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EXTRACTOS DO DIÁRIO "VIAGEM À CHINA"DE JULES ITIER

Jules Itier, 1844. Os três grandes mandarins de Cantão. Da esquerda para a direita :Tseang-Kueng, general tártaro, Fao-Yuen, vice-governador da província, e Kwang-Chow, prefeito da cidade. Colecção do Musée Français de La Photograp-hie.

14 e 15 de Outubro

"Consagrei estes dois dias a fixar no daguer-reótipo os aspectos mais notáveis d e Macau; os transeuntes acederam com a maior simpatia a todas as minhas exigências e muitos Chineses deixaram-se fotografar, mas era preciso mostrar-lhes o interior do instrumento, bem como o objecto reflectido sobre o vidro despolido; ouviam-se, então, exclamações de surpresa e risos que nunca mais acabavam."

26 de Outubro

"(...) Assim que entrei no meu pequeno laboratório, apareceu o grande Ho-pu à minha procura, para me pedir em particular que lhe desse a preferência. Tendo notado a sua ausência, o ge-neral tártaro, que adivinhara certamente a causa, veio também rogar-me que não o esquecesse; de-pois, veio o meu amigo Tchao-Tchum-Lin mo-vido pela mesma razão. Disse a todos que sim e, para os satisfazer, decidi fotografá-los em grupo, fazendo duas cópias, a fim de guardar uma comigo sem que eles suspeitassem. Este grupo pareceu agradar-lhes muito. Todavia, o general tártaro e Heo-yuen solicitaram-me que os fotografasse separadamente; tive que me resignar a fazê--lo, embora o dia começasse a tornar-se pouco favorável às ope rações fotográficas. Além disso, eu estava completamente esgotado devido às dez ou doze chapas que fizera durante o dia. Entretanto, fui despedir-me da nobre companhia. Pensando que era meu dever retribuir a cada um aqueles afectuosos apertos de mão, que me haviam dado antes com tanta liberalidade, avancei, sorridente, para o general tártaro; mas, longe de que rer aceitar de mim esse testemunho de cortesia, recuou com um ar digno e soberbo, retirando as mãos. Esse movimento, que eu nunca poderia ter imaginado, depois de toda a benevolência que tivera para com ele, chocou-me profundamente. Endi-reitei-me, com altivez, olhei-o com desdém de alto a baixo e saí, afastando bruscamente a multidão de criados que se apinhavam à porta do salão."

"(...) Subimos à ponte para fumar. Ky-ing, incansável nas suas investigações, desce à casa das máquinas; desta vez não consegue esconder oefeito que produz nele a ob\-serv ação destas enormes peças de ferro em mo-vimento e as bocas! abertas desses for\-nos in candescentes. E quando, à ordemde paragem, a má-quina pára brusca\-mente, a sua estupe-fa cção atinge o cú-mulo. "0 seu rosto contraído oferece- -nos uma expressão i nesquecível: compre-. endo, escreve ele, que a nação francesa tem muito valor e que os Ingleses nos enganavam, garantindo-nos que vós éreis apenas um povo inferior, incapaz de construir máquinas como estar.''

"(...) De regresso à ponte, reunimo-nos no-" vamente do lado parte da ré e aproveitei para fi\-xar no daguerreótipo um grupo formado por Ky--ing, pelo embaixador, pelo almirante, pelo pri-meiro-secretário da embaixada e pelo intérprete; em seguida, tirei, separadamente, duas fotogra\-fias a Ky-ing e a Houan, que pensava guardar em meu poder; mas tive a infeliz id eia de lhas mostrar e, a partir desse momento, já não me foi possível resistir à sua i nsistência. O vice-rei sorria, maravi\-lhado, ao ver a sua imagem; depois, olhava para mim e, agitando as mãos, gritava:" To-tsié, to-tsié "(obrigado, obrigado); quanto a Houa n..."

21 de Novembro

"Acabo de passar o dia com a família de Paw-sse-Tchen. A observação do meu dag uer-reótipo, que levei comigo, põe toda a gente em al-voroço, para ver quem tira a pri meira fotografia. A mãe de Paw-sse-Tchen passa à frente de todos; depois da recusa da sua esposa, a senhora Li, fotografo a irmã do dono da casa, uma rapariga muito feia apesar do branco, do vermelho, do azul e do preto com que se pintou; os dois filhos mais velhos, as ama s e até as crianças em calções, todos "posam" diante de mim, todos são retrata-dos c om maior ou menor sucesso pelo meu daguerreótipo.

"Havia três horas que du-rava este duro exercício, quando o som do gongo se fez ouvir n a rua, anunciando-nos a chegada de cinco importantes funcionários de Cantão, escoltados por uma multidão enorme de criados e guiadospelo amigo Tchao--Tchum-Sin, paracontemplar a mara vilhosa invenção com que acidade se entretinha.

Julesltier, 1844. Muro feito de tijolos, cais e jardins das feitorias europeias de Cantão. Colecção do Mu-sée Français de La Photographie.

"Teria julgado, pelas formas cerimoniosas de Paw-sse-Tchen diante deles e pela série de saudações respeitosas com os braços, a cabeça e o corpo, que estávamos perante grandes senhores, se a riqueza dos seus trajes de seda, bordados com flores de mil cores, com dragões e com fénices, em ouro e seda, não fossem suficientes para me indicar o alto nível social destas personagens. O mais notável era Fao-Yuen, vice-governador da província de Cantão; vinham depois, Tsean-Keun, general tártaro, comandante do corpo de tropas manchus, a guarn ição da cidade fechada, o grande Ho-pu, director-geral das alfândegas, Heo-yuen, grande mestre dos estudos, responsável pelos exames e pela distribuição dos graus literários, indispensáveis para obtenção das funções públicas; finalmente, Tuh-Leang-Taou, adm inistrador dos celeiros.

"Enquanto eu trocava com cada um deles cumprimentos extremamente graciosos, Tchao--Tchum-Lin explicava-lhes quem eu era.

"Entretanto as fotografias de Paw-sse-Tchen e dos seus filhos ficaram prontas. Um deles ficou extasiado com a semelhança, e percebi pelos gestos do dono da casa que ele tentava descrever o processo. Ainda a explicação não estava acabada e já os recém-chegados me haviam rodeado; competiam uns com os outros em atenções e delicadeza, em apertos de mão, suplicando-me, ao mesmo tempo, que os fotografasse, na presença de todos. Entreguei-me de bom grado aos seus desejos, fazendo o retrato de Fao-yuen, que ficou muito bom, e que lhe ofereci. Houve então manifestações de alegria, impossíveis de descrever; cada um quis ter a sua fotografia. Acabei por ceder e fui preparar novas chapas."

"(...) Conseguiu-me uma isenção, e eu calcava, com botas de um ímpio, o solo coberto de esteiras.

"O pagode chinês é notável pela riqueza de ornamentos e pela elegância da arquite ctura. Um bonzo recebeu-me à porta e acompanhou-me na visita minuciosa que fiz a tudo o que ele contém. O esplendor das cores, as esculturas e o ouro espalhado abundantemente sobre o a ltar do deus Fô, revelavam o estado próspero do seu culto; via-se do meio de um nicho escava do na espessura da parede, sobre o altar principal, a imagem da virgem Roan-yn. Candelabros, c írios, candeeiros sagrados, vasos de flores e recipientes de perfume sobrecarregavam o altar.

"Eu estava munido de um daguerreótipo, e o bonzo permitiu-me fotografá-lo no altar par a apanhar o interior da porta principal, ornamentada de colunas de tipo salomónico esculpida s em granito. A fachada está coberta de caracteres chineses, cinzelados no granito e a pintu ra está em perfeita harmonia com a escultura, formando um todo que lembra esse género de d ecoraçãousada pelos Egípcios, cujas tendas - a maior parte delas - conservam ainda no int erior as cores que cobrem os hieróglifos, talhados em baixo-relevo, na pedra".

"O dono do restaurante fez-nos pagar meia piastra (3 francos), por pessoa, nesse jantar que a um Chinês custaria 15 moedas.

"Depois de nos levantarmos da mesa, passeámos pelos arredores, observando o que se pa ssava: aqui, um cartomante rodeado por uma multidão atenta à proclamação da sorte, an unciada pela sua boca; ali, jogadores de dados, ajoelhados sobre uma esteira e munidos de gra ndes copos de bambu. Aproximei-me de uma grande caixa de óptica, colocada sobre um tripé, que oferecia, à escolha dos curiosos, oito lentes enormes de aumento, cobertas com panos. O Chinês fez-me compreender que dar uma olhadela custava apenas uma sapeca. Paguei e encostei-me à caixa para espreitar. Mal acreditava no que viam os meus olhos ao assistir a um desfile d e obscenidades nojentas pintadas nesses quadros; e todavia, esse espectáculo é oferecido ao público, sem a menor oposição da polícia que parece não desconhecer que tem ali mat éria para exercer repressão!

"Um tal esquecimento do pudor público contribui certamente para a dissolução dos costumes da classe média das cidades, classe que na China se entrega ao deboche mais ign óbil. Não quer isto dizer que a opinião dos homens importantes não censure, como ac ontece em todo a lado, aqueles que se entregam a tal prática; mas sendo a vida privada na China muito mais encoberta do que na Europa, esse controle não pode estender-se muito longe, nem restringir eficazmente a parte exagerada que o chinês é levado a praticar para satisf ação dos sentidos".

"No entanto, sobre este dado não nos é permitido julgar severamente uma sociedade, onde os hábitos patriarcais, a brandura dos costumes, o sentimento do dever em relação aos seu s semelhantes e ainda o esquecimento do direito individual no que ele tem de mais absoluto, fa zem-se notar até às camadas sociais mais baixas. Assim, no meio desta afluência enorme de pessoas, apertando-se em redor da caixa de óptica não há a menor contestação, nem a menor disputa; todos se apressavam para arranjar lugar. Era uma troca contínua de procedimen tos que procuraríamos, em vão, na Europa, na classe social inferior, onde ainda se tem o sentimento do seu direito; digo-o com convicção, no respeitante à brandura dos costumes e do saber viver. A civilização chinesa está muito adiantada em relação à nossa". •

Jules Itier. 1844. Vista invertida das feitorias europeias de Cantão, tirada da margem direita da ribeira do Tigre.

Jules Itier, 1844. Vista de Cantão.

Jules Itier, 1844. Vista das feitorias europeias de Cantão. São edifícios de dois outrês pisos, com chaminés e árvores diante das fachadas.

Jules Itier, 1844. Família de Pon Tin Quoi.

Jules Itier, 1844. Vista geral da casa de campo de Paw-ssé-Tchen, situada nosarredores de Cantão.

Jules Itier, 1844. Corpo principal do mesmo edifício.

Jules Itier, 1844. Vista de Cantão.

Jules Itier, 1844. Vista de Cantão.

Jules Itier, 1844. Vista de Cantão.

Jules Itier, 1844. Vista de Cantão.

Jules Itier, 1844. Vista de Cantão.

Jules Itier, 1844. Vista de Cantão.

Jules Itier, 1844. Vista da Praia Grande, em Macau.

Jules Itier, 1844. Templo de A-Má, em Macau.

Jules Itier, 1844. Porta principal do Templo de A-Má, em Macau.

Jules Itier, 1844, Porto da Taipa, visto de Macau.

(As fotografias de Jules Itier são reproduzidas com a devida autorização do Musée Français de la Photographie.)

Poster RC

Vista da Rada de Macau

Jules Itier,1844.

desde a p. 86
até a p.