Ethnos

BAGATE

Ana Maria Amaro*

Figura de bagate, a recriação antropomórfica do inimigo que se deseja enfeitiçar. O pequeno bo-neco pode ser de madeira ou fibras vegetais entrançadas como é o caso desta figura, recentemente adquirida nas ruas de Macau.

perguntando-se a qualquer senhora macaense o que é bagate, com santo respeito, no caso de serem idosas, dirão que é um "mal provocado por mando de alguém, por via duma mulher de virtude que serve de intermediá ria". Esta mulher é a man héongpó (問香婆) -feiticeira; ou algumas pai sa n pó (拜神婆), simples benzedeiras. O bagate é muito temido porque só pode ser anulado por práticas da mesma pessoa que o desencadeou ou de outra com mais poder. As senhoras portuguesas de Macau, mesmo de fa\-mílias antigas de elevado nível social, acredita m no bagate e temem esta forma de fazer mal, que pode provocar doenças e outras infelicidades aos inimigos ou pessoas que se invejam ou caíram em desagrado.

Para bagatear alguém, a feiticeira usa, geralmente, uma fotografia ou represenção da pessoa a quem se pretende fazer mal, ou a quem se pretende anular o mal feito por outra mulher de virtude. Actua, pois, por magia simpática.

No Dicionário de Língua Portuguesa de Machado, consta a palavra bagata: "bagata s. f., do hindust. bhagata - feitiço, bruxaria" e "bagata s. m. - homem que tem trato com o demónio". No consenso de Macau, bagate, nítida derivação de bagata, corresponde à primeira das acepções, porquanto inclui as ditas práticas de feitiçaria ou magia branca que, naquele território, assumem diferentes formas.

As senhoras de Macau falam, ainda, em casos de bagate forte, como verdadeiras prá ticas de magia negra, porque todo o mal que se causa, principalmente a doença miste riosa e incurável, é provocado, a qualquer inimigo, por meio da invocação de um e spírito maléfico ou Kwâi (鬼) (1).

Como é do conhecimento geral a tradição popular de Macau é fértil em história s de Kwâi, no sentido de almas penadas, histórias que inspiram vivo terror, p rincipalmente ao elemento feminino. Não admira, pois, que os Kwâi actuem psicologica mente sobre os indivíduos que neles crêem.

O bagate, sob a sua forma de magia branca, assume geralmente dois aspectos diferente s: uso de figurinhas de bagate em madeira e rezas e invocações acompanhadas de beber agens, quase sempre sob a forma de sin chá (仙茶) (2).

Figurinhas de bagate

Em Macau, uma das formas mais correntes e mais temidas de bagate foi-nos assim des crita por uma informadora idosa: "Para fazer-se mal a alguém, arranja-se uma boneca em madei ra mole-salgueiro branco por exemplo (3); escreve-se, sobre ela, o nome da pessoa a quem s e quer fazer mal, o ano em que nasceu, o mês, o dia e a hora e, depois, vão-se-lhe espetan do agulhas durante 49 dias (de 7 em 7 dias, 7 vezes), em diferentes pontos do corpo: nos olhos, no nariz, no fígado, na boca ou na garganta, na cabeça e por fim no coração, deixando-se permanecer as agulhas espetadas até o mal se concretizar".

Esta figura deverá colocar-se junto da cabe-ceira da cama da pessoa visada, sem que esta de tal se aperceba, o que leva, por vezes, ao dispêndio de somas muito elevadas, para suborno de serviçais. O mal assim provocado revela-se por doença que pode conduzir à morte, à loucura ou, pelo menos, a um estado de diminuição física ou psíquica, de menor ou maior gravidade.

Qualquer pessoa pode realizar este bagate. Porém, se for a man héong pó (問香婆) quem o realize, o seu poder será muito maior e os efeitos muito mais rápidos e muito mais drásticos.

Informadores chineses descrevem esta prática, que designam por tou noi kong chai (道女公仔) (4) exactamente da mesma maneira; simplesmente não falam nos sete pontos indic ados pelos informadores euro-asiáticos de Macau, mas nos pontos vitais tradicionais da Acupu nctura chinesa.

A partir destas descrições, fácil é constatar--se que esta prática corresponde a uma forma especial de magia simpática das mais antigas que se conhecem e das que mais difun didas se encontram pelo mundo.

Segundo Reinach, este tipo de prática apoia-se no princípio de que "a imagem de um ser ou de um objecto domina esse objecto ou ser e, por isso, o autor ou possuidor duma imagem pode ter influência sobre o que ela representa".

Esta influência de ordem puramente mágica tem o seu fundamento numa crença muito an tiga, anterior talvez às religiões tal como hoje as concebemos e às antigas teogonias, c rença de tal forma arraigada no espírito humano, que logrou man-ter-se paralelamente à própria religião católica, apesar de todas as interdições eclesiásticas.

Exemplos de magia simpática deste tipo são as pinturas rupestres, as danças mímicas animalís-ticas australianas, as várias cerimónias propiciatórias de chuva ou de vento, numerosas peças ornamentais e até a cerimónia do enterramento de seres vivos acompanhando um defunto nobre ou rico, possuidor de numerosos escravos e bens terrenos, tal como se fazia na Antiga China. Mais tarde, foram ali substituídas as vítimas humanas por figurinhas em terra cota e em cerâmica, que hoje se encontram em quase todos os museus (5).

Entre todos os povos do Mundo encontra-se o feitiço com igual finalidade: eliminação de al-guém, desejo de se prejudicar outrém; ou com fi-nalidade amorosa, sendo os mecanismos psicoló-gicos que se empregam sempre os mesmos, qualquer que seja o grupo ou o seu nível cultural.

Os feitiços, entre os povos sem escrita, incluem o clássico método das figurinhas mais ou menos toscas, mais ou menos requintadas, sendo as estatuetas e as máscaras de encantamento muito frequentes entre os povos de todos os Con-tinentes. No Museu Etnográfico da Sociedade de Geografia de Lisboa, observámos vários exem\-plares de estatuetas de madeira, cravejadas de pregos e que foram recolhidas entre diversos gru\-pos africanos.

Algumas destas figuras de feitiço apresentam partes móveis como o coração, o sexo ou a mão. É aqui de notar que muitas estatuetas chinesas como as de Sau Seng Kong (壽星公) e de Kun Iâm (觀音), mesmo em fina porcelana, apresentam muitas vezes quer o bastão quer a mão, respectivamente, destacáveis.

Em Portugal, estas estatuetas brancas e douradas de Kun Iâm são consideradas "milagrosas". Uma informadora, iletrada, dos arredores de Lisboa, originária duma aldeia perto de Sesimbra, disse-nos que a "Nossa Senhora dos Chineses" satisfaz pedidos que se lhe dirijam se, ao fazê-los, lhe retirarem a mão. Essa mão, apenas será recolocada no local quando o pedido for satisfeito. É curioso notar que nunca ouvimos tal afirmação em Macau, onde estas estatuetas são muito frequentes e podem adquirir-se a baixos preços. No entanto, entre nós, crê-se que quaisquer destas estatuetas se encontram carregadas duma força eficaz, tanto benéfica como maléfica, e daí o seu poder (6).

A antiguidade das figuras de bagate parece poder remontar-se à Pré-História.

No Antigo Egipto, na Caldeia, na Assíria, já este princípio era aplicado nas práticas de magia, com muitas variantes, incluindo a possibilidade de actuar à distância. Ficou na História a actuação de alguns conspiradores que tentaram matar o faraó Ramsés III por intermédio duma figurinha de argila com agulhas espetadas (7).

Na Europa é também conhecido, desde há muito, o uso destas figuras de feitiço. Em Roma usavam- se figuras de chumbo nas quais se espetavam agulhas para fazer mal aos inimigos. Virgílio, numa das suas Bucólicas, descreveu figurinhas deste tipo, em cera, as dágida, como instrumento de uso corrente entre os pastores de Mântua, na sua época. Também Ovídio se referiu a uma estatueta de cera vermelha, usada com o seu nome aposto, como forma de encantamento contra a sua pessoa.

Hubert e Mauss (8) consideram, não sem razão que, "a Magia falou em egípcio e em hebreu no mundo grego, em grego no latino e em latim na restante Europa". Não admira, pois, que na Europa medieval os encantamentos por meio de fi-gurinhas de cera fossem prática corrente e com tal peso que os próprios monges católicos acreditavam, por vezes, no seu poder (9). O Papa João XXII, numa Breve-Carta de 1317, denunciou uma operação mágica montada contra a Corte Pontifícia e contra ele próprio, por meio de imagens de cera, com os respectivos nomes gravados para atentarem contra as suas vidas (10).

Chegou aos nossos dias, também, o caso de um rei medieval da Escócia, cujos inimigos fizeam morrer"definhando-se lentamente, sem que os médicos lhe achassem qualquer mal", pormeio de uma estatueta de cera com a sua efígie e nome gravados, que fizeram derreter a pouco e pouco, por acção do fogo.

Bonequinhos deste tipo com a efígie de Luís X (11), atravessados por alfinetes e com sinais de terem sido queimados foram, também, encontrados na residência particular do superintendente das Finanças E. de Marigny que, por esse facto, foi condenado à morte. É possível que este acontecimento fosse devido à acusação de inimigos daquele personagem para o perderem, mas a verdade é que, através do seu processo, pode constatar-se a vulgarização desta crença no século XIV, em França.

Ficou, ainda, célebre na História, o caso do Conde Robert d'Artois, cunhado do rei Filipe VI de Valois (12) que, por intermédio de seu irmão Henry, monge apóstata e mago profissional, mandou realizar uma imagem de cera que representava o filho do soberano, o futuro "João-o--Bom", com o fim de alterar a linha de sucessão de Artois.

A população desta prática era tal na Europa, ainda no século passado, que Littré, em 1892, no seu Dicionário, serve-se do exemplo da bone-quinha de cera, semelhante à pessoa sobre a qual se pretende fazer actuar uma influência sobrenatural, para definir a palavra enfeitiçar.

Em Portugal, esta prática de há muito que era também conhecida e popular. Sabe-se, a partir dos processos da Inquisição, que no século XVII, pelo menos, era corrente e usada pelos ditos feiticeiros. Na sentença de Francisco Barbosa, por exemplo (13), fala-se dum bonequinho sem braços com alfinetes espetados em diferentes partes do corpo, às quais correspondiam órgãos nos quais sofria dores, um doente em cujo colchão esta figura se encontrava escondida.

Na antiga China, usavam-se figuras de barro exactamente para o mesmo fim, também com a variante de serem escondidas na casa da própria vítima que, assim, era mais fortemente afectada pela sua carga.

Estas figurinhas passaram a usar-se, por influência tauísta, esculpidas em madeira de pessegueiro e de salgueiro, principalmente nas Províncias do Sul.

Que via de introdução levou para Macau as figuras de bagate? O nome é industânico, mas a prática é universal.

Pai siu ian (拜小人)Bater nos inimigos

Além das figurinhas de madeira nas quais se espetam alfinetes há ainda, em Macau, a prática de bater nos inimigos, o que se realiza por meio de um acto religioso, o que está expresso na palavra pái (拜). Mais uma vez, nesta prática, magia e religião se confundem no consenso popular de Macau.

Espalhados pela cidade há, naquele território, pequenos altares de rua, como o que nos anos 60-70 se podia ver na esquina das Ruas da Palha e dos Algibebes. Ali, tal como ao bambual do templo da barra era costume irem algumas mulheres chinesas "bater cabeça" contra qualquer mal suposto proveniente dos maus desejos dos seus inimigos.

Informadores idosos macaenses, assim nos explicaram a razão desta prática: "pode acontecer que, de repente, um homem fique desempregado, ou doente, ou passe a sofrer de qualquer moléstia. Mesmo que nada de anormal aconteça, mas alguém desconfie de que outra pessoa está a intrometer-se na sua vida, (bagateando-o) para prevenir qualquer acontecimento funesto ou desagradável, deve ir, ali, bater cabeça". Nunca é o próprio quem vai. Pode ir a mulher, a mãe, uma parente ou, até uma amiga. No caso muito raro, ao que supomos, de usarem os filhos-da-terra esta prática mágico-religiosa dos chineses, é sempre uma parente ou serviçal chinesa, quem serve de intermediário. Leva consigo um par de sapatos da pessoa visada, pivetes (3 ou múltiplos de 3), duas yelas de cebo, papéis de culto e tigelinhas de ofertório. Se se souber o nome do inimigo deve-se escrevê-lo nas costas de uma figura recortada em papel de cores fortes, que se vende nas papelarias chinesas e que representa os siu ian (小人), inimigos.

Depois das prostrações e do ofertório ritual bate-se com o par de sapatos sobre o papel recortado que representa o inimigo e vai-se dizendo, cada vez que se bate:

- "Enquanto bato, F... há-de ficar bom", (ou tal mal há-de afastar-se, conforme os casos). Pode bater-se quantas vezes se quiser e substituir--se os sapatos por uma mão empapel colada sobre uma hastilha de bambú. Por fim, são queimados papéis de culto (papéis "ouro-prata") e os próprios siu ian (小人) ateando-se o lume a partir da chama duma vela de culto recém-acesa. Outras vezes, apenas se queimam os papéis "ouro-prata", colando-se os siu ian nas paredes dos altares de rua, frequentemente de cabeça para baixo, para que o mal se inverta e vá afectar quem o deseja.

No Antigo Egipto já se praticava este tipo de magia homeopática a nível oficial. As figuras dos inimigos dos faraós ou dos deuses eram desenhadas sobre papiros novos, acompanhadas dos res-pectivos nomes e descrições minuciosas. Estas efígies eram, então, duramente batidas e flageladas e finalmente atiradas à água do Nilo.

As formas particulares de encantamento ali praticadas eram, aliás, a destruição do nome e a destruição das imagens. A destruição do nome equivalia à destruição da vida, porquanto o nome não era, apenas, uma designação prática para estabelecer e facilitar as relações sociais, outrossim considerava-se que fazia parte integrante das pessoas a quem era atribuído. Imagens, baixos relevos, ou estatuetas individuais vivificadas por arte do mago tornavam-se, assim, no próprio corpo da vítima, deste modo extremamente vulnerável às práticas de feitiçaria (14).

Talvez devido a uma forma antiga de pensar semelhante, os chineses ou não têm nome próprio, recebendo, apenas, o apelido da família e o número de ordem de nascimento, ou têm, quase sempre, mais de um nome. Por isso são frequentes os aliás, quando se trata da identificação de um chinês de Macau de família antiga e conservadora.

Bagate para afastar uma mulher

Quando uma mulher sabe que o marido a trocou por outra, arranja um pouco de óleo (15) que alumiou um morto (óleo de lamparina - san chipai, 神主牌) e unta com ele a sola dos sapatos do homem e da mulher sua rival.

O facto de se escolher a sola dos sapatos é apenas por ser um local pouco visível. Porque é difícil realizar a mesma operação em relação aos sapatos da outra mulher, pode untar-se com este óleo qualquer peça do seu vestuário ou parte do seu corpo. É fácil, com um lenço untado, disfarçadamente, tocar-lhe no vestido. "É infalível. Zan-gar-se-ão os dois e depressa o marido voltará para casa". Assim diziam as senhoras idosas de Macau, que nós conhecemos, nos anos 60-70.

Ao que parece, as mulheres chinesas usam óleo das lamparinas de culto que ardem sempre nos templos budistas. Porém, o mais frequente, é a colagem de dois papéis circulares recortados um vermelho (iéong) e outro verde (iâm) no tronco duma arequeira. Vimos mulheres chinesas a bater cabeça e a colar papéis deste tipo na arequeira de um dos pátios do templo de Kun Iâm em Mong Há (Kun Iân Ku Miu 觀音古廟).

Bagate forte

Com as práticas de bagate estão relacionadas, também, práticas de magia negra, porquanto envolvem a invocação de espíritos erradios, os temidos Kwâi, almas penadas, no consenso dos portugueses de Macau.

Estes espíritos são invocados pelas man héongpó (問香婆) que procedem a práticas mágicas as mais diversas, desde fazer aparecer a imagem dum espírito invocado ou dum inimigo que se quer conhecer, numa bacia de água (16), até à preparação dos mais diversos filtros de amor e de figuras de bagate.

O poder das man héong pó (問香婆) é tal, segundo afirmam as senhoras macaenses, que pode fazer aparecer o próprio diabo (17)ou fazer penetrar um mau espírito ou Kwâino corpo de alguém.

O espiritismo em Macau, confunde-se, de certo modo, com a magia branca, uma vez que as pai san pó (拜神婆) nas suas práticas consideradas "inocentes", invocam também espíritos, geralmente de divindades do panteão tauísta.

Há poucos anos, em Lisboa, aconteceu um caso que demonstra até que ponto as man héong pó (拜神婆) são tidas em grande consideração pelas senhoras euro-asiáticas de Macau.

Na residência duma família macaense, nossa amiga, em Lisboa, adoeceu uma pessoa muito estimada, para a cura da qual a medicina parecia ineficaz. Entretanto, começou a aparecer na casa o vulto dum homem que percorria o corredor, a ouvirem-se estrondos anormais na cozinha e a verificarem-se outros distúrbios considerados inexplicáveis. A senhora nossa amiga mandou para Macau a fotografia da pessoa doente, com o nome escrito no verso, e pediu que fosse consultada uma man héongpó, o que foi feito por intermédio de uma pessoa da sua família ali residente. A partir de certa noite em que se ouviu grande barulho na casa e os cães da vizinhança uivaram e ladraram furiosamente, o doente recobrou a saúde e os acontecimentos anormais deixaram de verificar--se. Era um Kwâi que perturbava o sossego da família, em consequência de mal de inveja.

A man héongpó (問香婆), "através dos espíritos dos mortos, pode saber o que se passa no Outro Mundo. Vê esses espíritos e tem poder sobre eles". Atribuem-se-lhe, por isso, curas frequentes de epilepsia por exorcismo, doença que se julga resultar da entrada de um Kwâi no corpo do doente. Geralmente é uma alma que "pretende alguma coisa". Sabendo-se do que se trata manda-se fazer, em papel, todos os objectos requeridos e queimam-se depois, para que vão servir quem os deseja.

Esta crença na vida do Além está a tal ponto arreigada entre os chineses, que chega a ser frequente o casamento entre mortos. A tia de um chinês nosso amigo de Macau, falecida em criança, casou, assim, com um rapaz que também falecera de tenra idade. A mãe deste rapaz, que não conhecia a avó do nosso informador, apareceu, um dia, em casa desta, pedindo para se fazer oca-samento do seu filho com a menina de nome F... que devia morar ali. De facto morara, mas falecera há vinte anos. Sucedera que, em sonhos, o filho, que também falecera criança, lhe aparecera e lhe pedira que lhe fizesse o casamento com aquela rapariga.

O casamento realizou-se. Tanto a cadeirinha nupcial como todos os seus aprestos eram em papel, sendo figurados, também em papel, os próprios noivos. Após a cerimónia foi tudo queimado menos as efígies dos recém-casados. De acordo com o cerimonial chinês, estas efígies foram para casa dos pais do rapaz, levados para um quarto e colocadas numa cama para elas previamente preparada. Ficaram ali, durante alguns dias, até que se queimaram também. No entanto, aquele quarto continuou a pertencer-lhes e as criadas da casa faziam diariamente a limpeza, como se se tratasse de pessoas vivas que ali habitassem.

Segundo Pierre Thuillier (18) parece que "toda a Ciência deve passar por um período de superstição bizarra: a Astronomia e a Química começaram, respectivamente, pela Astrologia e pela Alquimia. A Psicologia experimental terá começado por ser o Magnetismo animal e o Espiritismo". E conclui, citando Pierre Janet (19):"Não o esquecemos e não trocemos dos nossos antepassados".

Os que acreditam no Espiritismo admitem que os espíritos se revelam por meio de mesas que rodam, ou dançam, por meio de ruídos estranhos ou de mensagens, coisas de inteligência exterior, a que é costume chamar-se espiritismo ortodoxo.

Para estes, os mais importantes efeitos atribuídos à revelação dos espíritos são os seguintes:

- movimentos de corpos pesados, com contacto mas sem esforço mecânico;

- fenómenos sonoros;

- alteração do peso dos corpos;

- movimento de corpos pesados colocados a certa distância do medium;

- elevação de corpos pesados;

- elevação de corpos humanos (levitação);

- execução de melodias em instrumentos musicais;

- bolas luminosas que percorrem uma sala sem ruído;

- aparição de mãos luminosas, que podem ser vistas à luz;

- formas de fantasmas;

- transmissão de mensagens por abatimentos ou por outras formas, sempre que se pronuncie uma letra, formando palavras;

- manifestações diversas de carácter complexo, como por exemplo um ramo de erva sair dum ramalhente e percorrer uma mesa.

Um dos casos particulares muito em voga na Europa é o da chamada escrita automática. Esta é uma escrita que, segundo o físico Crookes, não é produzida por nenhuma das pessoas presentes. A mão do medium, escapando a todo o controle consciente (ou uma mão luminosa) escreve, com um lápis, frases sobre um papel, frases que contêm mensagens. No caso de se tratar dum me-dium, este ignora todo o conteúdo do que escreve. Primeiro, escreve traços largos, depois mais nítidos e, por fim, palavras. Entram, aqui, em cena os psicólogos pois estas experiências parecem incontestáveis contrariamente às outras. Sonambulismo? Sugestão ou hipnose?

É iniludivelmente deste tipo a prática da "escrita na areia" do oratório da San Kiu e também e do t'ip sin.

O Oratório tauísta de San Kiu

Ficava situado num quarto andar (20) duma casa do Bairro de San Kiu (新橋) que tinha, à porta, uma tabuleta onde se lia: San Sin Che Tan (神仙祭壇), o que significa altar ou recinto destinado a objectivos importantes, virtuosos e de fé, e que, literalmente, se pode traduzir por Recinto reservado às preces dos virtuosos e crentes.

A casa era muito modesta, dominada por um grande altar com a figura de Lôi Chou (Lôi Chou Tai Sin 吕祖大仙), um grande mágico tauísta que parece corresponder a uma figura histórica. No panejamento superior que ornamentava o altar, estava um dístico igual ao que se encontrava à porta. Naquele oratório só a mesa que servia de altar apresentava aspecto de pertencer a casa abastada, paramentada com panejamentos em seda vermelha, bordados a seda e a fio de ouro. No friso inferior podiam ver-se as figuras dos oito génios (pat sin 八仙), o grupo mais popular dos génios tauístas e, no plano superior, as figuras dos Sam Seng (三星) (Três Santos ou Três Estrelas), alegoria das três venturas, Fok, Lôk, Sau (福祿壽). Nesta primeira mesa encontravam--se um môk u (木魚) (cabeça de peixe) e um tong ku (銅豉), pequenos instrumentos musicais, com os respectivos percussores. A meio, estavam colocadas duas séries de três tigelas: três maiores com chá, e três menores com vinho, em homenagem a Sam Seng (三星) que representam, também, os San Un (三元), os três princípios básicos do Tauísmo: Terra, Céu e Água. Atrás, estavam, um incensório de estanho, com pivetes acesos, e, de um e de outro lado, duas pirâmides de laranjas e de maçãs, em quatro kou kéok tip (高脚碟) (pratos de pé alto).

À esquerda e à direita da figura do patrono tauísta da Medicina, Lôi Chou (呂祖) viam-se dois quadros em estilo caligráfico, com duas parelhas de versos formando uma dedicatória. Aliás, no panejamento que decorava a mesa, podia ler--se, do lado esquerdo, numa das duas tiras pendentes que o rematavam, que o pano fora oferecido por devotos beneficiados, que para tal se quotizaram, e do lado direito, o nome de uma Associação tauísta. No chão, encontrava-se uma jardineira em barro vidrado azul escuro e, sobre a mesa, sândalo em pó, e em pedaços, encerrados em dois frascos, bem como um pote com cinábrio, para desenhar os fu e um boi de vidro, com uma folha de toranjeira (pó lôk ip 波椂葉 ) para afugentar malefícios.

Na mesa principal de sacrifício, em pau-pre-to, apoiava-se um incensório bojudo e lanternas metálicas, douradas, forradas de vermelho. Na mesa maior, sucediam-se três lanternas de estanho, sendo, a do meio, uma lanterna do estilo chat seng (七星) (sete estrelas), isto é, com sete pratinhos para lamparinas.

Ao fundo, de um e de outro lado, existiam dois pequenos altares, sob a forma de quadros pintados, dedicados à mesma divindade, estando o que ficava situado à direita do altar principal forrado de papel vermelho. Junto à parede, encostavam-se duas cadeiras em pau-preto, forradas, também, de seda vermelha bordada com garças e flores, símbolos de longa vida e felicidade.

Papéis circulares recortados (vermelho, iéong, verde, iâm) usados pelas mulheres chinesas de Macau para afastar uma rival. Colam-nos em troncos de árvores para o ritual de bater cabeça, geralmente no espaço dos templos.

O elemento principal do oratório era, porém, uma caixa de madeira, com areia fina, de cerca de um metro de comprimento, apoiada sobre uma mesa, atrás da qual estava uma rapariga, acolitada por um bonzo, e por uma outra jovem, munida de uma espátula feita em madeira lisa e delgada. Sobre a areia, apoiava-se um tronco deárvore, de pessegueiro, nodoso, descortinado e em forma de forquilha.

Quando chegava um consulente devoto para interrogar a divindade, acerca da resolução dos problemas que o afligiam, bastava colocar-se diante do altar e concentrar, profundamente, a sua atenção numa pergunta. A rapariga que servia de medium e que se encontrava junto do tabuleiro de mãos estendidas e dedos unidos, aflorava, sem o tocar, o tronco que se encontrava sobre a caixa. Este começava, então, a deslocar-se sobre a areia, traçando ideogramas, alguns de formas caprichosas, indecifráveis pelos leigos, tal como os que são desenhados nos clássicos fu, ideogramas que a rapariga lia e ía ditando, em voz baixa, ao homem que se encontrava a seu lado, e que os ía escrevendo, num papel. A ajudante limitava-se a ir alisando a areia, com a sua espátula de madeira clara, provavelmente, também, em madeira de salgueiro ou de pessegueiro, as plantas simbólicas por excelência, para os tauístas.

Um velho bonzo, sentado a uma mesa, ao fundo da sala, interpretava, então, as respostas que o outro escrevia, ditadas pela rapariga, que servia de medium.

Vimos uma mulher chinesa, com uma criança de 3 ou 4 anos ao colo, prostrada com febre, procurar, na magia, a salvação que a Medicina parecia querer negar-lhe. Prostrou-se diante do altar; os seus lábios tremiam; provavelmente orava, possivelmente uma das súplicas budistas que, embora em oratório tauísta, também seria eficaz. O tronco de madeira agitou-se e escreveu vários ideogramas correspondentes à fórmula da receita e ao respectivo fu que o santo Patriarca tauísta ditara por intermédio da areia.

Na parede, do lado esquerdo de quem entrava, havia uma prateleira tosca, com pequenas divisórias, onde se amontoavam fu (21) etiquetados, e que serviam para fazer sin chá (仙茶), para as mais variadas doenças. Outro fu era, na altura, traçado com cinábrio e aplicado no ponto onde a divindade localizara o foco da doença. No caso daquela criança, o fu foi-lhe colocado no pescoço e, ao consulente seguinte, uma mulher de meia idade, foi-lhe aplicado um outro sobre uma perna. Ficámos a pensai na criança. Escarlatina, difteria, simples amigdalite?

Eu própria submeti-me à experiência. Mentalmente não formulei nenhuma pergunta rela cionada com qualquer doença. A concentração na pergunta, não podia ser, de forma alguma, o veículo para a medium, porque, a dada altura, comecei a copiar, no caderno de campo, os ideogramas escritos no altar, e a registar o que sobre a mesa se via. O tronco, contudo, sem parar, continuou a traçar ideogramas na areia. Gomo a sessão se prolongasse muito, voltei-me para trás, e perguntei "se ainda faltava muito para acabar". Todos se riram. Porém, o tronco, indiferente, continuou a escrever. E a verdade é que a resposta, que veio no fim, depois de interpretada, não se referia a qualquer mal ou doença, que é, em geral, o que ali vai perguntar-se, mas dizia, apenas:"tudo decorrerá bem" e "há-de conseguir tudo o que desejar, mas não pode ter pressa. Tudo para si, está destinado a processar-se devagar". $e eu fosse propensa a acreditar na magia, diria, certamente, que Lôi Pou é, de facto, um grande Mestre...

T'ipSin(碟仙)

O t'ip sin ou espírito do prato é uma prática muito frequente entre os macaenses para interrogarem um espírito. Relacionada, de certo modo, com as práticas de espiritismo do Ocidente é aliás, um assunto sobre o qual muito poucos gostam de falar. No entanto, a popularidade desta prática é tão grande entre os portugueses de Macau que, até nos anos 60-70, algumas alunas do Liceu sabiam como se fazia.

"Chamá t'ip sin"consta em escrever-se sobre um pedaço de papel, nomes, algarismos e palavras, entre as quais sim e não. No centro desenha-se um círculo sobre o qual se coloca, invertido, um pequeno pires, dos que se usam para os molhos que acompanham os pratos de comida chinesa.

Todos os presentes devem colocar os dedos das mãos sobre o pratinho sem lhe tocarem e concentrarem a sua atenção na pergunta para a qual desejam que o espírito invocado lhes dê resposta. O pratinho, sem ninguém lhe tocar, começa a movimentar-se, indo parar num número, letra ou palavra. A operação vai-se repetindo até se obter a resposta que se pretende (22).

Consta que na casa duma família muito conhecida de Macau, estava a proceder-se a uma destas cerimónias no rés-do-chão quando, de sú-bito, se ouviu, no primeiro andar, um grande estrondo.

Foram ver o que sucedera e encontraram, sobre o soalho, uma criança de pouca idade que dormia numa cama de grades e que por si só nunca poderia ter caído dali. Fora obra do espírito do prato, irritado por estarem a incomodá-lo ou, talvez por estarem a experimentar o seu poder.

Histórias como estas, e relacionadas com espíritos ou com almas do outro mundo, ouvimo--las, às dezenas, e a crença nestas forças ocultas enche de terror muitos macaenses, mesmo de elevado estatuto social e com grande cultura, que nós conhecemos e de quem somos amigos.

Invocação do demónio pela maçã

Esta prática só a recolhemos entre a população feminina de Macau. Tal como a do t'ip sin (碟仙) estava tão difundida nos anos 70 entre os macaenses, que até as jovens de 12-13 anos, que frequentavam o Liceu, a conheciam e a receavam credulamente. Esta prática, segundo no-la descreveram, consistia em acender-se uma vela à meia-noite e, diante de um espelho, durante o soar das 12 badaladas, descascar-se uma maçã com uma faquinha, cortando-se a casca sempre à roda sem a partir. Se tal se conseguisse, a vela apagar-se-ia e a figura do demónio aparecia no espelho. Pedia-se-lhe, então, que fizesse mal a alguém, ou pedia-se-lhe algum benefício. Quanto a nós, descascar uma maçã nestas condições, deveria ser extremamente difícil por exigir um auto--domínio extraordinário. A verdade é que não encontrámos alguém que tivesse conseguido tal proeza.

Ignoramos a origem de tal prática, mas supomos que tenha sido levada do Ocidente. De facto, a vela acesa é usada em várias práticas de magia (23), relacionando-se a maçã com o simbólico episódio bíblico de Adão e Eva, e estando com ela relacionados vários outros mitos.

Nas aventuras de Counla (Echtra Counla), a "Mulher do País das Fadas", convidou este herói para a acompanhar ao "País da Eterna Juventude". Deixou-o lá e deu-lhe uma maçã, que foi o único alimento que aquele ingeriu durante um mês inteiro. A medida que comia o fruto este regenerava-se, ficando sempre intacto. Noutro mito surge Cuchulim, herói que vai à "Mansão das Fadas", onde uma delas leva na mão uma maçã de ouro. Na viagem de Melduin, durante 40 noites, 3 maçãs eram bastantes para acalmar a fome e a sede de todos os seus companheiros.

Segundo Edmund Bergler e Géza Roheim a maçã representa o próprio seio materno (24). Segundo os mesmos autores são, por isso, numerosos os mitos principalmente germanos e eslavos em que a maçã aparece como tema fulcral, relacionada com efeitos mágicos. Por outro lado, é de referir que a figura do Diabo é, também, uma criação da Europa Medieval.

Filtros de amor

Uma outra forma de bagatear alguém, no dizer das senhoras de Macau, é dar-se a beber aos homens um chá ou poção, preparados pela pai san pó (拜神婆). Este filtro pode misturar-se no chá, no vinho ou mesmo na roupa da pessoa visada.

Philtro é uma palavra grega que deriva do verbo philein que significa amar. Segundo R. Blu-teau (25) philtro"(...) implica a acção de feitiçaria ou poderes mágicos dados mais para inspirar loucura do que para conciliar amor e indicar mútua inclinação entre duas pessoas". É esta, de facto a concepção de Macau e são estes os resultados muitas vezes obtidos.

Em Portugal, os filtros de amor eram muito populares entre o povo e ministravam-se muitas vezes injectados em frutos-maçãs ou cidras (26).

O mito e a tradição conservam dos filtros esta imagem sempre igual: a mulher dá e o homem ingere. Depois, sempre à mesma hora, este sente-se como doidopor aquela que lho deu.

Ficaram na história casos célebres que revelam a antiguidade do uso destes filtros. Um deles refere-se a Lucrécio (27) que em consequência dum filtro que a mulher lhe deu, se tornou tão furioso que veio a suicidar-se.

A própria maçã, que Eva deu a comer a Adão, não teria em si o germe do filtro que a serpente lhe instilara?

Gregos e romanos atribuem a invenção dos filtros aos egípcios. Ao que parece eram constituídos por beberagens afrodisíacas ou alucinogé-nicas, tal como sucede, ainda hoje, entre muitos grupos do Arquipélago indo-malaio e também entre os chineses conservadores.

Em Macau, foi extraordinariamente difícil recolher receitas de tais filtros. Diziam-nos as informadoras que desconheciam o seu conteúdo, que eram drogas preparadas pelas pai san pó (拜神婆). Apenas conseguimos que nos descrevessem o equivalente ao chá de pelo-de-pé brasileiro e comum em Portugal (28) e o caldo ou chá de sementes de loto branco.

Estatueta da deusa Kun Iâm, deusa budista da Misericórdia em porcelana pintada, e muito vulgar ainda nos dias de hoje, nos estabelecimentos de louças de Macau. São também igualmente vulgares, e mais apreciadas por alguns, as mesmas figuras mas em porcelana branca. Na ilustração salienta-se a mão removível, utilizada no ritual de obtenção da graça pretendida.

Contudo, junto dos mestres chineses de Macau, conseguimos identificar alguns dos simples que vendem para preparação de tais filtros, na sua maioria, como prevíamos, afrodisíacos e, como tal, já reconhecidos. Eis uma lista dessas mezinhas "para atrair o amor":

1 - Amendoim esmagado, a que se junta long sat (龍虱) ou soi sat (水虱) (hidrófilo ou barata de água).

Apanham-se estes insectos vivos, envolvem--se num pano e metem-se em água a ferver. O caldo resultante é considerado medicinal e um estimulante sexual masculino. Com hidrófilos pode preparar-se, também, um licor, com vinho de arroz, considerado um bom filtro de amor.

2 - (黑面神) (Hak min san) - Breynia fruticosa (L.) Hook. f.

É uma planta frequente nas colinas de Macau, que se vende, fresca, nos hervanários locais, ou que pode colher-se directamente. As folhas e as raízes são consideradas estimulantes sexuais e usadas para remover as páreas após um parto laborioso.

3 - (五味子) - (Ung mei chi) -"Fruta de cinco sabores" - Kadsura japonica. Os frutos secos, importados e vendidos nas farmácias chinesas, reduzidos a pó, são frequentemente misturados no chá ou no vinho para actuarem como afrodisíacos.

4 - (菊花石)- (Kôk fá séak) - pedra de crisântemo - simples de origem mineral (que não conseguimos identificar) reduzido a pó. Esta pedra é conhecida em chinês por este poético nome devido à forma dos seus veios. Coze-se em água até se reduzir a uma pasta. Deixa-se secar e reduz-se apó. É considerada um bom filtro de amor.

5 - Línguas de andorinhas, secas durante sete dias, aliadas a mel e a saliva de cobra venenosa, constituem, também, um filtro de antiga tradição entre os chineses. Dizem os informadores que o mel se usa para "neutralizar o veneno".

6 - Sementes de loto branco em caldo doce.

7 - Pó de casca de ostra raspada no sá-pun(29) misturado com pólen de flores de uma planta cujo nome omitiram, mas que supomos tratar-se de Thypha sp.(30).

8 - Filtros repugnantes A excretoterapia usada em medicina tal como a urina, leite, saliva e fezes de vários animais, principalmente de pombo, consta de várias receitas populares de Macau.

Pode dizer-se, porém que só esporadicamente entre os macaenses os excreta fazem das suas mezinhas de casa. No entanto, os produtos catameniais, tal como em Portugal, no Brasil e possivelmente em muitos outros pontos da Terra, são usados em práticas mágicas, não para curar doenças, mas como elixir de amor.

Em Macau muitos portugueses, principalmente europeus solteiros, enlouqueciamcom frequência. Quando ali chegámos, em 1957, foram repatriados três militares, devido a "transtornos mentais"atribuídos a mulheres chinesas com quem viviam. Entre a gente da terra, dizia-se, "em segredo", que tal era devido ao abuso dos filtros de amor: sementes de loto branco e outros afrodisíacos misturados no vinho, no chá ou nos alimentos. Até se dizia que, postos na roupa, podiam surtir efeito.

A mais famosa desta mezinhas para atrair o amor de um homem consistia, porém, em reduzir a cinzas papel pagode usado durante período ca-tamenial da sedutora, cinzas que se misturavam numa bebida qualquer, adicionando-se-lhe, por vezes, pêlos pubianos também queimados e reduzidos a pó. Tais ditos corriam de boca em boca. Também se dizia que eram muitas as fórmulas usadas para o mesmo fim mas que, tais filtros, tal como as mezinhas abortivas, eram preparados pelas benzedeiras, ou pelas parteiras chinesas, que as forneciam às senhoras macaenses, que ignoravam, por isso, com rigor, a sua composição. Estas práticas repugnantes são, no entanto, muito antigas e a sua origem é duvidosa, pois, ao que parece, já eram conhecidas e usadas pelos antigos egípcios.

Consta que, no Brasil, como já atrás se referiu, era frequente preparar-se um chamado chá de pelo-do-pé, que era feito com pêlos pubianos duma rapariga, torrados e dados a beber, como elixir de amor, a um homem a quem ela desejava bagatear (31). Terá qualquer relação este chá com o chá-de-pelo-pé cuja referência consta de um antigo caderno de receitas de Mezinhas de Macau? De notar, é, porém, que no Brasil, também se usa a palavra indiana bagate (32) no consenso de feitiço, o que nos leva a constatar a força com que tais práticas se teriam imposto à mentalidade dos portugueses que demandaram, nos antigos tempos, tanto a Oriente como as terras da América.

Bagate. Palavra que se dizia em voz baixa em Macau nos anos 60/70. Palavra da qual muitos homens se riam, mas que as antigas senhoras pronunciavam seriosas, saboreando o agridoce do mistério.

BIBLIOGRAFIA

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THUILLIER, Pierre - Le Spiritisme et la Science de l'incons-cient,"La Recherche" Vol. 14, 149, 11 (1983): 1358--1368.

NOTAS

(1)Este espírito que os portugueses traduzem por diabo, corresponde a alma erradia, alma de quem morreu jovem ou de morte violenta. Alma insatisfeita.

(2)Chás mágicos que consistem na inclusão nos chás medicinais das cinzas de um papel adquirido nos templos chineses ou fornecidos pelos bonzos tauístas ou pelas benzedeiras, papel geralmente amarelo com um dístico esconjuratório pincelado a vermelho (um dito fu).

(3)Esta boneca é conhecida por môk kwun chai (木官仔) boneca em madeira, em tradução literal e por isso sem qualquer nome específico, o que parece apontar para uma introdução por via não chinesa.

(4)"Boneca de bonza tauísta", em tradução literal. É de notar o ideograma diferente (paronímico) que designa, aqui, kong chai (公仔) - boneca/o.

(5)Recentemente, foram exumadas na China figuras de grande valor artístico e histórico, datadas da Dinastia Quin (221-206 A. C. encontradas no túmulo do seu lo Imperador.

(6)Grillot de Givry - Anthologie de I'occultisme, Paris, La Sirène, 1921, p. 63.

(7)Joseph Maxwell - La Magie, Flammarion, 1922, p. 66.

(8)Hubert et Mauss - Mélange d'histoire des religions, Paris, 1904.

(9)Ficou famoso o carmelita Ricardi que, em 1329, foi degredado por colocar estatuetas de cera no umbral das casas das mulheres por quem se apaixonava.

(10)Cit. por Serge Hutin in Bulletin archéologique et his-torique du Tarnet-Garonne, vol. IV. 1876.

(11)Luís, X, filho de Filipe o Belo e seu sucessor, nasceu em Paris em 1289, foi Rei de Navarra em 1304, por morte de sua mãe, e foi rei de França de 1314 a 1316.

(12)Filipe VI de Valois, filho de Carlos de Valois e de Margarida de Sicilia, nasceu em 1293 e reinou de 1324 a 1350.

(13)Collecção das mais celebres sentenças das inquisições de Lisboa, Évora, Coimbra e Goa; algumas d'ellas originaes outras curiosamente annotadas (...) por António Joaquim Moreira, Lisboa, 1863, 2 vols. (cit. por Adolfo Coelho - Ethnographia Portugueza, III - Bol. da Soc. de Geografia de Lisboa, 2.a Série, N.os 9 e 10, Lisboa, Imprensa Nacional, 1881, págs. 664-665).

(14)Serge Sauners Le Monde du Magicien Egyptien, Paris, 1885.

(15)Este óleo é de amendoim, conhecido, neste caso, por tang sang iau (燈生油) (óleo de lamparina chinesa).

(16)Esta prática, aliás, era frequente em Portugal no sé culo XVI, tal como consta dos processos da Inquisi-ção registados por Adolfo Coelho - Ethnographia Portugueza in "Bol. da Sociedade de Geografia de Lisboa", ob. cit., Lisboa, 1881.

(17)O Diabo, tal como é concebido no Ocidente não tem. qualquer equivalência entre os chineses. A personagem mais próxima é uma divindade guardiã dos infernos budistas e cuja imagem em papel armado sobre bambu, costuma anteceder os cortejos fúnebres tradicionais.

(18)Pierre Thuillier - Le Spiritisme et la Science de l'in-conscient, in "La Recherche", vol. 14, 149, 11 (1983): 1358-1368.

(19)Pierre Janet- L'automatisme psychologique- Essai de psychologie expérimentale sur les formes infé-rieures de l'action humaine, "Alcan", 3e ed., 1899, p. 376 (tese de doutoramento em Filosofia).

(20)O quarto andar em Macau corresponde ao terceiro, porquanto ao primeiro corresponde o rés-do-chão.

(21)Talismã que consiste num papel onde se escrevem ideogramas mais ou menos indecifráveis.

(22)Esta prática é semelhante, aliás, à que se desenrola sobre areia no oratório tauísta de San Kiu, atrás descrito.

(23)A vela acesa, no Ocidente, representa o corpo humano com o seu espírito, pelo que, se nos afigura, esta prática, um vestígio da antiga feitiçaria Ocidental.

(24)Edmund Bergler e Géza Roheim - Psicanálise e Sociedade, Ed. Presença - Perspectivas 22,1970, pág. 141 a 145.

(25)R. Bluteau, Voccabulario (...), Lisboa, MDCCXIII--MDCCXXI.

(26)Meu avô materno, antes de casar (c. de 1893), ofereceu à minha avó uma apetitosa maçã. Uma rapariga da Vila de Soure, sua conhecida, oferecera-lhe, pouco antes, esse fruto, por garridice. Minha avó não a comeu logo. No dia seguinte, a maçã estava revestida de pêlos altos e repugnantes. Ouvi contar esta história na minha infância. E sei que é verídica.

(27)Na Antiga Roma os filtros de amor eram muito utilizados e, de tal forma, que o seu comércio mereceu a censura das autoridades, sendo tais práticas puníveis pelo Direito Romano (Edito do Imperador Tibério).

(28)Ver, adiante, em Filtros repugnantes.

(29)Prato fundo em barro grosseiro, com grandes sulcOs entrecruzados e que serve para nele se rasparem produtos sólidos, reduzindo-os a pó.

(30)Esta nossa afirmação carece de rigor, porque apenas observamos o pólen seco e à vista desarmada.

(31)No Brasil admite-se que se um destes elixires for dado pela mulher ao marido, antes do casamento, este ficará sempre sujeito ao seu domínio.

(32)Alceu Maynard Araújo - Medicina Rústica, São Paulo, 1961 e Luís da Câmara Cascudo-Folclore do Brasil, Ed. "Fundo de Cultura", Rio de Janeiro, 1967.

*Professora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (Departamento de Antropologia); investigadora do Centro de Estudos Orientais da Fundação Oriente, com vasta obra publicada, sobretudo de temas da Etnografia de Macau.

desde a p. 99
até a p.