mais amplos do que os de um juiz dos nossos tempos, comportava-se como autêntico governador, confi-nando este à tarefa de referendar despachos que ofi-cialmente deveriam sair exclusivamente da sua lavra. Manter a paz nos qua rtéis e o sossego nas ruas eram as únicas competências que Arriaga lhe permitia exercer. Apoiado numa rara habilidade política, Arriaga aliara a si a maior fortuna de Macau, ca-sando com a filha do Barão de S. José de Porto Alegre. Esta figura extravagante e perd ulária, que vivia do comércio do ópio, tinha entrada fácil (segundo voz corrente) nos corredores da corte do Rio de Janeiro, o que convinha plenamente ao Ouvidor. Para além de Porto Alegre, um grupo fiel acompanhava Arriaga apoiando-o em todas as decisões que eram superior, e invariavelmente, abençoadas pelo Visconde de Rio Preto, Governador-Geral da Índia, senhor todo-poderoso do Império Colonial português, valido de EI-Rei D. João VI e protector de Arriaga. Talento, visão política e probidade eram as cores com que era vis to embora, à boca pequena, circulassem histórias que o enlameavam. Estes segredos não ter iam tido consequências se não tivesse entrado em cena a "Abelha", transformando os sussurro s em letra de forma. As revelações constituíram pedra fundamental da campanha de destru ição da figura do poderoso Ouvidor, encetada logo após os primeiros golpes resultantes d os ecos da Revolução do Porto, que abalaram o seu poder. Com todo o entusiasmo, a "Abelha" demonstrou desde logo até que ponto era possível manipular palavras, transformando-as em verdadeiros projécteis de efeitos capitais. Ao mesmo tempo instituía, pode dizer--se, uma escola e tradição que nunca morreriam na imprensa de Macau: as "Cartas ao Director" (rubric a que no semanário recebia o título lacónico de "Correspondência") eram dessa faceta exemplo, ao dar abrigo à opinião alheia a fim de personalizar ataques, ficando reservado ao redactor o papel de crítico de sistemas e propagandista de ideias. Arriaga passa então a ser o alvo preferencial desta orientação, como consta da primeira carta aberta dirigida contra ele. "A experiência de uma vintena de anos que o referido senhor esteve no governo mostr ou-me o quanto era meu inimigo declarado - como é público nesta cidade -quanto devia ser meu amigo, pois, se se lembrasse, eu nunca o incomodei e sempre o servi em tudo quanto me ocupou - o que posso mostrar por documentos, uns assinados por seu próprio punho e outros por alguns dos seus apaniguados - com bastante prejuízo meu; estou certo que deixaria de me perturbar", di zia Francisco José de Paiva, abastado comerciante cuja memória, talvez por iron ia, ficou e m proporção inversa à da sua fortuna impressa em azulejo azul e branco numa n-característica e estreita travessa da cidade. A toponímia, como se não bastasse negar-lhe uma rua qualquer, foi mais longe ainda inscrevendo-o na versão mais reduzida possível: "Travess a do Paiva". Na carta aberta, Paiva recusava a Arriaga o direitode lhe contabilizar os bens, dizendo que "se ele, Ministro, julga dos meus teres pelo negócio que tenho feito em Macau, quanto não deve o público julgar dos teres dele, Ministro!!!... O meu giro comercial tem sido de duzentas e cinquenta, a trezentas mil patacas; ora pode isto comparar-se com a soma de três a quatro milhões de patacas com que o público diz que ele, Ministro, negociava e em cujo tráfico deixara (segundo o mesmo público) muitos dos seus credores numa total ruín a?..."Francisco de Paiva terminava a pública missiva citando Madame Des-houliers:

"C'est prendre assez bien ses mesures,

De venir conter ses raisons

Après avoir fait des injures".

Oposição heterogénea

Um excerto de "Cândido" de Voltaire, ou de "O Contrato Social" de Rousseau talvez se tiv esse mostrado mais apropriado que aquela citação da poetisa pastoral do século XVI. Mas o remate erudito não deixou de fazer o desejado efeito: mostrar erudição e acentuar o pro testantismo francês. Destacada marca ideológica dos progressistas de então, o francesismo militante dava azo e fundamento às acusações de "Maçons" e "traidores à Pátria" proferidos pelos absolutistas. Em resposta, a "Abelha" inseria o epíteto "Corcunda" no pron tuário das suas diatribes, oficializando a designação mais pejorativa que a burguesia revolucionária dava, em Portugal, aos absolutistas. Como Francisco José de Paiva, muitos outros comerciantes acumulavam razões de queixa pessoais (e algumas políticas) contra Ar riaga, recebendo exultantes os ventos da mudança de 1920. Chegava por fim a hora da vinganç a e da lavagem de afrontas.

Sem parte no comércio e cingidos à rígida cadeia de comando que terminava no qua rtel-general do Governador, grande número dos militares pendia abertamente para os círculo s de Francisco de Paiva, embora por motivos muito mais políticos que pessoais. Em grande par te oriundos dos quartéis do Brasil - onde o liberalismo campeava forte - constituíam inimi gos tanto mais perigosos, quanto possuíam as armas que os senhores do poder não tinham. Num campo próximo, como estes-longe dos negócios e confinados ao espartilho hierárquico da D iocese comandada com pulsos de ferro pelo Bispo D. Francisco de Nossa Senhora da Luz Chacim -muitos elementos destacados do clero macaense,cultos (e talvez por isso, liberais) e militantes, concentravam-se no Seminário de S. José onde formavam o corpo docente, iluminando com as luzes do século um sem número de alunos no Convento de S. Domingos. No primeiro, sobressaía a figura preponderante do Reitor, Francisco Pinto e Maya. No segundo, a de Frei António de S. Gonçalo de Ama-rante, reputado orador, notável panfletário e intrépido polemista. Comerciantes, padres e militares todos se uniam, ainda que por razões diversas, a fim de abater Arriaga. Pura vingança, militância política, luta pela autonomia de Macau contra a supremacia administrativa de Goa, negócios embargados ou desejos incontidos de poder, constituíam razões válidas e suficientes para obter a inscrição no partido Liberal, amplo e hospitaleiro guarda-chuva da unidade contra o governo.

O desencadear da ofensiva remonta à Sé, quando Frei António de S. Gonçalo exprimi u, em timbrado latim, a "satisfação dos povos pelo juramento da Constituição portu guesa". Ressoando nas abóbadas, as modulações da sua oratória caíam como gotas de ácido sobre a mitra do Bispo Chacim que, impotente, nada pôde fazer senão as primeiras notas do "Te Deum Laudamos" (que a "Abelha" diz ter sido vibrantemente secundado pelos fiéis que enchiam a catedral).

O tenente-coronel Paulino Barbosa, cuja origem brasileira era destacada não sem certo acinte por todos os que com ele não simpatizavam (rivais de então ou comentadores póst umos), encabeçou o ataque às instituições, conquistando o Leal Senado através de votação esmagadora do povo (exclusivamente português, entenda-se), reunido no largo f ronteiro.

A "Abelha" assinalou, efusiva, a mudança, deixando um retrato pitoresco da festa da "re denção".

"... À noite, a cidade iluminou-se toda apresentando à vista um espectáculo bril hantíssimo que seria difícil, ou talvez impossível, descrever"... "Da casa do Governador das Armas, até quase a fortaleza do bom Parto, apresentava ao espectador um quadro maravilho so", dizia o semanário, falando da imponente ala, em curva suave, das mansões da Praia Grande. Do espectáculo desta avenida, destacava a ornamentação festiva das casas da Comp anhia Inglesa das Índias Orientais, e o cartaz iluminado que a do "sobrecarga" (2) espanhol ostentava, formando em grandes letras de lâmpadas coloridas um viva à Constituição. A varanda do boticário Joaquim dos Santos "também não deixava a desejar", ostentando toda a sorte de emblemas alusivos, dominados por um painel indicando que, além de botica, era também "Laboratório Constitucional" - designação cujo significado correcto parece não se saber bem qual era.

A assinalada participação estrangeira na alegria geral decorria, sem dúvida, da simpatia com que era vista a nova via política escolhida pelos portugueses. Mas, a vistosa manifestação internacional de apreço não voltaria a repetir-se face ao rumo dos aco ntecimentos. De facto, com a mesma alegria com que festejava a Constituição, Macau ilumi nava--se de novo a breve trecho para festejar a abolição da Constituição e o regres so de D. Miguel e, apenas alguns meses mais tarde, ainda para festejar de novo o ressurgime nto da Constituição, que festivamente abolira pouco antes. Nesta sucessão vertiginosa, Macau tornava-se palco de uma grande opereta, onde os próprios actores mal entendiam o enred o, e os espectadores ingleses, americanos, franceses ou alemães acabavam por reconhecer ter perdido o fio à meada logo a partir do primeiro acto (3). Na confusão geral, só a "Abelha" parecia perfeitamente consciente do seu papel, publicando os textos orientados da ideologia e o s inflamados artigos que se destinavam a manter vivo o entusiasmo popular. Neste âmbito, ao mesmo tempo que, fastidiosamente, explicava as novas orientações da alfândega, explorava em estilo de panfleto o choque provocado pelo assassinato de Luís Prates, um conhecido e bem -quisto liberal, atribuindo o acto aos "Corcundas". Em seguida, denunciava com contagioso dra -matismo a tentativa de sublevação e detenção nos calabouços da fortaleza do Monte do Ouvidor Arriaga e o envio, a ferros, para Goa, do Governador Castro e Albuquerque.

A Gazeta cinzenta

Manter viva a chama popular em torno do novo regime era, aliás, uma tarefa vital para a "Abelha", face à presença, ao largo, da fragata "Salamandra" do coronel Garcez Palha, que procurava tenazmente a falha capaz de permitir o desembarque dos duzentos homens e artilharia que trazia da capital da Índia portuguesa, para restabelecer a ordem miguelista. Às int enções de Garcez Palha juntavam-se as manobras de Arriaga que, tendo escapado com suspeita scumplicidades da sua cela do Monte, conspirava em Cantão. Os mandarins seus amigos mostrav am-se relutantes em intervir, mas o cerco em torno de Macau constituia por si só eficaz guerra de nervos, que abria irreparáveis brechas no moral da cidade. No dia 18 de Setembro de 1822, o estado de descrença atingiu o seu ponto mais baixo, permitindo o desembarque dos ho mens da "Salamandra" que, sem um tiro, ocuparam em poucas horas todos os quartéis da cidade. Depois de ter sobrevivido ao auto-de-fé de 21 de Agosto, quando os "Corcundas" já levantava m a cabeça a ponto de se reunirem para queimar, simbolicamente à porta da Ouvidoria, um exemplar do último número do jornal, a "Abelha", extenuada, já não possuía forças que lhe permitissem continuar a fazer fogo sobre a "reacção". Impresso o número 67, num Sábado 27 de Dezembro, chegou com ele o fim do sonho. Frei António cobriu nesse dia as máquinas e saiu da Tipografia do Governo, dando a última volta à chave da pesada porta ant es de abalar para Calcutá, escapando à repressão que se seguiria. À mesma hora, o cirurgião José de Almeida fugia para Singapura, trocando ali a política pela horticultura científica, opção que levou o seu nome a uma das principais avenidas da cidade-estado do Sudeste-Asiático, que ainda hoje se mantém: "D'Almeida Street". O te-nente-coronel Paulino Barbosa, chefe da revolução ou "do destempero"(como afirmava Garcez Palha), arrancad o (segundo este) pelos soldados do quarto de um amigo, onde se escondia debaixo de uma cama, p artia no porão da "Salamandra" para Goa, a fim de ser submetido ao julgamento de Rio Preto que, destituído e reintegrado no governo da Índia por uma vertiginosa sucessão de golpes e con-tra-golpes, se encontrava de novo no poder.

Os corredores do Seminário de S. José esvaziam-se de professores (presos ou em fuga), enquanto os calabouços do Monte e da Guia se enchiam em resultado das depurações nas fileiras, e dos julgamentos políticos civis. As vagas abertas não eram preenchidas: ao absolutismo escasseavam os quadros capazes de as ocupar.

José Osório de Castro de Cabral e Albuquerque tinha perdido a face, de um modo que não permitiria a sua readmissão no governo de Macau. Neste, ficava transitoriamente o paciente bispo Chacim que, com inquebrantável fé, esperava no paço que a "bebedeira dos liberti nos, infiéis e pedreiros-livres" (classificação que dava à nova ordem e aos seus seguidores) se desvanecesse, como seria de esperar dos efeitos do álcool. Mas, entretanto, A rriaga vol-tava, reocupando o gabinete da Ouvidoria de onde tinha sido expulso. Afectado pelo reumatismo gotoso, já não adoptava a mesma postura soberana de antigamente, atrás do mogn o resplandecente da vasta secretária em que despachava. Mas antes da doença lhe pôr ponto final na carreira e na vida aos 47 anos de idade, ainda disfrutaria por alguns anos da faculdade de mandar só que, ao contrário porém dos tempos de glória, tinha agora de partilhar o poder de que havia sido único senhor ao longo de duas décadas.

Ainda que fisicamente debilitado, o arguto Arriaga não deixou de retirar lições das "desgraças" de um ano. Por isso, foi sem hesitações que se apossou da chave que Frei A ntónio, disciplinadamente, devolvera antes da fuga, reabrindo a Tipografia do Governo. A "A belha" tinha constituído para os Liberais uma surpreendente arma que ainda poderia continuar a produzir resultados para os outros, pensava Arriaga.

Nesta linha de pensamento, as máquinas de Frei António recomeçaram a laborar, mas a fábrica de ideias de outrora, produtora de opinião e divulgadora do progresso, havia sido mortalmente liquidada. Das prensas, agora controladas por Arriaga, saía regularmente apenas uma publicação cinzenta e sem chama, denominada "Gazeta de Macau". Finalmente, fiel à sua vocação de Boletim Oficial rigorosamente depurado à lupa de suspeitos descuidos ou equí vocas imprecisões, de acordo com os mais estritos regulamentos da censura, divulgava rot ineiramente o ponto de vista do poder constituído. Caminhando para a inutilidade à medida que a normalização política se apossava da cidade, tornava-se cada vez mais um dispêndi o orçamental desinteres-sante, que se extinguiria naturalmente em Dezembro de 1826. O destino da "Gazeta" do governo seguia e culminava, aliás, a tendência irreversível do processo hi stórico, que não admitia a repetição de cenários. Assim, Arriaga desapareceu e, com e le, a poderosa Ouvidoria de Macau, que se desvaneceria pouco depois.

Porto Alegre, por seu turno, voltava somente para dispender (e ainda com maior ostentaç ão) as últimas moedas dos sacos de ouro com que, outrora, reforçava as portas de sua casa em tempo de tufão. Garcez Palha, acometido por uma síncope, falecia quase imediatamente a pós ter assumido o cargo de Governador de Macau.

Jornais ingleses: por acaso, o nascimento em Cantão

Apesar da comunidade estrangeira se declarar completamente ignorante dos meandros da intriga política da cidade, e da batalha da "Abelha da Chi-na" se ter travado em português (língua incompreensível para a maioria esmagadora dos estrangeiros), os seus efeitos foram sensíveis no seu seio. Por isso, o preserverante Robert Morrison assinala a importância da "Abelha", quando pede a Inglaterra as máquinas neces sárias para fazer um jornal em Macau. O pedido de Morrison permite reivindicar também para o Território a ideia percursora que daria corpo ao primeiro jornal de língua inglesa da Ásia. Dela nasceria, de facto, no dia 8 de Novembro de 1827, o "Canton Register" na cidade de Cantão, nascimento que poderia ter ocorrido em Macau, não fossem concorrer para o efeito o acaso, por um lado, e as peculiaridades da rotina comercial britânica na China, por outro. É que essa rotina levava os negociantes e residir metade do ano na capital can-tonense e a outr a metade em Macau, num ciclo que se repetiu invariavelmente até à fundação de Hong Kong, em 1841. O "Canton Register" acompanhava esse movimento, sendo impresso alternadamente em Cant ão e em Macau, conforme a estação comercial. Assim, calhou que tivesse começado em Ca ntão...

Mas há mais de um milénio que a China possuía um jornal periódico, oriundo das ch ancelarias da corte de Pequim e distribuído até aos confins do império através de um complicado sistema burocrático, constituído por correios a cavalo e reimpressões pro vinciais, a que se seguiam novas distribuições e reimpressões regionais até atingir a s prefeituras. Para além desta, a China parecia dispensar qualquer outra forma de comunic ação de massas, adoptando pois a mesma atitude que assumia relativamente a muitas outras novidades ocidentais, que persistentemente resvalaram na ignorância do "Império do Meio". Aliás, o país já possuía as folhas volantes, que surgiam fugazes pelas cidades ealdeias, denunciando vícios do sistema, comportamentos prepotentes ou abusivos dos seus executadores, e crimes ou apenas deslizes ascandalosos de cidadãos e administradores proeminentes. Mais de século e meio antes dos famosos "samizdat" soviéticos dos anos 60, a China, nas ironias da sua própria marginalidade, demonstrava também auto-suficiência. Os papéis, que voavam d e mão em mão chegando aos olhos dos ingleses (que lhes chamavam "mosquito papers") serviam essencialmente como instrumentos de ameaça ou de chantagem de anónimos extorsionistas. A já de si suspeita iniciativa ocidental dos jornais era, por isso, devido a esses "mosquitos" mais suspeita ainda. Tal atitude poderá explicar, em grande parte, a tardia aparição em cena de eriódicos na imprensa chinesa.

Mas, se a aparição dos jornais foi tardia, o motivo fundamental que os gerou foi o mesm o que no resto do mundo: a política. A última dinastia imperial entrava decisivamente na sua fase decadente, e a oposição tinha absoluta necessidade de encontrar meios de levar a sua mensagem o mais longe possível, de modo a transformar a luta em objectivo nacional.

A voz corrente atribui a Xangai o estatuto de berço dos primeiros jornais em chinês, qu e teriam sido publicados a partir de 1840. O assunto parece, no entanto, passível de discu ssão, não sendo de excluir a possibilidade de, em vez de Xangai, ter sido Macau o verdadei ro local do seu nascimento. Para tanto contribui o facto de o primeiro jornal em moldes ocident ais, escrito em chinês em Macau, ter sido impresso, ao que se afirma, também no mesmo ano d e 1840. O periódico chamava-se "Ou Mun Sam Man Chi", teve vida efémera, morrendo poucos me ses depois. A "Guerra do Ópio", que opôs pela primeira vez o exército de Sua Majestade B ritânica às forças do Império Ching, parece ter sido a causadora daquela iniciativa ed itorial, sobre a qual tão pouco se sabe. Conferir as datas do "Ou Mun Sam Man Chi" e das pu blicações congéneres de Xangai daquele ano (se é que existem ainda), bastará para d erimir tão pequena questão de paternidade.

Independentemente de qualquer eventual resultado comparativo, Portugal não deixará, no entanto, de figurar como tendo estado ligado aos primeiros passos da imprensa chinesa na China. De facto, ao longo de trinta, dos mais de quarenta anos de existência de um dos primeiros j ornais de Xangai, o "Shan Pou", Hermenegildo António Pereira, respeitada figura local da co munidade Lusa, encarregou-se de orientar a sua política editorial, não permitindo, diz-se, "a inserção de qualquer artigo que não respeitasse a verdade, ou que contivesse mat éria ofensiva para pessoas ou instituições". Sobre este escruploso jornalista, sabe-se que era sinólogo eminente, qualidade muito mais rara, decerto, que a de comendador, com que uma citação de 1915 (que o retira "in-extremis" do irrevogável esquecimento da história) o distingue. A sua obra está impressa nos arquivos onde repousa o "Shan Pou" - se é que est e sobreviveu a um século de tumultos, revoluções e guerras civis, que assolaram Xangai até 1949. Encontrá-la e revelá-la, constituiria tarefa integrante de um projecto de descober ta da história de Portugal em Xangai, que continua a ser eternamente adiado.

* Jornalista, investigador de temas da História de Macau.

desde a p. 54
até a p.