Antologia

A destruição da esquadra de Kam-Pau-Sai

Luís Gonzaga Gomes*

Como nos propusémos no primeiro número, RC integrará regularmente nas suas páginas um espaço de "Antologia" e (ou) de "Arquivo", ocupado com aqueles textos que, pelo seu valor documental, mereçam a publicação ou a reedição oportunas. Reservado ao número 2 da RC, o texto seguinte acabou por ser retirado, em razão da extensão que faria desbordar os limites comportáveis de volume. Agora o retomamos, com o gosto de mais contribuir para o conhecimento público da grande figura macaense que foi Luís Gonzaga Gomes e de proporcionar ao leitor um texto que, sobre o interesse e a curiosidade históricas, é enredo empolgante, como que o guião prestável à ilustração de um álbum de banda desenhada. Uma série de episódios que merecem, por certo, lugar de destaque na crónica sobressaltada da luta dos portugueses contra as hordas piratas nos mares da China.

Carta do Combate Naval da Boca do Tigre (ca. 1810; manuscrito, colorido; Arquivo Histórico Ultramarino). Exemplifica o combate naval entre uma esquadra portuguesa de 6 navios, 118 bocas de fogo e 730 homens e a frota pirata de Kam Pau Sai, de cerca de 300 juncos de guerra, 1500 peças e cerca de 20.000 homens.

Kam-Pau-Sai, que andava a preparar a invasão do continente, ideia que abandonara, momentaneamente, para se entregar de novo à pirataria, quando soube que o temível Pereira Barreto seguira para o Brasil, convenceu-se entretanto de que, efectivamente, não lhe era difícil conseguir ser o chefe supremo do seu país. Tratou, então, de fomentar a revolta em Kuóngtông, a província onde existiam mais descontentes, sendo portanto, a mais predisposta à sua causa.

Para poder debelar a incipiente revolta e a anunciada invasão da sua província, o vice-rei de Cantão tratou de organizar, precipitadamente, um exército e de aprontar uma nova esquadra.

Ora já em 15 de Agosto de 1791 o mandarim de Hèong Sán tinha pedido, em ofício, ao Senado, para aparelhar e equipar dois navios destinados a vigiar a costa de Lintin, auxiliando, deste modo, as autoridades chinesas, na limpeza dos mares adjacentes. O Senado não quis, porém, prestar tal socorro sem que o pedido fosse oficializado com a confirmação do vice-rei de Cantão e autorização do imperador, a fim de poder exigir, em contrapartida, o restabelecimento dos antigos privilégios usufruídos pela cidade, como sejam o de edificar sem necessitar licença dos mandarins, julgar os delinquentes chineses residentes na cidade e a liberdade de frequentar livremente o porto de Cantão, pretendendo, ao mesmo tempo, a isenção do pagamento ao imperador, pela medição dos barcos que entrassem no porto de Macau.

Falharam as negociações nessa ocasião, pois receava-se que o mandarim de Hèong Sán não pudesse cumprir qualquer promessa que fizesse, uma vez que não estava devidamente autorizado pelo imperador a fazê-la e, também, porque o Senado queria que as despesas desta expedição fossem custeadas pelas autoridades chinesas.

Com a intensificação das actividades dos piratas, renovou o mandarim de Hèong Sán, em 1792, o seu pedido. O Senado estipulou, então, que o auxílio solicitado seria satisfeito, desde quando fossem reconhecidos os antigos direitos dos portugueses, na península, até à Porta do Cerco e sobre a Lapa, (Ribeira Grande e Pequena e Oitem) e a ilha do Bugio (Malauchau); o direito de permitir aos chineses residir em Macau e de os expulsar, quando se comportassem mal; o direito de confiscar propriedades ou mercadorias dos devedores chineses, a fim de os obrigar ao cumprimento dos seus contratos com os negociantes; o de punir residentes chineses que fossem condenados por crimes que tivessem praticado e de justiçar os que tivessem assassinado qualquer cristão; o de os moradores de Macau poderem frequentar e transaccionar livremente em Cantão, bastando, para esse efeito, estarem munidos duma licença do procurador do Senado; e, ainda, o direito de os portugueses apresentarem, por intermédio do mesmo procurador, queixas contra quaisquer mandarins, a fim de obterem justas reparações por agravos sofridos.

Respondeu o mandarim de Hèong Sán a estas condições, como de costume, com subterfúgios e evasivas, motivo por que falharam, também desta vez, as negociações.

Kam-Pau-Sai, porém, após um período de tréguas que aproveitou para refazer as perdas que lhe foram infligidas pelo Princesa Carlota e Belisário, voltou novamente à actividade e de tal modo intensificou os seus ataques que o mandarim de Hèong Sán não encontrou outra solução senão a de impetrar, uma vez mais, o auxílio dos portugueses, sendo o assunto ventilado pelo Governador José Lucas de Alvarenga, na sessão do Senado de 10 de Fevereiro de 1810.

Segundo o voto exarado, nessa ocasião, pelo vereador D. António de Eça, se verifica que a situação agravara-se, agora, com o surto de um novo elemento que poderia ser profundamente prejudicial aos interesses de Macau.

Os negociantes ingleses, que andavam a fornecer pólvora, munições e outros apetrechos de guerra aos piratas, ambicionando obter dos chineses vantagens e privilégios para o seu comércio, deram a entender que estavam dispostos a auxiliá-los na repressão da pirataria e, como efectivamente tivesse aparecido em Macau, vindo de Cantão, o navio Mercúrio, com bandeira inglesa e armado para combater os piratas, sendo ainda voz corrente que outro brigue inglês se estava a preparar para o mesmo efeito, o Senado, sob a pressão desta circunstância e compreendendo, ao mesmo tempo, que existia premente necessidade de restaurar a tranquilidade pública e restabelecer as relações comerciais, interrompidas pelas actividades dos piratas, viu-se obrigado a tomar uma decisão, sem o que o prestígio português sofreria duro golpe, além das prejudiciais consequências que se seguiram com a intervenção dos ingleses.

Propõe, então, o desembargador Arriaga que se organizasse uma expedição com o brigue Princesa Carlota, pertencente ao Senado, e os navios Belisário e Angélica e a pala Conceição, cujos proprietários se prontificaram a emprestá-los, gratuitamente, pelo espaço de um mês, comprometendo-se os negociantes chineses de Macau a concorrer com as despesas que teriam de se fazer com os vencimentos dos seus tripulantes e respectiva matalotagem.

Satisfazia-se, assim, o pedido do mandarim de Hèong Sán, sendo o objectivo desta expedição:

1. ° Obrigar os piratas a afastarem-se dos mares adjacentes;

2. ° desimpedir o canal a bem do comércio e da fazenda pública; e

3. ° impedir a execução doutros planos nefastos aos interesses da cidade, tais como o da aceitação do auxílio inglês pelos chineses, pois entendia o desembargador Arriaga haver urgência em destruir quaisquer ideias, fomentadas por intrigas e patranhas dos estrangeiros, que os chineses alimentassem contra a capacidade e as possibilidades dos portugueses de destruirem os piratas, ideias essas que estavam embaraçando a conclusão dos ajustes entre o vice-rei de Cantão e esta cidade.

As mútuas desconfianças, que andavam protelando a fiscalização dum acordo, que o desembargador Arriaga fora pela Governança da cidade incumbido de entabular com as autoridades chinesas, visto ser ele o indivíduo que, pelo seu dinamismo e enérgico procedimento anterior, mais confiança merecia dos chineses, acabaram por ser removidas, quando o vice-rei de Cantão, perante fidedignas informações comprovadas por inquietantes ocorrências, compreendeu, assustadamente, ser sério o perigo que ameaçava o império, tanto mais que os bonzos partidários de Kam-Pau-Sai facilmente poderiam subverter o país, alienando por completo a fidelidade da população chinesa, pois não lhes era difícil torná-la perigosamente fanática, levando-a a convencer-se por superstição e com ardilosas intrigas, de ser o chefe de piratas o legítimo imperador da China.

O desembargador Arriaga, que exercia grande influência no ânimo dos membros do Senado, sem o que não lhe teriam dado carta branca para negociar como bem entendesse, correspondeu, em tudo, à confiança nele depositada, pois soube conduzir-se com tão arguciosa habilidade que induziu o vice-rei de Cantão a rejeitar o auxílio gratuito da Companhia Inglesa das Índias Orientais, pronta a mandar vir uma força naval para iniciar as operações contra os piratas, no começo da estação de 1810, e a encetar negociações, para este efeito, com ele, em Macau, como representante das autoridades locais.

Arriaga redigiu, então, com escrupulosa meticulosidade, um memorial, endereçado ao vice-rei de Cantão, realçando todas as vantagens que adviriam de um entendimento com os portugueses e, por intermédio de um negociante português daquela cidade, foi esse documento entregue a um cule de confiança da repartição do vice-rei, que diligenciou por o fazer chegar ao seu destino. Entregue o memorial, e assim que se soube em Macau que o vice-rei tinha nomeado três emissários para vir a Macau negociar com Arriaga, o portador do referido documento foi recompensado com a gratificação de 50 patacas, soma bastante elevada para a época.

Todo o assunto foi, então, escrupulosamente debatido sob todos os aspectos, durante as longas negociações efectuadas em Macau, acabando por se lavrar a seguinte convenção:

«S. Exa. o Vice-Rei das duas províncias de Quang-tong e Quansi, e o Governador da cidade de Macáo, estando igualmente convencidos da necessidade de pôr fim a depredação dos piratas da China, que sem temor infestam os mares que banham as duas cidades de Cantão e de Macáo, para assim restabelecer a tranquilidade publica, e a segurança do comercio e a navegação nestas paragens, resolveram mutuamente concluir huma Guarda Costa (esquadra a corso) que será guarnecida pelas forças dos dois governos. Elles nomearam para o dito fim, como seus representantes, a saber: S. Exa. o Vice-Rei, de Cantão nomeia os mandarins Pom, de Hiang-san, Shing-Kei-Chi de Nambay, e Chu da Casa Branca; e o Governador de Macáo nomeia como seus representantes a Miguel de Arriaga Brun da Silveira, Desembargador Ouvidor de Macáo, cavalheiro da Ordem de Christo, e a José Joaquim de Barros, Capitão Mór do Campo, cavalheiro da Ordem de Christo: os quaes, depois de haverem trocado os seus respectivos plenos poderes, concluíram e convieram nos seguintes artigos:

Artigo 1. ° Estabelecer-se-ha immediatamente huma Guarda Costa, composta de seis navios Portugueses armados, unidos à Esquadra Imperial, que deverá cruzar desde o Paul, Bôca Tigre, até esta cidade, e desde esta cidade até Hiang-san pelo golpho, a fim de obstar a que os Piratas entrem nos canaes que elles até aqui têm principalmente infestado, exercendo todas as crueldades e as mais horríveis devastações nas aldeias e cidades da costa do mar.

Art. 2. ° O Governo Chinez convem em pagar a somma de 80.000 taéis para as despezas dos navios Portuguezes. Não será licito faltar à execução deste artigo, ainda que a expedição se mallogre por alguma causa inesperada.

Art. 3. ° Governo de Macáo equipará com gente, armas, munições, etc., os seis navios acima estipulados com a maior pressa possível.

Art. 4. ° Ambos os Governos e as suas forças respectivas empregadas neste serviço cooperarão mutuamente hum com outro em promover o objecto que ambos têm em vista.

Art. 5. ° Todas as prezas tomadas aos piratas pelas forças combinadas serão igualmente divididas entre a Esquadra Portugueza e Imperial.

Art. 6. ° Conseguindo-se o objecto da expedição todos os antigos privilégios de Macao lhe serão restituidos.

Art. 7. ° Esta Convenção deve ser considerada como ratificada pela assinatura das partes que subscrevem em virtude dos seus plenos poderes.

Em fé do que nós assignámos as presentes, e lhe fizemos pôr os sellos das nossas armas.

Feito em Macáo aos 23 dias do mez de Novembro de 1809 - Miguel de Arriaga Brun da Silveira - José Joaquim de Barros - Sêllo pelos mandarins Shing-Kei-Chi - Chu - Pom».

Por esse documento se verifica que o desembargador Arriaga procurou, como afirmou o vereador D. António de Eça, no seu supracitado voto, «atender a Defença da cidade, a liberdade do Giro, e a decencia Nacional sem prejuízo da Real Fazenda; por quanto não se querendo fazer a Cidade mercenaria de huma Nação aziatica, o que seria sem dúvida contra a vontade de S.A.R. e sua independência, houve o comportamento da parte da Cidade das Despezas de dois Navios por ser essa a uzual, e que da parte dos Chinas haveria a concorrência de oitenta mil taéis para as Despezas dos quatro Navios restantes calculadas bem a justa para não deixar manchada a glória esperada».

Esta soma de 80.000 taéis, com que o Governo chinês concorria para as despesas da· expedição, destinava-se a armar, tripular e provisões para seis meses.

O Senado, quando se firmou a convenção estava plenamente persuadido que os seis navios que iam armar não serviriam senão para aterrar e afugentar os piratas dos mares adjacentes, pois julgava que, para se intentar uma acção de tão grande envergadura, destinada a bater, de uma vez para sempre, os piratas, teria necessidade de reforços, motivo que o levou, dias antes da conclusão da convenção, isto é, a 16 de Novembro de 1809, a escrever, urgentemente, ao vice-rei da Índia a pedir-lhe o envio do brigue S. João Baptista, comandado por um dos oficiais que já tivesse estado em Macau, devendo a sua guarnição ser constituída inteiramente de marinheiros metropolitanos, e, devido à falta de soldados na cidade, de um contingente de 120 soldados nativos, para completar um corpo de 300 praças com oficiais inferiores todos metropolitanos.

Pedia, também, o Senado vinte barris de pólvora, dezoito peças de calibre 9, seis de 14, seis de 24, doze de 6 e doze obuses de 18 a 36 com os seus respectivos reparos, balas, metralhas e planquetas, quinhentas espingardas com baionetas e patronas novas, duzentos traçados, quatrocentas granadas ou balas, cem peças de lona, cinquenta de brim, vinte e cinco barris de alcatrão e cabos de linho, devendo o que não coubesse no brigue ser enviado no navio Activo, armado em guerra.

Prevendo, entretanto, que este auxílio não chegaria em devido tempo, porquanto o socorro de 150 a 200 soldados metropolitanos com a fragata Princesa do Brasil que o Príncipe Regente tinha ordenado, em 13 de Março de 1807, ao vice-rei da Índia, que fosse enviado para Macau, ainda não tinha sido despachado, tratou o Senado de pedir marujos filipinos a Manila, pedido esse que foi imediatamente satisfeito, pelo Governador das Filipinas.

Entretanto, como o Senado possuía apenas o brigue Princesa Carlota, foi necessário aprontar mais cinco navios, em cumprimento da primeira cláusula da convenção, armá-los e tripulá-los com cerca de cem portugueses, metropolitanos e macaenses, que eram quantos homens válidos existiam nessa ocasião na cidade e 630 asiáticos e, estando os recursos do tesouro senatorial exaustos, o ouvidor Arriaga, sob o seu crédito pessoal, contraiu vários empréstimos com os prificipais negociantes, principalmente com António Pereira Tovar e Felix José Coimbra, sendo avultadíssimas as quantias pois as despesas orçavam em cerca de 12.000 patacas.

Investido com as atribuições de Intendente da Marinha, pelo Governador José Lucas de AIvarenga, o ouvidor Arriaga desenvolveu tal actividade e obrou tais prodígios que conseguiu aprontar e fazer sair para o mar os seis navios, no breve espaço de cinco dias, tendo a Companhia Inglesa das Índias Orientais fornecido grande quantidade de munições.

A esquadra portuguesa ficou assim composta: Inconquistável de 400 toneladas e 26 peças, com 160 homens de equipagem, onde embarcou o comandante-chefe, o capitão de artilharia José Pinto Alcoforado de Azevedo e Sousa; a pala Conceição, de 18 peças com 130 homens, do comando de Luis Carlos de Miranda; Indiana, 24 peças com 120 homens, do comando de Anacleto José da Silva; Belisário, de 18 peças, com 120 homens, do comando de José Alves; S. Miguel, de 16 peças, com 100 homens, do comando do alferes José Felix dos Remédios; e o brigue Princesa Carlota do Senado, de 16 peças e 100 homens, do comando do célebre António José Gonsalves Carocha, perfazendo ao todo uma força de 118 bocas de fogo com 730 homens, que junta à Armada Imperial Chinesa de 60 tous de guerra, artilhada com 1.200 peças e 18.000 marinheiros e soldados escolhidos, representava, sem dúvida, um aparatoso poder naval jamais visto nas águas de Macau.

Logo no primeiro dia da sua saída do porto desta cidade, isto é, em 29 de Novembro de 1809, esta numerosa esquadra lançou-se no encalço dos piratas, que só fugiam dos barcos portugueses, pois os da Marinha Imperial, ou por espírito de partido ou por medo, mantinham-se inactivos recusando-se a actuar. Alguns juncos inimigos que não conseguiram fugir a tempo, talvez por se julgarem suficientemente fortes para dar combate aos nossos barcos, foram queimados uns e metidos a pique outros, sendo dispersa e posta em fuga a maior parte, em número de duzentos.

Novo combate se travou à vista de Macau, no dia 11 de Dezembro do mesmo ano, surgindo a esquadra dos rebeldes dividida em três grupos. Não conseguindo levar a melhor, os piratas, como de costume, acossados pelos nossos barcos, foram compelidos, depois de sofrerem a perda de 15 embarcações, a procurar refúgio em distantes paragens.

Entretanto, Kam-Pau-Sai entendeu, prudentemente, não dever enfraquecer-se e, assim, deixou de enviar os seus barcos para as expedições depredatórias ou para a colecta das contribuições e procura de provisões de boca, tão necessárias para alimentar a sua numerosa quadrilha, incapaz de sofrer a fome com resignação e, vendo que só tinha de se arrecear dos portugueses, deputou emissários para se avistarem com o comandante-chefe da frota portuguesa, propondo respeitar daí em diante os nossos barcos, mas Alcoforado rejeitou-as indignadamente, aproveitando o ensejo para o exortar a submeter-se ao imperador, com a promessa, conseguida das autoridades chinesas, de que seria amnistiado e recompensado com um honroso posto na Armada Imperial.

Kam-Pau-Sai respondeu, altivamente, em 18 de Dezembro, dizendo que de nada temia, desejando ele viver em paz com os portugueses, desde que não se intrometessem nas suas actividades.

Entretanto, em 12 de Janeiro de 1810, com o fim de induzir os partidários de Kam-Pau-Sai a abandonarem a sua causa, foi publicado um decreto imperial, prometendo indulto absoluto a todos os rebeldes que se entregassem. Poucos foram, porém, os que aceitaram o prometido perdão.

Apesar de as autoridades acenarem aos rebeldes com sedutoras promessas e forjando as mais complicadas intrigas, nada conseguia persuadi-los a entregarem-se. Só o eficaz poder das nossas valoro-sas armas começou a fazê-los trepidar.

Entrementes, novo encontro se efectuou, em 15 de Janeiro. Vendo a retirada cortada, o chefe Apau-tai reuniu urgentemente os outros chefes do pavilhão negro para um conciliábulo de emergência, concordando todos ser inútil qualquer esboço de resistência, perante aqueles terríveis barcos portugueses que os bloqueavam. De unânime acordo, foram enviados parlamentários, para se avistarem com Arriaga, pois não queriam outro medianeiro da sua capitulação. Prontificaram-se, então, a entregar cem juncos de guerra e trinta lorchas auxiliares com oito mil revoltosos, mediante certas condições.

Arriaga soube convencer de tal forma as autoridades chinesas acerca da conveniência de aceitar essa capitulação e de satisfazer as exigências dos rebeldes, que o Governo chinês não hesitou em aceitá-la, sendo entregues os juncos e dispersas as suas guarnições.

Novas diligências se envidaram para persuadir Kam-Pau-Sai a render-se, mas este, apesar da defecção do seu parente e braço direito, com tão elevado número de sequazes, não desanimou, continuando a enviar os seus barcos à procura dos nossos navios para com eles travar combate. Os seus capitães portaram-se sempre com inacreditável heroicidade, deixando arrastar-se para o fundo do mar, com os seus barcos, quando não conseguiam retirar-se, não se rendendo nunca. Alcoforado, espantado com esta heróica persistência e não podendo deixar de admirar tão valoroso caudilho, resolveu tentá-lo com novas propostas, exaltando a sua coragem e qualidades guerreiras bem como as dos seus homens.

Kam-Pau-Sai respondeu, em 26 de Fevereiro, nos seguintes termos:

«Homem recebi huma Chapa vossa mui persuasiva, da qual se evidencia o desejo que tendes de me ver em Macáo. Fico-vos agradecido por tão singular obsequio. Estando sobre os mares, como no centro de hum reino, no qual empunho o sceptro do poder e governança para todos os que me obedecem, vivo muito occupado: não hé negocio simples o governar póvos, e eis o motivo por que não cumpro o vosso desejo. Agora todo o meu empenho, hé restaurar e possuir as terras deste orbe, sem as quaes não ficarei satisfeito. Se quizerdes emprestar-me quatro navios para fazer com elles o que me aprouver, mais depressa restaurarei o Imperio, depois dar-vos-hei duas, ou três províncias ao vosso contento; e não duvideis da fidelidade da minha promessa: quanto aos navios, senão podér ser já, fique para quando vos convier. Ha muitas pessoas que me aconselham para render vassalagem a hum Tartaro. São exortações baldadas. Possuindo esta esquadra com divisa da bandeira vermelha, farei com ela todos os esforços para libertar o Throno Imperial. Já mandei apromptal-a para se dirigir à Boca Tigre, a fim de bater as forças do Usurpador. Tenho outros assumptos a communicar-vos, porém agora não o posso fazer, entendendo ser bastante quanto vos digo, para viverdes na inteligencia do meu firme proposito».

Pudesse Alcoforado ou tivesse o Governo de Macau aceitado colaborar com Kam-Pau-Sai e conseguido este ocupar o trono imperial chinês, o que não seria difícil, desde que fosse inicialmente prestado o auxílio que ele pedia de quatro barcos apenas, não só a nossa posição no Oriente teria mudado para melhor como se efectuaria uma grande transformação na situação da política mundial. Não estávamos, porém, afeitos à traição. Nunca na nossa história se registou tal palavra. Tínhamos de respeitar a convenção firmada por Arriaga com os representantes do Governo chinês. E, assim, se deixou de dar uma viragem na história que teria provocado transcendentes consequências.

Como Kam-Pau-Sai se recusasse a capitular, Alcoforado, convencido de que não conseguiria levá-lo a entregar-se por meios suasórios, recomeçou as hostilidades.

Kam-Pau-Sai adoptou, então, a táctica de enviar uma pequena divisão de barcos ligeiros e de melhor marcha, como expediente diversionário e destinado a entreter Alcoforado, enquanto fazia recolher o grosso de maior lote e com melhor artilharia aos apertados canais de escassa água que, por este motivo, não podiam ser demandados pelos nossos barcos e ali, com extremo recato, obrigava os artilheiros ingleses e americanos, capturados nos barcos que apresara, a adestrarem os seus homens no uso das peças de artilharia, preparando-os, desta forma, para a batalha decisiva.

Por seu lado, os negociantes ingleses continuaram, com duplicidade, a fornecer munições e petrechos de guerra aos piratas, pois tinham toda a conveniência em que os portugueses fossem derrotados, o que forçaria as autoridades chinesas a solicitarem o seu auxílio.

Chegou, finalmente, o dia 21 de Janeiro de 1810, data que os oráculos indicavam aos piratas como sendo inexcedivelmente auspiciosa, para enfrentar a frota macaense. Esta pairava vigilante ao largo de Lantau, quando surgiu do oriente densa floresta de mastros com galhardetes encarnados drapejando no topo.

Kam-Pau-Sai decidira jogar a última cartada. Trouxe, assim, quase toda a sua esquadra: nada mais nada menos que 300 juncos de guerra com 1.500 peças de artilharia e para cima de 20.000 combatentes, alinhados, ordeiramente, em três divisões. Todo este formidável poder naval, jamais visto nos mares da China, ia cair sobre apenas seis barcos, que montavam um total de 118 peças com 730 homens. Tremendíssima desproporção, que faria hesitar qualquer comandante, pois o adversário era gente extremamente aguerrida, afeita a combater com destemida coragem e que não sabia render senão vendendo cara a vida, tendo para mais, como comandante, um chefe astuto, valoroso e desesperado.

Ia ser um combate de vida ou de morte e Alcoforado sabia, perfeitamente, que estavam em jogo não só o destino de Macau e o prestígio de Portugal como também a sorte da própria China. Aproximava-se, cada vez mais, a esquadra inimiga. Alcoforado, bravo entre os mais bravos, mantinha-se no tombadilho do lnconquistável, impávido e sereno, de nervos absolutamente dominados e olhos atentos ao mais pequeno movimento dos barcos dos piratas.

Nisto, chegado o momento que julgava mais oportuno, cintilou à luz do sol a lâmina reluzente da sua espada, sinal convencionado de romper fogo e, imediatamente, reboou pelos ares tremendíssimo fragor de centenas de peças que vomitavam, incessantemente, fogo e ferro.

Os nossos barcos avançaram afoitamente, contra os barcos inimigos de maior lotação da primeira linha com absoluto menosprezo pela metralha inimiga, até ao alcance de tiro de espingarda. A essa distância, bastava uma descarga da nossa artilharia para desmastrear e pôr em fuga a embarcação que por ela fosse alvejada. Alguns barcos mais audaciosos dos piratas vieram pelo sotavento, para colocarem os nosso barcos entre dois fogos. Terrível mortandade e destroços cau-saram então as unidades que passaram a despejar, simultaneamente, de dois bordos, toda a sua artilharia. No meio da intensa fumarada que se desenvolveu, tornou-se difícil distinguir navios amigos dos inimigos.

Kam-Pau-Sai, julgando-se grande estratega dividiu, então, em seis divisões, a sua esquadra, para cada uma delas atacar, em separado, os nossos seis navios, convencido de que, isolando-os, lhe seria possível liquidá-los, um a um. Não contava, porém, que cada um dos nossos viesse a ficar no centro de um círculo de barcos piratas, de forma que qualquer desvio de pontaria da artilharia destes ia causar pavorosos estragos ou semear a morte nos próprios barcos das suas divisões que lhe ficavam em frente, na periferia, ao passo que os nossos, por se encontrarem no centro dos círculos, não deixavam nunca de encontrar bom alvo para qualquer lado que disparassem.

Na ocasião em que o combate tinha atingido o máximo da intensidade, a pala Conceição encalhara, por ter sido, matreiramente, impelida para cima de escolhos. Exultaram os piratas que, persuadidos de que principiara o seu triunfo, tentaram, imediatamente, abordá-la, pela proa e pela popa, sendo, porém, repelidos com tremendas perdas, pelo incessante fogo do barco português. Luis Carlos de Miranda, vendo perigos por todos os lados, e estando o navio meio arrombado e os estilhaços a estorvar o manejo das peças, disse aos tripulantes que nada restava a fazer senão cumprir cada um o seu dever, rendendo cara a vida. Os marujos abandonaram, então, todos a mareação, para pegarem em armas e auxiliarem a servir a artilharia e tão grandes estragos causaram no inimigo, durante mais de uma hora sem quartel, que os piratas perderam o ânimo de os acometer. Nisto, o fluxo da maré enchente, e o ventinho fresco que soprava, enfunando-lhe as velas, fizeram desencalhar o navio que pôde melhorar de posição, aproximando-se do Belisário.

Entretanto, quis o destino que fosse o jovem macaense António José Gonsalves Carocha, que comandava o brigue Princesa Carlota, a vibrar o golpe desisivo. Já este tinha obrado espantosos prodígios de valor, quando, no meio da confusão do combate, lobrigou, através da densa fumarada, o tabernáculo flutuante ou navio-pagode. Prevendo logo o tremendo efeito que a sua perda haveria de causar nos supersticiosos piratas, não hesitou um instante. Virou-se logo sobre ele, e não descansou enquanto o não afundou com todos os seus bonzos, apesar do desesperado heroísmo com que os barcos que o comboiavam o defendiam. Esta fulminante proeza de Carocha, fez desmoralizar, completamente, os piratas que, tomados de pânico, ao verem voar estilhaçadas, pelos ares, as suas divindades, precipitaram-se numa fuga desordenada e na mais tremenda confusão, sem se importarem com os sinais e os exemplos do seu animoso chefe, internando-se nos canais e buscando, desesperadamente, as escassas águas da baía de Hèong Sán, onde não poderiam ser perseguidos pelos nossos barcos, ficando porém, bloqueados, na Boca Tigre.

Kam-Pau-Sai, desorientado por aquela tremenda e inacreditável derrota, teve de se conformar, no meio do maior desespero, com tão severo golpe do destino que, desamparando-o completamente, lhe desfez para sempre todas as ilusões, destruindo, de uma forma tão dura, as suas ambições.

Malograra-se a sua pretensão de ser imperador da China. Assim, resolveu capitular em 21 de Fevereiro, estipulando todavia, como condição irremovível, que o desembargador Miguel de Arriaga Brum da Silveira seria o fiador de tudo quanto se concertasse no acto de rendição e que só na sua presença é que negociaria com os represen-tantes do Governo chinês, tão grande era o prestígio que o ilustre faialense, um dos maiores vultos da História de Macau, desfrutava entre os chineses e a confiança ilimitada que depositavam na sua ombridade, isenção e espírito de justiça.

Logo que as autoridades de Macau foram informadas desta decisão de Kam-Pau-Sai, trataram imediatamente de pôr o vice-rei de Cantão ao corrente dela, que, por sua vez, apressou-se em fazer chegar ao conhecimento do imperador a boa nova, para conseguir a sua aquiescência para o encetamento das negociações, mantendo-se, entretanto, o engarrafamento da esquadra dos piratas.

Ora, na ocasião em que fora assinada a convenção, celebrada entre a governança desta cidade e os plenipotenciários chineses para a organização de uma expedição contra os piratas, acabava de chegar a Macau João Baptista de Guimarães Peixoto, o substituto do ouvidor Arriaga, que já tinha terminado o seu mandato de seis anos. O Senado, receando que, afastado o autor dos planos da expedição, esta viesse a gorar-se, diligenciou por evitar tal desastre e, para isso, escreveu ao novo desembargador, pedindo-lhe que adiasse a sua posse, a fim de não causar quaisquer prejudiciais transtornos à importante empresa que se ia empreender.

Peixoto, que se encontrava hospedado em casa de Arriaga, ao receber tal pedido enfureceu-se e, apesar de doente, quis tomar conta do lugar quanto antes, sendo necessária toda a paciência e prudência de Arriaga para o acalmar, acabando por lhe ser conferida a posse no dia por ele mesmo indicado.

Não obstante ter Peixoto dito, dias antes, que a organização da expedição continuaria a ser dirigida por Arriaga, logo que se viu investido da autoridade do seu cargo, juntou-se ao governador José Lucas de Alvarenga, para criarem os maiores embaraços ao andamento dos negócios da expedição, e quando, derrotado Kam-Pau-Sai, se tratava da entrega dos piratas, diligenciou por afastar Arriaga das negociações, para cometer a incumbência delas ao Bispo de Pequim, que recusou-se a aceitar, já por não ser conhecido do vice-rei de Cantão, já por desconhecer a questão em todos os seus pormenores.

Quando os mandarins souberam que Peixoto pretendia substituir Arriaga nas negociações informaram a governança de Macau que não tratariam de coisa alguma com ele, porque só o antigo ouvidor é que tinha pleno conhecimento de todo o assunto, além de que o chefe dos piratas tinha declarado, terminantemente, que não se entregaria a outro senão a ele. Esse era, também, o desejo de todos os portugueses de Macau, que não confiavam no novo desembargador, pois, além de vir precedido de má fama da Índia, já tinha procedido em Macau o suficiente para merecer menos consideração e confiança.

Entretanto, enquanto Kam-Pau-Sai continuava bloqueado, o governador José Lucas de AIvarenga, em vez de aproveitar o precioso momento que se lhe apresentava para conseguir o máximo das vantagens das autoridades chinesas, entretinha-se, como dizia o Senado, no seu ofício de 30 de Dezembro de 1810, ao vice-rei D. Bernardo José Maria de Lorena e Silveira, conde de Sarzedas, «em passar Ordens ao Comandante em Chefe que se não tivesse a louvável prudência de obstar-lhe com reflexões, nascidas das circunstâncias em que se achava, tersehia mal logrado tanto trabalho e incomodo, como despeza»

Estando ainda Alcoforado a bloquear os barcos dos piratas, Kam-Pau-Sai, pediu-lhe a mercê de o honrar com uma visita, pois gostaria de ter o prazer de conhecer tão ilustre cabo de guerra. Dispôs-se Alcoforado a satisfazer o desejo do chefe dos piratas, pois grande era a tentação de conhecer, pessoalmente, o seu adversário e, assim, mandou aprontar um escaler, porém, como os oficiais do seu navio lhe fizessem lembrar ser grande temeridade o avistar-se sozinho com um chefe de piratas e que aquele encontro poderia ocultar uma cilada, arriscando ele deste modo, inutilmente, a vida, Alcoforado convocou os comandantes doutros barcos a quem pôs ao facto do que se estava passando.

Todos foram de unânime parecer, que ele não devia anuir ao convite de Kam-Pau-Sai, mas Alcoforado, que não sabia o que era medo, disse-lhes que apreciava imenso o interesse que tinham pela sua existência, mas que não podia deixar de anuir ao desejo de Kam-Pau-Sai, porquanto estava em jogo a reputação dos portugueses, visto que a sua recusa seria certamente interpretada pelos piratas como tibieza de ânimo por parte dele e como primeiro sinal de fraqueza da esquadra macaense.

Recomendando-lhes que o vingassem, no caso de ser traído na sua boa fé, Alcoforado, despedindo-se de todos, meteu-se no escaler que mandara aprontar e dirigiu-se, afoitamente, para a esquadra inimiga.

Absolutamente calmo e sem que o seu rosto ou os seus gestos traíssem a mais pequena emoção, passou, sem qualquer novidade, pelo primeiro barco pirata da vanguarda e, assim, prosseguiu, até chegar ao junco de Kam-Pau-Sai, por entre o estridor infernal do percutir de bátegas e de salvas. O próprio Kam-Pau-Sai veio recebê-lo ao portaló e, prodigalizando-se em deferências, conduziu-o, com requintes da amabilidade chinesa, pela mão, ao seu camarote, onde reciprocaram as mais cativantes gentilezas e, ou porque quisesse confundir Alcoforado e impressioná-lo com extremos de cortesia ou porque sinceramente admirasse o seu valoroso adversário, ofereceu-se, com o fim de demonstrar quão penhorado ficara com a honra que o comandante-chefe da esquadra macaense lhe dera com aquela visita, para pôr em liberdade todos os prisioneiros europeus que tinha cativos nos barcos da sua esquadra - marinheiros americanos e ingleses que serviam de artilheiros e que a isso se prestaram, já com receio de matratos, já seduzidos por promessas de valiosas dádivas.

Kam-Pau-Sai assegurou a Alcoforado que, tendo experimentado o valor e o denodo dos portugueses, grande era o empenho de não os ter por inimigos. Não deixou, entretanto, de fazer ver ao comandante da esquadra macaense que lhe era fácil romper o bloqueio, arriscando uma nova batalha, a fim de sair com as suas embarcações mais veleiras, para onde não pudesse ser incomodado pelos nossos barcos. Porém, aquela honrosa visita cativara-o de tal forma e em tão alto conceito tinha a promessa do ouvidor Arriaga, que estava firmemente resolvido a entregar-se com toda a esquadra.

Alcoforado reiterou a promessa do ouvidor, lamentando, todavia, não depender dele a aceitação da capitulação, para em tudo o poder contentar, e acrescentou que tinha ordens para lhe destruir a esquadra, no caso dele tentar romper o bloqueio.

Continuaram os dois em cordial permuta de amabilidades, esforçando-se um em não ceder ao outro a primazia de delicadezas, não conseguindo Alcoforado impedir que Kam-Pau-Sai o acompanhasse até ao escaler em que regressou à sua frota. Quando o comandante da esquadra macaense voltou ao seu navio, após esta visita, todos os navios romperam em salvas, trepando os marinheiros às vergas para o saudarem alegremente.

Entretanto, o ouvidor Arriaga seguiu na lorcha Leão Temível para Hèong Sán e, na conferência ali realizada com o suntó, vice-rei de Cantão, e demais comissários imperiais e mandarins desse distrito, foi acordado que a capitulação de Kam-Pau-Sai se efectuaria em Macau, devendo a esquadra dos piratas ostentar desfraldada nos mastros as suas flâmulas encarnadas, que seriam arriadas, ao passarem pela fortaleza da Barra. Estava, infelizmente, à testa da governação o capitão-geral, formado em leis pela Universidade de Coimbra, Lucas José de Alvarenga, tíbio mas estultamente vaidoso, que se jactava de ter sido o primeiro e único brasileiro que governou a cidade de Macau, pois era oriundo de Minas Gerais, e que na sua bafienta e indigesta Memória sobre a expedição do Governo de Macau em 1809, e 1810 em socorro ao lmperio da China contra os insurgentes piratas chinezes, principiada, e concluida em seis mezes, Rio de Janeiro, 1828, pretendeu com grande impudência, arrogar, exclusivamente, para si, a glória da grande vitória alcançada sobre os piratas de Kam-Pau-Sai.

Alvarenga, obcecado possivelmente pela inveja, a ponto de esquecer os altos interesses de Portugal e de Macau e dominado, ao mesmo tempo, por estranha pusilanimidade e inépcia, frustrou à população macaense o soberbo espectáculo do grandioso triunfo da nossa esquadra.

José Ignácio Andrade, que esteve duas vezes em Macau, na sua Memória dos feitos macaenses contra os piratas da China, 2.ª edição, Lisboa, 1835, escrita e publicada em vida de Lucas José de Alvarenga, não hesitou em considerá-lo «homem pouco expediente dos costummes chinezes, e cobarde», pois eram absolutamente infundadas as suas apreensões e o seu receio de que Kam-Pau-Sai, ao passar com a sua esquadra pelo porto interior, atacasse a cidade.

O ouvidor Arriaga viu-se, então, compelido a continuar as negociações em local que então ficava fora das muralhas da cidade, isto é, no Pagode de Móng Há, que viria a celebrizar-se por ali ter sido assinado o primeiro tratado sino-americano, em 1844, e aprazou com os mandarins Chu e Pom, que para ali foram por ele convocados, o dia em que os representantes do imperador se deveriam reunir na cidade de Hèong Sán, para uma conferência, e onde foi recebido com todas as honras e singular distinção.

No decurso da conferência chegou à notícia dos mandarins a inacreditável ousadia de Alcoforado se avistar com Kam-Pau-Sai, o que fez pasmar as autoridades chinesas, influindo isso, poderosamente, no seu ânimo e levando-os a manifestar, por todas as formas, o seu profundo respeito e consideração pelo ouvidor Arriaga e a estarem quase sempre de acordo com o representante da cidade de Macau.

Ficou, então, resolvido que a capitulação se efectuaria em Fu lông Sá, perto da cidade de Hèong Sán, devendo Kam-Pau-Sai comparecer ali com toda a sua esquadra. Foi também resolvido pedir-se, ao governador de Macau, para enviar instruções a Alcoforado para a suspensão do bloqueio, mas Alvarenga, em consequência das suas costumadas hesitações, demorou a ordem.

No dia seguinte, Kam-Pau-Sai, que tinha recebido comunicação dos mandarins para sair com a sua esquadra para a entregar, quando levantou âncora e principiou a velejar em direcção ao local indicado, viu que a esquadra portuguesa estava manobrando de modo hostil, pois Alcoforado, como não tinha ainda recebido nenhuma instrução do governador Alvarenga para cessar o bloqueio, julgou que os piratas pretendiam safar-se. Evitou-se, porém, o desastre, que poderia ter sido de fatais consequências, visto Kam-Pau-Sai dispor ainda de uma grande armada, pois este, percebendo que houve equívoco, ordenou aos seus numerosos navios que amainassem e fundeassem novamente.

Tendo a ocorrência chegado ao conhecimento dos delegados à conferência, o ouvidor Arriaga foi enviado a toda a pressa a Macau, para animar o governador Alvarenga e a desfazer as suas injustificadas apreensões, tomando simultaneamente os delegados chineses a iniciativa de se avistarem com Alcoforado, para lhe assegurarem o que fora ajustado com o ouvidor Arriaga.

Alcoforado, ao ver entrar no seu navio dois respeitáveis chineses, trajando longas cabaias de cor amarela, compreendeu, imediatamente, que se tratava de duas personalidades de alta jerarquia, porquanto trajes dessa cor só podiam ser envergados pelos membros da família imperial. Foram, por este motivo, recebidos com a máxima cortesia, rogando os dois representantes chineses a Alcoforado que não comprometesse a palavra do ouvidor Arriaga e a deles, para com o chefe dos piratas, a quem tinham dado ordens para seguir com a sua esquadra para Fu Iông Sá.

Respondeu Alcoforado que muita honra lhe davam com a sua visita e que tinha o máximo empenho em ser-lhes útil, porém, não podia desobedecer as leis militares do seu país e, como tinha ordem do Governo para bater a esquadra inimiga se tentasse sair, teria de cumpri-la, no caso de não receber ordem em contrário.

Insistiram os mandarins no seu pedido, fazendo ver que grande parte da província de Chincheu (Fuquien) estava do lado de Kam-Pau-Sai e que, sendo ela povoada principalmente por gente de mar, robusta e destemida, facilmente poderia equipar nova armada para forçar o levantamento do bloqueio, eternizando-se a guerra.

Entretanto, a diligência do ouvidor Arriaga junto do governador Alvarenga fora bem sucedida, pois, com ponderados argumentos, conseguiu chamá-lo à razão e persuadi-lo a mandar ordem a Alcoforado para deixar sair Kam-Pau-Sai com a sua esquadra, ordem essa que chegou ao conhecimento do comandante-chefe da frota portuguesa quando os plenipotenciários se encontravam ainda no seu barco.

Assim que os mandarins foram postos ao conhecimento de ter chegado a ordem do Governo de Macau, para Alcoforado suspender o bloqueio, ficaram muito satisfeitos. Despediram-se, então, do Alcoforado, para regressarem ao local da conferência, onde encontraram já Arriaga, que, mal acabara de convencer o Governador Alvarenga da necessidade premente da suspensão do bloqueio, se tinha dirigido para ali, a fim de comunicar a boa nova aos mandarins.

Tendo Alcoforado suspenso o bloqueio, em virtude das novas instruções que recebera do Governo de Macau, Kam-Pau-Sai, não vendo motivos para alterar a decisão que tinha tomado de se entregar com a sua esquadra, aceitou, sem qualquer vislumbre de ressentimento, todas as explicações que lhe foram dadas e, desfeito completamente o equívoco, no dia imediato, 12 de Abril de 1810, compareceu no local aprazado, para iniciar as discussões sobre a sua capitulação.

Mas, que é que teria levado este chefe de rebeldes e de piratas, tão temido e que, até então, se tinha mostrado obstinadamente combativo e aguerrido, a entregar-se com a sua esquadra que, embora batida, ainda se encontrava em boas condições de furar o bloqueio, tanto mais que podia contar com a ajuda de uma forte divisão que tinha enviado para Fuquien, a fim de cobrar tributos, e que, no seu regresso, poderia colocar a diminuta frota de Alcoforado entre dois fogos? Teria, finalmente, acordado a sua consciência, obrigando-o, por sentimento de humanidade a não sacrificar, inutilmente, mais homens? Não parece muito plausível esta hipótese, num indivíduo que até essa ocasião se tinha portado sem escrúpulos, atacando e roubando, impiedosamente, as populações de tantas aldeias e apresado e saqueado, tanto as embarcações nativas como estrangeiras.

Teria, então, nele influído o sentimento supersticioso, motivado pelo afundamento do barco-pagode, julgando-se assim desamparado das suas divindades, ou ter-se-ia deixado convencer que mais valeria aceitar um alto cargo no mandarinato do seu país, passando a colaborar com os dominadores, do que continuar a vida aventurosa de rebelde e pirata?

É muito possível que esta deveria ter sido a verdadeira razão da sua capitulação, uma vez que só teria a lucrar com a promessa solenemente feita pelas autoridades chinesas de o nomearem almirante da esquadra imperial, promessa esta que estava salvaguardada com a palavra empenhada por Arriaga, em quem ele tinha plena confiança.

Ora, apesar de ser chefe de piratas, não quiseram os mandarins deixar de o tratar com a devida consideração. Assim, quando Kam-Pau-Sai fundeou com a sua esquadra em Fu Iong Sá, enviaram as autoridades chinesas emissários para o saudarem e convidarem a participar na conferência destinada à discussão dos termos da capitulação. Ao entrar na sala, onde se encontravam reunidos os plenipotenciários do imperador da China e o representante de Macau, Kam-Pau-Sai dirigiu-se, imediatamente, ao ouvidor Arriaga, que facilmente conheceu pelo seu aspecto físico e trajar, tão diferentes dos seus compatrícios, e disse-lhe que eram ponderosos os motivos que o levaram a render-se e a tratar com ele da sua capitulação, trocando a sua vida de chefe de rebeldes para a de mandarim, tal como lhe fora prometido por ele Arriaga, em nome do imperador, sendo grande a sua satisfação em ter aquela oportunidade de o conhecer pessoalmente.

Kam-Pau-Sai, voltando-se, depois, para os mandarins, disse-lhes que já sabiam por experiência de catorze anos quão temível era o seu poder, que fora destruído apenas pelo valor e esforço dos portugueses e que esperava que o tratassem como homem livre e destemido. Dito isto, sentou-se, para ouvir as condições que lhe iam ser impostas.

Durante a discussão, foi lhe dito haver necessidade de punir, com toda a severidade, para exemplo, alguns dos seus homens, que se notabilizaram pelos seus excessos e perversidades. Kam-Pau-Sai não pôs nenhuma objecção a esta condição e indicou os nomes de catorze facínoras que entendia deverem pagar com as suas cabeças, pelas atrocidades que perpetraram sem a sua aprovação.

Removido este óbice, não houve mais impedimentos para a rápida conclusão das negociações. Kam-Pau-Sai declarou, no entanto, que dispunha ainda de 80 juncos de guerra que enviara, antes de atacar a frota macaense, a Fuquien, para cobrar os tributos do ano transacto, aos quais não deixaria de avisar para virem entregar-se. O vice-rei Pak, de Cantão, leu-lhe, nessa ocasião, um decreto do imperador que dizia que todos os seus crimes e dos seus homens seriam perdoados e que, daí em diante, todos eles seriam tratados como súbditos leais do império.

Ao tratar-se da divisão da presa, não se percebe o que levou o ouvidor Arriaga a proceder com uma pródiga liberalidade, pois, segundo uns não quis senão as 1.200 bombardas dos piratas, que foram enviadas de presente a D. João VI para servirem na luta contra Bonaparte e, segundo outros, reservaram para Macau apenas 50 bombardas para tal fim, quando é certo que a cláusula quinta da convenção estipulava que a presa seria dividida a meias.

Andrew Ljungstedt, que se encontrava nessa ocasião em Macau, disse no seu Esboço histórico dos estabelecimentos portugueses na China que «as 50 peças de bronze e de ferro que o sr. Arriaga mandou como presente ao príncipe Regente de Portugal, não eram despojos de guerra, ainda que Andrade nos diga que o eram; eram as peças, segundo a opinião geral, que haviam sido compradas para armar os navios afretados que foram aprestados para ir bater os piratas. Nem as peças foram mandadas pelo navio «Ulysses» como diz Andrade, mas pelo navio «Maria I». Disseram-nos que tais peças nem valiam o frete que por elas se pagou no Rio de Janeiro.

«Considerando que Macau se vira forçado desde 1801 a manter navios armados contra os piratas, e que as despesas de anno a anno tornavam-se mais pesadas, e foram ainda maiores em 1810, vê-se que a metade das prezas, a saber 180 embarcações 1600 peças e 3500 espingardas, representava uma mui inadequada retribuição pelas despezas que a cidade fez desde 1804 a 1810, porque ellas subiam a mais de 370 000 patacas, contudo o dividendo a que Macau tinha direito podia fornecer-lhe meios para pagar algumas dívidas que as circunstâncias a levaram a contrahir».

Ora Kam-Pau-Sai rendeu-se com nada mais nada menos que 280 juncos, muitos dos quais deviam estar carregados das riquezas roubadas, 16.000 homens, 5.000 mulheres, 7.000 espadas e lanças e 1.200 peças de calibre 12, 18, 24 e algumas de 36.

Tudo isso foi dado de mão beijada aos chineses, o que não teria acontecido, se a entrega de Kam-Pau-Sai tivesse sido efectuada em Macau, em vez de em Fu Iông Sá. Assim, os chineses que não cumpriram a primeira cláusula da convenção que obrigava a esquadra imperial a cooperar com os seis barcos portugueses no extermínio dos piratas locais, em nenhum dos combates contra os barcos de Kam-Pau-Sai se apresentou qualquer embarcação da armada imperial a prestar qualquer colaboração, foram os únicos que se locupletaram com os ricos despojos.

Para se fazer melhor ideia das dificuldades havidas nas negociações, transcrevemos a seguinte passagem do ofício do Senado, datado de 30 de Dezembro de 1810, ao Vice-Rei da Índia. Referindo-se aos empeços antepostos pelo desembargador Peixoto e governador Alvarenga, dizia o Senado: «Vendo o incançavel Ministro Arriaga que tanta ampliação era sumamente prejudicial ao interesse Publico, levado de seu zelo pelo Real Serviço e Gloria da Nação, pede se lhe dê huma embarcação e com effeito não lha podendo negar sem escandalo publico derão lhe o Brigue Princeza Carlota e sem ser comissionado para Governança da Cidade parte sem demora, encontra com o Suntó e passa imediatamente à Embarcação do Cabeça Apo-Chai.

«Ali encontra novos obstaculos da parte dos Mandarins Subalternos e de repente cahi perigozamente doente que o obrigou a retirar-se a sua Caza. O cabeça Apo-Chai não podendo concluir os seus ajustes com o Suntó sai exesperado da Boca dos Tigres com a Esquadra e vem para a vila de Hy-an-san; ali se tornão a renovar as negociações e o nosso Ministro Arriaga sabendo da nova combinação ainda mal convalescido parte segunda vez a reunir os dois contrahentes e tem a gloria de finalizar os seus ajustes a contento de ambos, sem que em ocasião tão oportuna podesse fazer alguma representação por parte da Cidade, mas assim mesmo não deixou de fallar no ingresso do Exmo, Bispo de Pekim e na renovação dos privilegios perdidos, como o mesmo Ministro informará a V. Exa. em separado».

Entretanto, concluída a entrega, em 15 de Abril de 1810, e assinada a capitulação, dias depois, isto é, em 20 do mesmo mês, Kam-Pau-Sai manifestou ao ouvidor Arriaga o desejo de vir a Macau conhecer todos os seus vencedores.

No seu regresso a Macau, o autor do triunfo macaense foi recebido com efusivas demonstrações de regozijo, por parte de toda a população; que exultava de alegria, sendo entoado um solene Te Deum em acção de graças, pela retumbante vitória alcançada pela esquadra portuguesa, rompendo as peças das fortalezas em estrondosas salvas e repicando os sinos de todas as igrejas, com vistosa iluminação durante a noite.

Para escarmento de todos os malvados foram decapitadas e espetadas as cabeças de 14 facínoras nas extremidades de varapaus colocados no istmo que liga Macau à ilha de Heòng Sán, até serem consumidas pelo tempo. Da amnistia geral, publicada em Hèong Sán, foram ainda excluídos 126 piratas, que foram executados, 151 desterrados para sempre e 60 por dois anos.

Em Maio, chegou, porém, a notícia de que os 80 juncos de guerra enviados a Chincheu antes da batalha de Lantau se recusavam a entregar-se, pois o cabecilha dos dissidentes não estava disposto a desempenhar a palavra dada por Kam-Pau-Sai no acto da capitulação. Este, entendendo não dever mandar pela segunda vez ordem pusessem à disposição 60 juncos seus, tripulados por gente da sua confiança, para ir subjugar os insurgentes, oferecendo a sua cabeça e dando em reféns os seus dois filhos, pois não podia admitir o direito de desconfiarem da sua palavra.

Apesar de Kam-Pau-Sai ter até ali procedido, em tudo, com extrema lisura, firmeza e honradez, não quis o vice-rei de Cantão confiar-lhe a esquadra pedida e, assim, mandou aprontar duzentas embarcações, equipadas em grande parte com armamento da esquadra de Kam-Pau-Sai, para ir ao encontro dos insurgentes. Pouco tempo depois, refugiava-se em Macau essa aparatosa esquadra que, como de costume, fora derrotada pelos piratas.

Levada a notícia da derrota a Cantão, o vice-rei, por muito que custasse ao seu amachucado orgulho, mandou consultar o ouvidor Arriaga, se deveria aceitar o oferecimento de Kam-Pau-Sai. Arriaga não hesitou em lhe responder que, se estivesse em seu lugar, não teria dúvida em utilizar-se dos serviços do chefe dos rebeldes e sem necessidade de reter como reféns os seus dois filhos.

Com esta resposta do ouvidor Arriaga, o vice-rei não dilatou por mais tempo a sua decisão e, assim, ordenou que entregassem a Kam-Pau-Sai quanto este tinha pedido. O novo almirante de Cantão, deixando todos especular sobre como iria proceder, veio a Macau, onde estava tudo pronto para o receber. Em dia aprazado compareceram os comandantes dos nossos navios e os mais categorizados moradores na residência do ouvidor Arriaga, e mal acabaram de o cumprimentar quando foi anunciada a entrada de Kam-Pau-Sai.

Terminada a troca de saudações, segundo o complicado cerimonial chinês, Kam-Pau-Sai, depois de manifestar a sua satisfação por ter aquela oportunidade de conhecer tão esforçados e denodados capitães, seus vencedores, quis saber se estava presente o valoroso comandante da lorcha Leão Temível. Tendo-lhe sido indicado quem era o bravo piloto macaense António José Gonçalves Carocha, Kam-Pau-Sai aproximou-se dele e, estendendo-lhe os braços, disse ao ouvidor Arriaga que fora esse o homem que causara mais dano ao seu poder do que toda a frota macaense junta, e acrescentou:

- Fui vencido: mas quem, disputando a glória aos portugueses dirigidos por vós, ficará vitorioso.

Durante todo o tempo da sua estadia em Macau, Kam-Pau-Sai ficou confundido pelas cerimoniosas amabilidades com que fora obsequiado pelo ouvidor Arriaga, de quem se despediu, comovida e agradecidamente, para ir perseguir a esquadra dissidente. Fez, então, saber aos revoltosos que era, agora, almirante da esquadra imperial e enviou-lhes a seguinte proclamação:

«Camaradas e amigos, sei que duvidastes da minha ordem: fizestes bem. Lembrastes vos sem duvida, que era falsa; ou eu ter sido obrigado pela força a escrevela. Não: assignei-a por minha vontade. Se ainda o duvidais, vinde ouvilo da minha bocca. Dir-vos hei tambem os motivos, que me fizeram render. Neste mundo ha dois caminhos a seguir, o do bem, ou o do mal. Todos desejamos seguir o do bem, mas somos muitas vezes lançados pelo erro em precipicios. Em outro tempo vos aconselhava eu a seguirdes o meu partido; mas então ainda eu não havia encetado o caminho do bem. Hoje conheço que marchava pela estrada do erro, afastado da vontade do maior numero.

O imperio tem povoação summamente grande; e o nosso partido a seu respeito é summamente pequeno. Não podeis negar-me, que é preciso haver desmedida ambição nos poucos, que pretendem apossar-se do que é de muitos. Não é conforme às leis do imperio, nem às do entendimento supremo. Todos devemos concorrer para a felicidade dos outros homens; e no caminho em que andavamos desvairados, faziamos a sua desgraça. Exposta assim a verdade a vossos olhos, espero não duvideis abraçala; e quando useis tenacidade, em vosso erro, experimentareis pela primeira vez o meu rigor».

Os dissidentes recusaram-se, porém, a atender às boas razões de Kam-Pau-Sai, respondendo-lhe com altenaria e insultuoso desprezo, pelo que Kam-Pau-Sai viu-se obrigado a subjugá-los à força. Vencidos os barcos apresados e os cativos até Macao para mostrar ao ouvidor Arriaga e a todos os moradores desta cidade que cumprira a sua palavra. Os barcos apresados vinham em estado tão deplorável, em resultado dos estragos sofridos durante o combate, que muitos dias se passaram em reparações, antes de poderem seguir para Cantão.

No seu regresso à capital da província de Kuóngtông, Kam-Pau-Sai foi recebido na Boca do Tigre, por inúmeros barcos que o acompanharam em triunfo até entrar em Cantão, onde foi cumulado de todas as honrarias, pois grande era o regozijo na cidade, ao ver-se livre, de uma vez para sempre, de um inimigo tão temível como eram os piratas. O vice-rei recomendou, com todo o entusiasmo, o novo almirante, ao imperador. Este ordenou-lhe, então, que se apresentasse em Pequim, para poder ter o prazer de o conhecer. Foi ali distinguido com as maiores honrarias pelo imperador, passando Kam-Pau-Sai, antigo chefe de piratas e de rebeldes a ser conselheiro do Estado, não só em recompensa por ter cumprido o que prometera como para se lhe aproveitarem os conhecimentos e as relevantes qualidades que possuía.

Ora, em todas as operações navais contra Kam-Pau-Sai, as forças portuguesas não sofreram a perda senão de um escravo e uns poucos de feridos, mas nada compensou o tremendo esforço desenvolvido, porque os chineses não só ficaram por satisfazer o remanescente da contribuição estipulada, pois, dos 80.000 taéis ajustados, só pagaram 55.000 como, em breve, esqueceram-se da promessa da restauração dos antigos privilégios. O grande empreendimento naval enviado pelos macaenses foi efectuado à custa de empréstimos feitos pelos mais abastados negociantes de Macau, num total de 480.053 taéis, de que nunca foram reembolsados.

Não só Macau se beneficiou com o extermínio da pirataria, mas principalmente os chineses e os estrangeiros, apressando-se as sobrecargas da Companhia Inglesa das Índias Orientais a dar a boa nova, à sua sede em Londres, de se encontrarem livres os mares da China para o desenvolvimento do comércio internacional.

Para comemorar a grande vitória alcançada à custa de tanto sacrifício e heroísmo, propôs o governador Alvarenga a inscrição desse acontecimento em caracteres chineses e portugueses, em duas lápides destinadas a serem afixadas no edifício do Senado, proposta que foi rapidamente esquecida, estando a cidade ainda em dívida para com os heróis dessa notável epopeia naval, principalmente para com o valoroso piloto macaense António José Gonçalves Carocha, porquanto só o nome do ouvidor Arriaga foi dado, em época muito posterior, a uma rua da cidade.

O esforçado capitão de artilharia, José Pinto Alcoforado de Azevedo e Sousa, que comandou com tanto brilho a esquadra macaense foi, pouco depois, recompensado com o cargo de Governador e Capitão Geral das Ilhas de Solor e Timor. Quanto a António José Gonçalves Carocha foi simplesmente deferido, em 25 de Abril de 1811, o seu requerimento em que «implora de V. Sra. de conseder lhe a Lorcha Leão visto que se acha dezocupada, com algumas Bombardas para a sua defeza ficando o Supte. Responsavel das dittas Bombardas todas as vezes que forem pedidas e juntamente a Lorcha para algum serviço que V. S.ª seja servido».

O triunfo do ouvidor Arriaga foi celebrado festivamente, em Macau, no dia 3 de Junho de 1810, ocasião esta em que se cantou o seguinte hino às suas virtudes, da autoria do conspícuo cidadão macaense José Baptista de Miranda e Lima.

À sombra de frondifera oliveira,

Por ti, ha tanto tempo, desejada,

(Graças ao creador Omnipotente.)

Te vejo, cara patria (1) reclinada.

No pelago espaçoso, que te cerca,

Ja não vês tremular hostis pendões (2) .

Não ouves rebombar os horisontes (3) .

Com horrorosos tiros de canhões (4) .

De salitroso pó (5) que antes servia

Para ao longe mandar lethaes pelouros

Se ferreos tubos hoje tu carregas (6) ,

É só por festejar c'os seus estouros.

Centenares de Taós (7) prenhes de tygres,

Que ao pé de ti rasgavam cruelmente (8)

Meninas e donzelas delicadas

A teu pai sujeitou (9) o Eterno Ente.

Teu benefico Pai, o Arriaga (10)

Estes tygres de Hyrcania domou

E a frondente oliveira, que te cobre,

Cortando mil obstaculos, plantou.

Jámais pois riscarão da fantasia (11)

O nome deste Heroe da lusa gente:

E agora, que celebras seu triumfo,

De verde palma vai cingir lhe a frente.

Da victoria este emblema para ornares,

Lindas flores procura designantes

D'aquelles predicados appreciaveis,

Neste filho de Lisia mui brilhantes.

O louro girasol, que sempre segue

O planeta, que os outros illumina (12)

Designa a bem notoria lealdade

Do nosso Heroe á prole Bragantina.

Os rubros amaranthos, que resistem

Ao vento, á calma, ao gelo, symbolisam

A intrepida constancia nas empresas (13) ,

Que o nome de Arriaga immortalizam.

A candida açucena, que dispende

Liberalmente o corceo, de que gosa

É symbolo do seu singello peito (14) ,

Emblema da sua alma generosa.

O Lirio, que nascendo d'alta vara,

Sendo rei da florida monarquia

Para baixo a sublime frente inclina,

Sua clemencia designa, e cortezia (15)

Das mais virtudes symbolos procura

N'outros lindos matizes dos jardins;

Não te esqueça das rosas rubicundas,

Dos junquilhos, dos cravos, dos Jasmins.

De ti receba agora esta corôa

Bem que inferior ao seu merecimento;

Em quanto outra melhor se lhe prepara

No reino superior ao firmamento.

Nota de António Francisco de Miranda e Sousa, Deão da Sé de Macáo

1.ª A patria ê a cidade de Macáo.

2.ª As bandeiras vermelhas e pretas das duas colunas inimigas.

4.ª Mil e oitocentas bombardas de diversos calibres entregou Cam-pau-sai, e mais de mil Apautai, chefes dos piratas.

5.ª Polvora, cuja fabrica Miguel de Arriaga estabeleceu em Macáo em 1809, pelo Boticario J. J. dos Santos.

6.ª Quando apareceu o retrato de El-Rei, na sala onde se celebrava o triunfo, e onde se achava a nobreza, o clero, e nos seus contornos, a melhor parte do povo da cidade.

7.ª Embarcações de guerra, Cam-pau-sai entregou 3.800 homens, Apautai 2.000.

8.ª Só no canal de Hiangsan mataram mais de 15.000 pessoas.

9.ª Entrega de Cam-pau-sai á benevolencia de Miguel de Arriaga, seu medianeiro para com o imperador da China.

10ª Miguel de Arriaga Brum da Silveira, ouvidor de Macáo.

11.ª O nome de Miguel de Arriaga será lembrado não só na ilha de Macáo mas também no imperio da China, pois o Suntó o mandou gravar em seus annaes para haver delle eterna memoria.

12.ª Grande e indefectível zelo com que Arriaga trabalhou para dirigir o Senado e o Governador, contra os inglezes, a fim destes não arrebataram esta cidade à nação portugueza.

13.ª Contra a inveja, a intriga, e odio de alguns que mofaram da empreza. A constancia de Arriaga foi quem nos deu a victoria.

14.ª A candura, e inteiresa com que tratou a Cam-pau-sai, e ao Suntó. Só nosso Arriaga foi capaz de conciliar amizade entre aquelles desavindos.

15.ª Despresando dificuldades tratou sempre em Macáo os máos, com a mesma clemencia que usava para com os bons, o tudo isso nascia da sua nobreza de coração e das altas e perfeitas virtudes.

Pelos relevantes serviços prestados, o ouvidor Arriaga foi conservado na ouvidoria de Macau, por tempo ilimitado, nascendo desse facto os seus infortúnios e a sua morte prematura.

*Escritor, historiador, investigador e etnógrafo de temas macaenses; sinólogo. O texto seguinte foi publicado por L.G.G. no jornal "Notícias de Macau" e mais tarde antologiado em "Páginas da História de Macau".

desde a p. 153
até a p.