História

SUBSÍDIOS PARA A HISTÓRIA DAS RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS DE PORTUGAL COM A CHINA
A EMBAIXADA DE MANUEL DE SALDANHA (1667-1670)

Eduardo Brazão

A vida não decorria tranquila no Império do Meio, o que era mau presságio para os comerciantes de Macau. Manuel de Saldanha, diplo-mata experiente, foi enviado a Pequim ao grande Kang-Si para trazer da boca do imperador garantias de estabilidade e as difíceis licenças pa ra o comércio com a China. A morte colheu Manuel de Saldanha já no fim da sua melindrosa mi ssão; no entanto, tinha conquistado de tal modo as boas graças de Kang-Si, que este o fez se pultar com todas as honras devidas aos mais distintos mandarins do seu império.

Durante o período que vai de 1368 a 1644, a China viveu uma das suas épocas mais bri lhantes. Brilhante, gloriosa, é a tradução de Ming. Ming era a dinastia então reinante.

Fundara-a Chu Yuan-Chang, mas o seu apogeu alcançar-se-ia com Yung Lo (1402-1424). Na política, na diplomacia, na arte, engrandecia-se a civilização do Império do Meio. Alongavam-se os seus territórios, visitavam-se regiões distantes, desde o Anam até à Arábia e à costa da Somália, embelezava-se Pequim, a nova Capital; os a rtífices da porcelana (1), do jade e do marfim excediam-se em beleza, na forma e na cor; coleccionava-se a monumental Yung Lo Ta Tien, para lembrança e estudo da literatura c hinesa, abria-se o Grande Canal para o abastecimento fácil de Pequim, intensificava--se o c ulto a Confúcio e o estudo dos clássicos, ainda que o soberano se inclinasse para o Budismo, segundo o saber tibeteano. Latourette (2) sintetiza assim o período de Yung Lo: "Under him the Ming dy-nasty reached the apex of its power. He vigorously maintained and extended chi nese prestige abroad and gave the Empire an energetic administration".

Mas o apogeu é sempre rápido e as grandes civilizações depressa começam a amorte cer as qualidades dos que para elas contribuíram com o esforço e ambição de subir sempr e mais alto.

Ao período áureo de Yung Lo seguem-se, numa descida veloz, os dias sombrios de Wan-Li (3). São os eunucos e as concubinas que governam o Império, perante o prote sto vão dos doutos letrados que pressentiam a aproximação da derrocada. Os nipónicos, sentindo fraco o poder nas mãos do monarca, saqueiam de novo as costas chinesas e levam a sua audácia a ponto de penetrar na Coreia, sonhando, pela cabeça aventurosa do shogun Hi-de yoshi, com a conquista de todo o Império. E vêm os dias de fome, porque os deuses abando naram Wan-Li, pela sua indignidade; os campos não se semeiam, o arroz não cresce... e do nordeste começam a descer, ameaçadoras e terríveis, as hostes dos Manchus...

Macau era viveiro de missionários: ali se preparavam para a árdua tarefa de catequizar e converter os chinas; dali partiam para a cruzada santa que era também cruzada de Portugal. De todos os meios se lançava mão para quebrar a impenetrabilidade do Império murado.

Um notável chinês que Ricci convertera- Paulo Hsu Kuang-Ch'i, letrado e estadista - sugeriu aos portugueses de Macau que oferecessem os seus serviços de técnica militar à decadente dinastia, queestava a ser batida impiedosamente pelos Tártaros--Manchus. Nós já tínhamos na província de Amacao uma florescente fundição de artilharia, que era dirigida por Manuel Tavares Bocarro (4). A ideia de fornecer canhões a Pequim, que seriam acompanha dos por alguns jesuítas, para a instrução do manejo de tais armas, tivera o apoio de cert os mandarins, como Li Chih-tsao, presidente do Conselho dos Ritos, em Nanquim (5).

E perante a relutância dos religiosos inacianos em se imiscuírem tão directamente na guerra, Li vencia os seus escrúpulos com este apólogo: "Padres, que isto vos não perturbe, pois este projecto militar não servirá mais as nossas necessidades do que a agulha serve as do alfaiate, o qual quando tem fixa a linha com que cose e tem pronto o vestido, põe de parte a agulha; que Vossas Reverências nisto intervenham por ordem do rei e as armas transf ormar--se-ão em penas de escrever".

Assim, partiram de Macau os primeiros canhões com as armas de Portugal, para servirem as tropas Mings.

Poucos anos depois, em 1629, por intensificarem os ataques dos Manchus que se aproximavam assustadoramente de Pequim, o Imperador Ch'ung Cheng resolveu pedir aos jesuítas novo auxílio português. Logo o Senado de Macau se aproveitou do pedido para organizar uma luzida força. Havia nisto, é certo, para nós, fartos benefícios materiais, mas o que se poderi a alcançar em prestígio, em segurança para os portugueses de Macau e em penetração esp iritual na China, era muito maior ainda e bem mais precioso.

O Padre Semedo vai agora explicar como se organizou a força, que por tantas peripécias havia de passar:

"Quatrocentos homens foram preparados; duzentos eram soldados, dos quais muitos portugu eses; alguns nascidos em Portugal e outros lá (em Macau) mas a maior parte constituíd a por gente da terra, a qual posto que China, era nascida em Macau e tinha sido criada entre os portugueses, de acordo com os seus costumes, sendo bons soldados e bons apontadores de peça.

A cada soldado deu-se um rapazpara o servir, o qual rapaz foi comprado com dinheiro do Rei, e tão grande era o soldo que os soldados armaram-se, vestiram-se com riqueza e, no fim d e tudo isto, ainda ficaram muito ricos.

Estes soldados partiram de Macau com dois capitães, um dos quais se chamava Pedro Cor deiro e o outro António Rodrigues del Campo, com os seus alferes e mais oficiais. Ao chegar a Cantão, apresentaram-se com tal garbo e fizeram tais salvas com os mosquetes, que os chinas ficaram assombrados.

Aí forneceram-lhes barcos para passarem o rio com todo o conforto, e através de toda a província, quando chegavam a uma cidade ou aldeia, o magistrado da terra presenteava-os com galinhas, carne, fruta, vinho, arroz, etc..

Transpuseram as montanhas que separam a província de Cantão da de Kiansi (que fica a menos de um dia de viagem do outro rio), todos a cavalo, mesmo o mais insignificante c riado.

Uma vez do outro lado das montanhas, embarcaram novamente, e assim, seguindo rio abaixo, atravessaram quase toda a província de Kiansi, até chegarem à capital da mesma (ist o é Nanchang), onde eu vivia nessa época e tinha a meu cuidado grande número de cri stãos; aí pararam, para ver a cidade e serem agasalhados. Foram convidados por muitos dos n obres a fim de admirarem os seus costumes e muitas coisas mais que lhes haviam de parecer est ranhas. Estes nobres cumularam-nos de gentilezas, louvando tudo, excepto os buracos e costuras das roupas, pois não podiam compreender como estando uma peça de tecido, nova e inteira, ho uvesse homens que a cortassem como ornato em vários sítios"(6).

Afinal, tão auspicioso início não duraria muito. Rivalidades entre Cantão e Pequim fizeram abortar a expedição. Mas não deixou por isso o Imperador de cumular de honras alg uns dos seus componentes.

Cantão temia que qualquer vitória dos nossos tivesse, como compensação imperial, a abertura de portos ao comércio português. Ora a capital de Kwangtung era até aí a única ligação com Macau, e com ela enchiam-se os bolsos de alguns altos funcionários da Província...

Em 1643, já nos últimos momentos do poder Ming, a pedido do Vice-Rei de Kwan gtung e Kwangsi, foi enviada de Macau uma grande peça de ferro e um bombardeiro para a de fesa de Cantão, seguindo também três artilheiros para Nanquim. O pagamento de tal servi ço vinha pouco depois: a cedência aos jesuítas duma pequena faixa da ilha da Lapa (7).

Ainda debaixo da quase total dominação tártara, Macau apressou-se a auxiliar Yung Li, revoltado no sul e dominador do Kwangtung e Kwangsi. A defesa de Kweil in pelo bravo paladino da dinastia derrotada, seria em grande parte devida ao auxíliode t rezentos homens do contingente português. No entanto tal expedição é rodeada de mist ério, chegando-se mesmo a duvidar da sua existência (8).

A muito se estavam expondo os portugueses de Macau. Os Mings tinham caído irrem ediavelmente; e por sobre Pequim e em toda a China tremulavam as insígnias dos Manchus.

A vida e feitos do pirata Koxinga, pareceriam fazer parte das grandes lendas chinesa s se não estivessem abundantemente comprovados pela História (9).

Koxinga, o pirata, lutou contra uma dinastia nascente, a dos poderosos e aguerridos Manchus, em nome dum princípio que parece arrancado às tábuas de Monroe para lhe desvalor izar o ineditismo- A China para o chineses.

Filho de chinês e de japonesa, começou por-lu-gar-tenente de seu pai, navegador intré pido, que atacava as costas do seu país, dominadas pelo estrangeiro. Expulsou os holandeses d a Formosa e jurando aos seus deuses que vingaria a morte do pai e de dois irmãos exec utados pelos Manchus, foi em nome da sua e da família chinesa que arvorou o pavilhão negro nos mastros dos seus juncos, saqueando e lutando numa fúria temerosa com o invasor detestado.

Escreve o erudito introdutor do "Diário do padre Luís da Gama" (10) que "se a m orte onão viesse arrebatar tão breve no meio das suas vitórias, certamente conseguiria c olocar os tártaros, já senhores de quase toda a China, em situação bem precária".

Perante as investidas continuadas de Koxinga no sul, os Regentes, em nome do Imp erador tártaro Kang-Si, ainda na menoridade, ordenaram que se retirassem para o interi or as povoações costeiras, para que o pirata não se abastecesse facilmente. Nesse decreto, que foi promulgado na oitava lua de 1661, era expressamente proibido o comércio marítimo da s cidades litorais. Momentos difíceis iria passar a Cidade do Nome de Deus.

Adriano Greslon na sua Historie de la Chine sous la domination de les artares(11) explica claramente a nossa situação: "É preciso saber que Macau está situado numa p enínsula que não possue mais que uma légua de circuito, onde os portugueses não têm uma polegada de terra lavradia, excepto algumas hortas que produzem um pouco de hortaliça, de sorte que todas as coisas necessárias precisam de ser importadas da China à qual a cidade de Macau está ligada por uma pequena língua de terra muito estreita, no meio da qual se levanta uma muralha alta, com uma porta, fazendo a divisão. Esta porta abria- -se todos os dias antes da proibição do comércio, e os aldeões dos lugares circ unvizinhos, vindo a Macau com toda a liberdade vender as suas mercadorias faziam com que não lhe faltasse nada; mas os tártaros, querendo obrigar os portugueses a abandonar este porto e entrar na China porque não podem suportar que estrangeiros habitem nas fronteiras do seu rein o e possuam aí fortalezas e artilharia, iniciaram uma guarnição para guardar esta muralha com ordem de não abrirem a porta senão em certos dias determinados. Uma vez por mês e dep ois que a nossa perseguição começou, este rigor passou a um tal excesso que às vezes de corriam meses sem que a porta se abrisse..."

Era esta ameaça constante para nos obrigar a sair de Macau que se punha agora sobre a cab eça dos portugueses. Para a evitar negociou-se, subornou-se, em períodos tristes de misé ria material e moral.

O diário do jesuíta Luís da Gama é um quadro vivo desses tempos de infortúnio. Os nomes dos que alicerçaram a defesa da nossa possesão com a miséria de transacções av iltantes não podem inscrever-se na História heróica de Portugal, tão cheia de símbolo s augustos. Mas havia certa explicação: Macau, longe e abandonado pela metrópole imperial, defendia-se com todas as armas, para, num esforço so-bre-humano, safar-se da tormenta.

Na Relação da Embaixada de Saldanha ao Imperador da China (12), do Padre Fran cisco Pimen-tel, lê-se a certa altura: "Chegou esta proibição do comércio a Macau no ano de 1662, em que mandava o Imperador que em todo seu Império, com pena de morte, não anda ssem no mar nem uma só tábua nem houvesse comércio algum com gente de fora, e como os mora dores desta cidade não tinham bem algum de raiz, nem um palmo de terra sobre que cair mortos, tirar-lhe o comércio foi o mesmo que tirar--lhe a vida; contudo nos primeiros anos se foram s ustentando com os cabedais que tinham grangea-do, esperando que o Imperador vendo que o cevão florescia como dantes sem o contrato da China, e sabendo o estrago que fez em seus vassalos, e rendas com tão bárbaro decreto desenganado que com ele não fazia dano aos inimigos senão a si, e aos seus vassalos, viesse a levantar esta proibição. Porém ele como tirano, e t emeroso de perder o Império, que usurpou, foi continuando com maior rigor a observância do seu negro decreto, até que os de Macau se resolveram em Novembro de 1667(13) a pedir com toda a instância ao Vice-Rei da Índia o Senhor Conde de São Vicente João Nunes da Cunha que elemandasse um Embaixador em nome d'El Rei Nosso Senhor para que indo à Corte, e falando com o Imperador lhe apresentasse o miserável estado desta cidade e recabasse dele alguma rep resentação no comércio para se poderem sustentar, porque só por este caminho luzia alg uma esperança de remédio a tantos males. Não achou o Senhor Vice-Rei quem se atrevesse a tomar sobre si tão árdua empresa, senão ao Senhor Manuel de Saldanha, que movido mais pe lo zelo da Fé, que nestas partes principalmente depende da conservação desta cidade e do serviço d'El-Rei Nosso Senhor, e não de outro algum interesse, mal convalescido de uma gr ande doença se embarcou em Goa, e depois de passar na viagem horríveis perigos de que es capou por evidente milagre chegou doente a esta Cidade aos 4 de Agosto, e doente se embarcou logo para a Cidade de Cantão, Metrópole desta Província aonde os Governadores dela o det iveram mais de dois anos pelas coisas que ao adiante contarei até que finalmente chegou orde m do Imperador em que mandava que sem mais réplica alguma partisse logo para a Corte"(14).

Pouco se conhece da vida do Embaixador português. Segundo Frei Domingos de Navarrete, nos seus Tratados(15), fica-se a saber que Saldanha tomou parte na malograda xpedição do Conde da Torre ao Brasil, em 1638. A frota de Portugal fora derrotada pelos holandeses, em 1639, perto de Pernambuco. Bateu-se na guerra da Restauração, como Capitão de cavalos e f oi ele que, governando Olivença, entregou a praça quando esta foi atacada pelos exércitos do Duque de San Germain (1657). Manuel de Saldanha seguiu degredado para a Índia pela sua con duta, pouco à altura das responsabilida-des do cargo de que estava investido, o que não cond izia com o espírito heróico da sublevação portuguesa. Mas ao oferecer-se tão espontan eamente para esta missão arriscada e importante não haveria nele a intenção de resgatar culpas passadas?

As datas da compilação chinesa, "Relações externas da China", não se ajusta m com as do trabalho do Padre Pimentel. Talvez erros provenientes dos cálculos sobre o calen dário sínico. Aí se diz que Saldanha permaneceu em Macau por um ano. Mas a verdade deve e star mais do lado da Breve Relação da viagem. O Embaixador teria assim embarcado, não imediatamente como quer o descritivo de Pimentel, mas sim três meses e quinze dias depois (doc. do Leal Senado), ainda que doente, para a capital do Kwantung. Na lista das "Despe sas" efectuadas por Macau com a Embaixada de Saldanha (16) vem escrito: "A pessoa do Se nhor Embaixador Ma- nuel de Saldanha, que nesta Cidade chegou da Índia, a seis de Agosto de 1667, e foi para Cantão, em vinte e um de Novembro do mesmo ano..."

Ainda aqui a data da chegada não condiz com a da Breve Relação, mas neste parti cular são apenas dois dias de diferença.

Montalto de Jesus (17) baseou-se certamente no documento do Leal Senado para a descr ição da comitiva do Embaixador e presentes por ele levados para Cantão e Pequim, tudo a expensas da Cidade do Nome de Deus.

As missões diplomáticas ao Império do Meio tinham forçosamente de ser reve stidas de todo o aparato e grandeza. E por várias vezes, muito grandes foram os sacrifício s dos chefes das missões, não prescindindo dos seus fatos de brocado e espessos veludos, da s suas capas, dos seus mantos, tão pouco de harmonia com a dureza do clima, abafado e húmid o, depressivo e esgotante.

A grandeza do acompanhamento, o luzimento da indumentária, impunham aos olhos dos chinese s a missão do bárbaro estrangeiro, ainda que considerado tributário do seu Imperador.

A companhou Manuel de Saldanha, o Aytão que, como ensina Mgr. Sebastião Rodolfo Delgado (18), era o título do almirante chinês (19).

Como Capelão ia o Eremita de Santo Agostinho, Fr. Simão da Graça; Bento Pereira de F aria "cidadão e morador nesta Cidade (de Macau)" (20) fazia de Secretário. Vasco Barbosa de Melo, outro macaense, "foi para aconselhar nos negócios dos Chinas, pela muita experiência que tem deles".

Depois vem a relação dos outros cargos de comitiva. Sigamos o documento do Leal Senado: "Domingos da Silveira, para oficial maior do Secretário. Outro oficial do mesmo Secretá rio, de letra Sínica. Doze gentis-homens, para maior autoridade, todos pessoas graves, entre os quais vão alguns mancebos Fidalgos. Sete pagens para serviços do Senhor Embaixador. Uma companhia de vinte clavineiros, e seu Capitão. Dois Mestres de Sala, um Vedor, um camareiro, dois Reposteiros, dois Jurubaças da língua sínica. Dois dispenseiros, dois trombeteiros, um tambor, um cirurgião, dois mainatos e dois carpinteiros".

Os presentes para os altos oficiais de Cantão e para o Imperador enchem páginas do manuscrito: espadas de ouro cravejadas de brilhantes, contadores, corais, bocetas de prata, retratos del-Rei miniaturados sobre ouro e marfim, alcatifas, fios de alambre lavrado, dentes d e marfim, incenso, vinhos raros de Portugal, benjuim, cravo. Espelhos, chitas, escarlatas, cabai as. Uma riqueza enfim, para deslumbrar o oriental e para facilitar a passagem do Embaixador português (21).

Saldanha, mesmo gravemente doente como estava, devia ter achado certamente curiosa a viagem pelo rio de Oeste, entre canais de margens baixas e campos alagadiços, onde cresce o arroz. Os homens e mulheres trotavam debaixo da canga de bambu (22) onde se equilibravam, como numa balança, os fardos pesados. Tudo aquilo tão perto dos juncos, que navegavam lentos, de velas membraná-ceas com veios de cana, doiradas ao poente, como folhas de plátano, no Outono: podiam-se ouvir as conversas, os lamentos, dos que passavam nas margens.

Depois, a entrada em Cantão, com ilhas de sampans floridos e embandeirados; e ao longe, o casario baixo, de cor parda, triste, onde os caracteres sínicos se gravam em tintas gritantes. Mas havia de sentir a alma impregnada de saudades do risonho Portugal distante, em frente daquelas paisagens veladas pela humidade envolvente, como braços de polvos que vão estrangulando a alma do ocidental. E nem o deslumbramento dos poentes sanguíneos e da sua poalha de oiro com toques de violeta, lhe esfumaria a lembrança da entrada gloriosa do rubro sol no mar Atlântico, que se deveria disfrutar dos areais da sua Pátria. Ali, em contacto com a terra chinesa, o seu corpo de doente ia-se certamente apagando na nostalgia do ambiente, perfumado por cheiros doces do incenso e dos pivetes que ardiam em preito aos deuses, embalado pelos cantares guturais, como extertores de almas em convulsão, pela música estranha, onde as cordas vibram desarmo-niosa-mente em gritos que não são de revolta, mas de angústia... Saldanha teve ânimo para arrostar com os perigos da longa viagem para Pequim e paciência para, durante dois longos anos, negociar a sua entrada no recinto da Cidade Proibida.

"Embarcou-se o Senhor Embaixador na Cidade de Cantão aos 4 de Janeiro de 1670 (23), com o estado e luzimento que convinha a sua pessoa e autoridade. Ia vestido de setim carmesim guarnecido de prata, a roca do chapéu, boldrié e colar tudo de prata. Levava todo o pavimento da sala coberto de alcatifas, que são muito estimadas na China. Um docel de damasco nácar (24) com franjas de ouro debaixo do qual ia a carta (credencia l) e o retrato del-Rei Nosso Senhor; dois bufetes com os panos do mesmo damasco, as faces de setim nácar franjado de ouro; oito cadeiras de veludo nácar com suas franjas e pregaria dour ada, seis cadeiras rasas do mesmo veludo com franjas aos lados e a porta da sala com cortina de damasco franjada de ouro e seda".

A multidão apinhava-se nos cais para assistir à partida de tão vistosa Embaixada e o próprio Vice--Rei de Cantão e o Titó, nome por que era designado o Comandante das tropas provinciais, (25) mandaram abrir as janelas dos seus palácios para, ainda que en cobertos, por decoro com a sua dignidade, admirarem o esplendor do bárbaro que se enca minhava à corte Imperial.

Nem toda a comitiva trazida de Macau seguia agora com o Embaixador, só lhe tendo permitid o um acompanhamento de doze portugueses.

O Padre Pimentel na sua "Breve Relação" vai descrevendo: "la diante a barca c apitânia levando sempre, ancorado, o Estandarte e armas del-Rei Nosso Senhor e desta maneira atravessaram todo este grande Império até chegar a Pequim; levava mais uma bandeira amarela ao uso da China com suas letras que os Padres nos deram, as quais diziam: este é o Embaixador del-Rei de Portugal que vem dar os parabéns ao Imperador da China. Consentir esta Nação, acrescenta o jesuíta, que se não pusesse nesta bandeira a palavra Cimcum que quer dizer tributário, foi a maior vitória que de sua soberba podia alcançar a muita pru dência e bom modo do Senhor Embaixador porque lhe fez quebrar, como eles diziam, o costume de ste Império, continuado por mais de dois mil anos, em que nenhum Embaixador (foi recebido) se não com o título de tributário".

Não se tinham ainda passado muitos anos sobre a Embaixada holandesa de 1656, que não c onseguira fugir àquele tratamento humilhante (26).

Por todo o percurso teve a missão um acolhimento afectuoso. Nos canais estreitos, entul hados de juncos e sampanas, qual cidade flutuante, apesar da dificuldade das passagens, houve o cuidado de desembaraçar o caminho ao Embaixador do grande reino do mar do Ocidente. E ainda quando surgia algum problema complicado de precedências, como aquele que se deu com a barca do Régulo de Fokien, na Província de Pequim, o qual se recusou a abater a sua sirg a sem consultar a corte, veio uma providencial tempestade resolver tão difícil caso protoco lar, abrindo passagem ao grande junco de Manuel de Saldanha.

Viagem no entanto tormentosa para o Embaixador, cada vez mais atacado dos seus males.

A quatro léguas da Capital, os missionários do Padroado Português vieram-no visitar "e instruir das notícias necessárias para o adiante"(27).

Três dias depois, no último de Junho, Saldanha, acompanhado dum Mandarim, enviado pelo Tribunal dos Ritos (Lipu), entrava em Pequim.

Seguiram-se, por dias que se prolongavam em enervante expectativa, os complicados passos do emaranhado cerimonial do Império.

Logo de início foi entregue pelo Embaixador, ao Tribunal dos Ritos, a sua carta credencia l e o re-trato de D. Afonso VI. Vieram depois as dúvidas, as perguntas: Qual o motivo porque no documento real não vinha a palavra que quer dizer vassalo? Imediatamente o Embaixador, ser eno e grave, replicou: "que na Europa não havia estilo, nem costume entre os Reis quando s e escreviam, nomear-se por vassalos uns dos outros"(28). Este era um dos problemas mais delicados da missão. Até aí, na bandeira amarela que se desfraldava no junco de Saldanha, a tradicional palavra Cimcum (進貢), constituída por dois caracteres - Cim, que qu er dizer entrar e Cum, que significa tributo - fora alterada pelos jesuítas, sem protes to das autoridades chinesas. Assim, Hô (賀), isto é, parabéns, viera substituir o humilhante Cum.

Também desejaram saber, os dos Ritos, se o Rei de Portugal estava na intenção de m andar à China nova Embaixada. Saldanha respondeu que não o sabia.

Como o Embaixador piorasse dos seus achaques, logo o Imperador lhe enviou dois dos seus mel hores físicos, desejando continuadamente ser informado do seu estado de saúde. O P.e Pimentel, comenta o facto: "Nunca jamais de tempos antigos, de mais de dois mil anos, há memória, que Imperador nenhum fizesse a ninguém as honras e favores que fez ao Senhor Embaixador"(29).

Por ter estado retido no leito, só a 30 de Julho Saldanha foi com toda a sua comitiva ao Tribunal das cortesias, aprender as mesuras que é de uso fazer nas audiências imperiais. C onheceram os nossos a forma de genuflectir nos três tempos da pragmática e o inclinar a ca beça até tocarno chão com a aba do chapéu, sem nunca se descobrir, que para os chinas era "acção muito rústica e descortês"(30). Ainda avisaram o Embaixador, com toda a afabilidade, que não deveria trazer a sua espada à audiência do Imperador, ao que Saldanha não atendeu. Novas conferências tiveram lugar por tão estranha recusa, que afin al, por acto de alta consideração e benevolência, foi atendida (31).

Sigamos agora o descritivo do P.e Pimentel sobre a audiência do Senhor da China, Filho do Céu:

"Aos 31 foi a primeira vez que (o Embaixador) entrou no Paço, vestido de chamalote preto da Pérsia, coisa nova entre os chinas por n ão ser de seda, e por isso muito estimada, guarnecido de prata; o ornamento do chapéu, es padim, boldrié, e colar tudo de prata, a cadeira em que foi, que é pouco menor que uma li teira, não levava capa, porque como era de peça de ouro carmesim, e cortinas de 1ó de ou ro disseram-lhe os Mandarins que com a tal capa não podia ir ao Paço porque aquelas cores eram próprias do Imperador, as quais ninguém podia trazer senão ele. Que se tinha outra capa ainda que fosse mais rica, cheia de pérolas e diamantes, como não fosse daquelas cores tudo podia levar. Logo experimentamos a verdade com que nos falaram: porque tudo o que pertence ao Imperador tem as ditas cores, até os telhados são vidrados de amarelo e vermelho. Os par entes mais chegados do Imperador por via masculina, trazem cinto amarelo; os mais remotos, ou p or via feminina, vermelho.

Chegado ao Paço fez o Senhor Embaixador e nós as cortesias costumadas ao Imperador n o pátio aonde as fizeram também mais de cinco mil Mandarins porque só estes ali entram. F azem-se estas cortesias ao som de vários instrumentos que se tocam numa sala que fica no mesmo pátio, defronte da Sala Real do trono.

O sinal para começarem as cortesias são oito estalos de uns azorragues, como de coc heiros, mas sem comparação maiores, e tão pesados que se não levantam do chão e faze m tamanho boato como oito tiros de pistolas; e para que se não errem, ou se perturbem nas c ortesias está sempre um mandarim que em voz alta diz quando se há-de ajoelhar, bater cabe ça, levantar etc. para que vão todos uniformes e compassados. A sala real é muito grande, toda dourada com lavores de ouro, azul e vermelho. Tem setenta colunas em duas ordens, que a repartem em três naves como as nossas Igrejas antigas. Sobe-se do pátio para ela por cinco escadas de pedra muito branca como mármore e belamente lavradas. Tem no meio dois tabuleiros com suas grades e mainéis da mesma pedra que é obra de muito lavor e perfeição; nos vãos que ficam entre estas escadas, estão vários perfumadores de bronze dourado de bojo e c argura de muita pipa. Sobre o último tabuleiro aonde se terminam estas escadas corre a sala r eal a comprido e vai fazendo a perspectiva muito semelhante à que faz no Rocio a Igreja do H ospital em Lisboa tirando que aqui corre a sala ao comprido, lá só com o rontispício.

Tem esta sala três portas que saiem para o tabuleiro: de fronte da do meio, e principa l está o trono real da altura quase de três braços, todo de madeira lavrada com to do o primor da arte. O lugar em que o Imperador se assenta não tem docel, nem sobrecéu, nem encosto algum, mas é como uma mesa de cujos lados saiem dois (dragões) armas supersticiosas deste Império, dispostas de maneira que com suas roscas formam dois belos ramilhetes, entre os quais apareceu o Imperador assentado, e se muito nos não enganamos, tinha também, sobre a m esa, as pernas cruzadas; não tinha espaldas ou encostos, porque do pátio donde lhe fizemos as cortesias viamo-lo sentado da cinta para cima, e por detrás de suas costas a luz, e ar que entrava pela porta que da outra banda corresponde a principal. Escrevo isto com tanta miudeza porque é coisa muito difícil fazer conceito de um edifício por relação escrita..."

Bem fez o jesuíta, pois conseguiu-nos legar, ainda que numa prosa pouco rica no descrit ivo, o esplendor do Palácio de Pequim e o fausto e grandeza com que o tártaro imperial rec ebia as Embaixadas.

Depois deste longo cerimonial, o soberano mandou chamar Saldanha, falando-lhe com afabil idade e respeito, oferecendo-lhe chá e dando-lhe sempre o tratamento de grande vassalo del-Re i de Portugal. Reinava Kang-Si, soberano de elevada cultura e interessado pelo saber do Ocidente, junto de quem o, cupava um papel de relevo o jesuíta Ver-biest, que sucedera a Ricci e a Schall na influência junto da corte e que, trabalhando no Padroado português, prestigia va altamente o nosso mandato espiritual nas terras do Império.

Kang-Si, que muitos consideram superior em talento aos monarcas seus contemporâneos, Luís XIV de França e Pedro "o Grande" da Rússia, mandou chamar de novo o Embaixador de Po rtugal na mesma manhã da audiência solene.

Essa conversa teve lugar "com admiração universal de tão desusado favor", numa varanda junto ao quarto das damas, onde era proibida a entrada a qualquer homem, com excepç ão dos eunucos. Serviu de intérprete o p.e Verbiest, acompanhado doutro jesuíta, o p.e Buglio.

Ninguém mais assistiu à entrevista, que decerto decorreu entre mesuras e sorrisos e tendo como desfecho uma dádiva imperial para o diplomata português e seu séquito. Mas era momento único que devia ter sido fixado na tela, para memória dos asiáticos e glória de Portugal: Um dos mais ilustres imperadores da longa teoria chinesa, cuja vida e feitos andam em crónicas de todo o Mundo; um jesuíta, admirado pela sua cultura e saber, que ali representava nobremente a ciência Ocidental e urn Embaixador daquele país que levara pela mão as grandes nações da Europa ao conhecimento e admiração do Império do Meio. Esse grupo é toda uma simbolia da nossa obra missionária e cultural na grande China.

Aproveitou o Imperador a estadia da Embaixada na sua corte para elevar Verbiest a President e do Tribunal da Matemática, contra todo o costume antigo do reino. O Império emuralhado ia permitindo que os nossos, do Padroado, abrissem brechas naqueles muros milenários. A cultura dos padres, o seu tacto e poder de persuasão, destruiam barreiras que pareciam desafiar o te mpo e a força dos homens. E na boca dos que iam pregando a palavra de Cristo, dos que iam re velando as riquezas de espírito da civilização europeia, projectava-se o esplendor daquel e longínquo país que os enviava ao lado dos seus valorosos descobridores. Com a penetra-ção missionária ia aumentando o prestígio de Portu-gal nas soberbas terras do Cathay.

Seguiram-se banquetes à moda manchu onde os nossos, com repugnância, mal tocavam naqu elas carnes ensanguentadas de vaca, porco, cavalo e burro, galinhas e adens. Não fala a Breve Relação nos vinhos fortes da China do norte, mas não passariam certamente estes ágapes de serem fortemente regados, como é da velha usança oriental.

Pouco depois tinha lugar a segunda entrevista com Kang-si; e correndo na corte, entr e as concubinas reais, que era bela a presença daqueles bárbaros visitantes, o cerim onial desta vez foi preparado de tal arte para que elas, por entre frinchas, os pudessem admira r. Habituadas à fealdade tártara, supomos ouvir os comentários, os risos mal abafados, da quele enxame de delicadas e voluptuosas chinesas, envolvidas nas sedas leves das cabaias que l hes moldavam a elegância do porte e tão suaves no pisar, tão doces naqueles olhares que m al se viam por entre o rasgão ligeiro dos olhos, mas que se pressentiam no arfar brando de tod a a sua frágil condição. Não passou despercebido o intuito da alteração pro-tocolar ao sisudo jesuíta da Breve Relação.

O Embaixador português entrava agora na parte substancial da sua difícil miss ão. De Macau trazia um memorial no qual se alegavam os serviços ali prestados pelos nossos ao Imperador, com a expulsão dos holandeses, perseguição dos piratas por aqueles mares e outros informes onde se exaltava a bravura dos portugueses. Logo os Padres da missão mostrara m a Saldanha o perigo da entrega ao Imperador de tal representação.

Quando perguntado em Cantão, Saldanha tinha afirmado que desejava ir à corte para dar p arabéns a Kang-si. Mal seria julgado agora se revelasse tão ostensivamente o fim ocu lto da sua Embaixada. Depois, o desdobrar, perante os manchus, pergaminhos de bravura dos port ugueses de Macau, era criar neles desconfiança e temor. Havia o precedente dos da Holanda, qu e o p. e Pimentel relata assim: "Tinham-lhe os tártaros concedido duas fe itorias, uma em Nanquim e outra em Fokien, mas com a condição que os haviam de ajudar a bota r fora os chinas de cabelos que ainda conservavam umas ilhas que estão perto da Província de Chicheo. Aceitaram eles o partido e vieram com catorze naus, e suposto que o seu valor e ciência militar é assás conhecido e respeitado, contudo nesta ocasião por terem ali os tár taros em cuja amizade tinham grandes conve-niências, usaram de seu brio e galhardia com os ma iores excessos que nunca e ainda que perderam três naus, desbarataram o inimigo e fizeram no l ugar as ilhas, nas quais meteram logo de posse os tárta-ros. Quem havia de cuidar que esta ac ção lhes havia de fazer perder a China para sempre e aonde mere-ceriam respeito e estima gan hassem ódio e aborreci-mento de todos em gerai: contavam os Padres que os tártaros que daqu ela guerra tornaram para a corte entraram nela metendo os dedos na boca, sinal de grande espan to, e gritando pelas ruas diziam—guarda guarda, gente gente que peleja deste modo, fora fora; isto é meter o fogo no seio e trazer os ti-gres para casa. De maneira que aonde os holandeses se quiseram fazer desejáveis amigos, se fizeram for-midáveis e odiosos, e foram logo maltra tados, que não só lhe não deram as feitorias prometidas, mas os botaram fora com mil inj úrias e afrontas. Ora vejam agora os de Macau se lhe está bem alegarem o ser-viço de suas armas e valentia, quando aqui na Corte vivem os tártaros com medo de artilharia que está em Macau e têm falado neia muitas vezes"(32).

Referia-se o jesuíta à expedição holandesa que se batera, sob o comando do Almirante Barthasar Bort, contra os partidários de Koxinga.

Avisado era o conselho dos missionários, que Saldanha não hesitou em seguir. Mas na entrevista-a última que teria com Kang-si- não deixou o Embaixador de representar "os apertos de Macau". Mais não era necessário. O Imperador, instruído de antemão pelos jesuítas, respondeu "que já sabia tudo".

Poderia ter havido maior tacto na condução de tão melindroso problema? Julgamos bem que não. Da parte do Embaixador houve a prudência de saber ouvir não só os que conheciam o meio como os que entendiam os altos interesses de Portugal e estavam ao mesmo tempo na preciosa intimidade do soberano.

Saldanha mostrou bem claramente os seus raros dotes de diplomata levando ao melhor termo o objectivo da Embaixada, sem puxar avaramente a glória para si: coordenou esforços, instruiu-se do ambiente em que tinha de agir.

Certo é que o grande Kang-si recusou-se depois "a sair com algum decreto contra M acau, ainda que muitos lho solicitavam, porque (seria) agravar a um Rei e a uma Nação a que há tão pouco tempo fez tantas honras em sua corte"(33).

No Diário do p. e Luís da Gama vai-se também sentindo o afrouxar da ameaça sobre Macau. E o cerco ia-se abrindo, deixando entrar, senão a fartu-ra, pelo menos o pão nosso para cada dia daqueles portugueses que tanto haviam sofrido.

Em cima: retrato de Kang-Si. Em baixo: Pavilhão do antigo Palácio de Verão, mandado co nstruir por Kang-Si, reproduzido numa gravura do Século XIX. Acabou por ser destruído aquando da ocupação de Pequim por tropas francesas e britânicas, em 1860. Era o edifício normalmente utilizado para as recepções aos embaixadores estrangeiros que visitavam a corte chinesa, não devendo o ambiente aqui representado diferir muito da realidade que Manuel Saldanha e a sua comitiva conheceram.

A 21 de Agosto, o Embaixador ia receber ao Tribunal dos Ritos a resposta imperial, o que não era costume do reino; e na tarde desse mesmo dia iniciava-se o regresso da luzida embai xada de Portugal. Sentado numa cadeira, coberta de pano dourado e carmezim, que oito cúlis vestindo cabaias vermelhas transportavam, ia Saldanha ricamente vestido de setim azul, bordado a ouro. O povo juntou-se nas ruas para presenciar tão vistoso cortejo, não faltando também, entre os espectadores, algumas mulheres tártaras, a cavalo, de cabeça rapada, segundo o ritual da sua raça e que impressionaram, pela fealdade, os portugueses da comitiva.

Carta de Sua Majestade, EL-Rei D. Afonso VI, ao Imperador da China.

As barcas eram. ricamente adornadas; e desfraldada na capitânia, a bandeira amarela dos parabéns não fora substituída pela do tributo. A 7 de Agosto iniciava-se a viagem, que terminaria breve para Manuel de Saldanha, cuja doença se ia agravando assusta doramente. E a 21 de Outubro, na cidade de Huai-an-fu, província de Kiang-nan, então alagada pelas cheias do rio Amarelo, o Embaixador de Portugal entregava a alma ao Cr iador, depois de tantos trabalhos e canseiras pelas terras da China.

Apesar do motim, desrespeitosamente levantado perante o cadáver ainda quente de Saldanha, pelo secretário Bento Pereira de Faria - símbolo duma política restritamente local -, que logo quis com desacerto e imprudência substituir-se ao Embaixador, já não era possível arrancar a este a glória da sua missão.

O desertor de Olivença acabava de pagar nobremente à Pátria, o seu erro (34). •

Treslado da chapa do Imperador da China e Tartaria, em que ordena que o Rey de Cantão, Tutão e mais Mandarins daquella Província vão fazer sumbayas (35) e cor tezias ao corpo do Embaixador Manoel de Saldanha, como se costuma fazer aos grandes Mandarins.

«Eu o Imperador mandovos a vós meus Mandarins que fassais cortezias ao corpo do Embai xador que veio do Imperador de Portu-gal ao meu Imperio, e nelle morreo; e pello muito amor que lhe tinha e tenho vos mando em meu lugar dar lhe os pezames, e encomen\-dar a sua Alma, para lh e mostrar o grande / pe-zar que tenho da morte de Manoel de Salda-nha, o qual vindo de tão lo nge, e passou tantos trabalhos, depois da vossa Embaixada acabada deste fim a vossa vida neste meu Imperio; eu tenho sintimento e dor do meu coração, porisso vos mando fazer estas cortez ias a vosso corpo, para me conçolar a donde estais, e vossa Alma; e adonde vos estais recebei, e logrei esta minha cortezia. Anno decimo do meu governo lua se\-gunda. Kam-hy» (36).

Carta por treslado da que o Imperador da China e Tartaria mandou a EI Rey D. Affonço 6. ° de Portugal na occazião da Embaixada a que viera Manoel de Saldanha. de Saldanha.

«Eu o Imperador vos fasso saber na Eu\-ropa a El Rey Affonço a vos somente que es\-tai s na Europa tão longe na vossa terra, que em dias desde que comessou o mundo athé o prezent e não me chegou á memoria vosso nome, nem o meu nome á vossa memoria: so-mente que agora tive lembrança, vossa, que me dais tão grandes honras pello vosso Manda\-rim Manoel de Sal danda, que chegou a este meu Pallacio com tão grande cortezia, e bom coração manifestand o-me o vosso amor e boa vontade, eu que muito estimei e folguei, agora me fica lugar de buscar outro maior amor, e agradecimento para vos pagar; mando-vos tres peças de serpentes, tres pe ças lavradas, tres ve\-ludos, huma peça de ouro, sinco peças de duas cores, sinco peças de sitim azul lavradas, sinco peças de sitim chão azuis, sinco peças de mo-lios, duas pe ças de chimunges, e trezentos taeis em prata. Com isto vos mostro meu grande amor, e vos pess o o recebais com o mesmo amor que vos mostro, para sempre acrecentar vossa bondade, amizade e lealdade, para eu sempre ficar conçolado. Queira Deos que as\-sim seja, e por isso vos mando esta carta; anho do meu governo novo, aos sete da setima lua. (Fazem na nossa lingoa 21 de Agosto de 1670.) Kam-hy» (37).

Eduardo Brazão Nota da Redacção

Diplomata e escritor (n. 1907), foi Consul de Portu-gal em Hong Kong, onde promoveu a Escol a Camões e o Instituto Português de Hong Kong, instituição editora de um Boletim e de outras obras (v. g. este texto editado em opúsculo). Depois da ficção literária, e nveredou pela in-vestigação histórica, concentrando-se em temas vários da história da dípiomacia portuguesa, de que publicou vesta obra. Membro da Academia Portuguesa de História (1938) e de outras corporações portuguesas e estrangeiras (v. g. Real Academia de História de Madrid).

Nota da Redacção

Este texto é reedição do opúsculo editado com o mesmo título pelo Instituto P ortuguês de Hong Kong (Secção de História) e impresso em Macau, Imprensa Na-cional, 1948. Deparará, por isso, o leitor de hoje com al-guns desajustes factuais e de perspectiva e estilo num tra- balho que, pela sua valia, merece nova divulgação. Tendo interferido na actualização ortográfica da versão original, abstivémo-nos porém de al terar os critérios originais de romanização dos topónimos e antropónimos chineses re-feridos no texto.

NOTAS

(1)"Under Hung Wu's son, Yung Lo (1402-24), plain white porcelain was greatly in favour, and certain types of this, mede in his reign, became almost legendary and were subse -quently much copied"- William Honey - The ceramic art of China, p. 99.

(2)The Chinese, theirHistoryandculture -3rd. ed., page287.

(3)Sobre a factura da porcelana durante este reinado, escreve Boney (ob. cit. p. 99) "... the long reign of Wan Li (1573-1619) in many respects coutinue the styles current unde r Chia Ching, but with diminishing vitality".

(4)Vid. Expedições militares portuguesas em auxílio dos Mings contra os Manch us 1621-1647 pelo Capitão C. R. Boxer.

(5)Vid. Semedo, S. J. - The History of the Great and Reno-wened Monarchy of China- pág. 232 e segs..

(6)Semedo, ob. cit. pág. 104.

(7)Arquivos de Macau 1, pág. 381.

(8)Vid. Boxer ob. cit. pág. 20 e segs..

(9)Vid. K'ang Hsi. Emperor of China, by Eloise Talcott Hib-bert, pág. 119 o segs..

(10)Pub. na revista- Ta-Ssi-Yang-Kuo. Vol. I. pp. 31-41: 113--119; 181-188; 305-310 e vol. li. pp. 693-702; 747-763.

(11)Paris 1674, pág. 303 e segs..

(12)Biblioteca da Ajuda. Jesuítas na Ásia vol. 12, Cod. 49-IV--62, publicado por C. R. BoxereJ. M. Braga-Macau 1942.

(13)Em nota dos eruditos editores da Relação diz-se que a data deverá ser de 1666 "visto que o Embaixador partiu de Goa em 14 de Maio de 1667 e chegou a Macau em Agosto, p artindo para Cantão aos 21 de Novembro do mesmo ano" (pág. 13). No entanto o erro que parece haver, vem também nas fontes chinesas, pois na tradução inglesa manuscrita das "Relações externas da China", que temos presente, lê-se: "In the name of the Kin g of Portugal, the Governor at Goa appointed another Ambassador to China to investigate the mat ter with the hope of divising ways and means to solve the problem, on 1667(6thyear of K'angHsi). He landed in Macau and stayed for more than a year. He arrived at Peking in 1670 (9thyear of K'ang Hsi)".

(14)Navarrete nos Tratados confirma a estadia de dois anos em Cantão.

(15)Madrid 1676-pág. 364.

(16)Arq. do Leal Senado de Macau-publ. na Breve Relação... editado por Boxer e Braga, em Apêndice.

(17)Historic Macao - International Turists in China old and new -2.a ed. apreendida 1926-pág. 119 e segs..

(18)Glossário Luso-Asiático, pág. 18 e seg. do vol. 1.

(19)Fr. José de Jesus Maria, na sua obra transcrita em parte na revista Ta-Ssi-Yan g-Kuo, depois publicada na íntegra por Boxer no Boletim Eclesiástico da Diocese de Mac au, diz que Aytão é o general do mar da província de Cantão.

(20)Doc. cit. do Leal Senado.

(21)No Ch'in Tin To-Ching Hui Tien Shi Li, na secção dos Tributos, vol. 401, pág. 1 e seg. vem a relação completa dos presentes.

(22)Pinga, que em chinês se chama tam-kun ( ).

(23)No Diário do p.e Luís da Gama vem escrito: "Aos 10 de Janeiro pa rtiu de Cantão para a Corte de Pequim o nosso Embaixador...".

(24)O autor da Relação deve ter querido escrever o termo nacra que em dialecto macaense singifica vermelho.

(25)Te-tuh, Tai-to, Tu-tu, segundo o modo de pronunciar equivalia aos nossos ge nerais (Vid. Chalmers. pág. 2).

(26)Montalto ob. cit. pág. 120.

(27)Breve Relação ed. cit. pág. 16.

(28)"Breve Relação"... na ed. cit. pág. 17.

(29)"Breve Relação"... pág. 18.

(30)"Breve Relação"... pág. 18.

(31)Sobre o cerimonial chinês relativo às Embaixadas, vid. a obra de S. Couvreur S. J. - Cérémonial, pág. 284 e segs..

(32)Ed. cit. da Breve Relaçáo- pág. 38.

(33)"Breve Relação" pág. 40.

(34)Como se disse atrás, são poucas as referências à vida de Sal-danha. As que conhecemos limitam-se às seguintes: Portu-gal Restaurado do Conde da Ericeira, P. II. liv. I. pág. 24; Biblioteca da Ajuda, peça 201 do Cod. 51-V-10; Biblioteca Nac. de Lisboa - Secção Ultramarina - Liv. 4. ō dois consultas mistas, fol. 195 v.

(35)Saudação reverencial - Delgado, Glossário Luso-Asiático, li, p. 326.

(36)Esta chapa foi transcrita na Ásia Sínica e Japónica do Frade Arrábid o José de Jesus Maria, (Liv. 8, cap. V), manuscrito em parte publicado pelo Major Boxer na Re vista "Renasci-mento", de Macau, e agora a imprimir-se na Imprensa Na-cional dessa Colónia.

(37)Ásia Sínica e Japónica, Liv. 8. Cap. VI.

desde a p. 19
até a p.