Linguística

«CLEPSIDRA» VÁRIAS PARTITURAS E UMA ORQUESTRA

António Manuel Couto Viana*

llustração Carlos Marreiros © copyright 1988

Para Filipe de Sousa

De la musique avant toute chose», aconselhava Paul Verlaine à sua própria poesia, ditando, deste modo, um programa à Escola Simbolista nascente, e de que seria mestre: a música acima de tudo e sempre - na feitura do verso.

A lição desta voz, vinda da França finissecular, escutou-a entre nós Camilo Pessanha, com a aguda sensibilidade do seu ouvido, recolhendo-a logo no recôndito do seu espírito vibrátil, para a aplicar, depois, nos seus poemas de perfeita delicadeza e beleza inquietante, revelando-se então, no dizer da ensaísta italiana Barbara Spaggiari, «o único verdadeiro simbolista da Literatura portuguesa e, em absoluto, um dos maiores intérpretes do Simbolismo europeu» (1).

O magistério de Verlaine (e somente este poeta mereceu ser citado em epígrafe na Clepsidra) levou Pessanha a compor, com sábio rigor técnico e alta inspiração, algumas breves partituras, que são toda a sua obra, ricas e variadas de melodias, ritmos, harmonias.

- «Pinto quadros por letras, por sinais», afirmava Cesário Verde, consciente do valor pictórico dos seus versos parnasianos. Parafraseando-o, Pessanha poderia replicar-lhe igualmente com verdade: - «Componho música por letras, por sinais». Compunha-a, de facto.

E para que instrumentos a compunha ele, o poeta-compositor, ora vibrantes na escala cromática, ora de subtis surdinas? Claramente os nomeou nas páginas da sua Clepsidra: o clarim e as cornetas, do soneto Fonógrafo; a flauta, da poesia Ao longe os barcos de flores; o sino, da poesia Castelo de Óbidos; o tambor, da poesia Rufando apressado; o violencelo, da poesia que tem este nome; a viola, da poesia Viola Chinesa.

Eis três famílias de instrumentos distintamente representados: de sopro, da percussão, de cordas. Portanto, a imagem bem definida de uma orquestra. Orquestra de que o poeta seria o maestro hábil e sensível, regendo-a com energia e fulgor, ao arrancar dos metais e da percussão estremecimentos épicos, evocando «gritos e bandeiras» (2), «cota e elmo e a longa espada» (2), «nas prolixas e vãs contendas» (2), quando se ouve «tocar a rebate» (2) e, decerto, também rufa, «garboso, o tambor» (3), à mistura com «choques de armaduras/E tinidos de espadas» (4); o «clarim d'oiro» (5) anunciando a alvorada heróica «na fria aragem matutina» (2); por fim, «amorosa, a alma das cornetas» (5), «orvalhada e velada» (5) ante o sorriso da «Doce Infanta Real» (2), por quem os combates se travam e se vencem.

Epicismos tão nítidos na saudade com que é invocado o «arcanjo tutelar» (6) San Gabriel (que baptizou um dos navios do Gama), conduzindo «as naus, as caravelas,/Outra vez, pela noite, na ardentia,/ Avivada das quilhas» (6), entre lactescências de «almas tristes, severas, resignadas,/De guerreiros, de santos, de poetas» (6). Envolvendo, ainda, os rompantes bélicos do «leão armado, uma espada nos dentes» (7), com o pianíssimo elegíaco (e a batuta do maestro ameiga os movimentos) que descreve «os mortos da batalha» (7), «nos olhos abertos/ Reflectindo as estrelas, boquiabertos» (7).

Súbito, «só, incessante» (8), a flauta inicia o seu solo pungente, doído, no ritornelo de um rondel-rondó. «A orquestra» (8), que a noite «cauta, detém» (8), cede lugar, em êxtase, à «flauta flébil» (8), «viúva, grácil» (8), engrinaldada de «festões de som dissimulando a hora» (8).

E, terminado este solo sortílego, o poeta-maestro ataca, melindroso, outro rondó-rondel, substituindo a toada triste, gemebunda, flébile, do fino instrumento de madeira, pelos acordes morosos da viola, embaladores, um tanto monótonos, talvez, nos contínuos leitmotive, mas capazes de tecer nostalgias, fazer cessar, mesmo, a «parlenda» (9), na sua «lengalenga fastidiosa» (9).

Mas, além dos dois formosíssimos rondós, que outras composições faz Pessanha executar o brilho e a ductilidade da sua orquestra? Indica-as, também claramente, o álbum musical que é Clepsidra: um «minuete de discretas ironias», referido no soneto «Foi um dia de inúteis agonias»; um «Fragmento de um hino» (que ignoramos se teve continuação, onde começa a ganhar andamento uma loa à «doce Esposa de Indra, sobre os dois pés sentada»...); uma barcarola, mencionada no soneto Fonógrafo.

O minuete, adivinhamos-lhe a elegância dos compassos breves (o verso hexassilábico e pentassilábico) com que, discreto e irónico, descreve o soldado cujo vulto pimpão não chega para vencer os prélios do amor; com que, irónico e discreto, nos faz sonhar o poeta, «sob a terra firme» (4) a rir-se «de não lhe doer nada» (4), quando à superfície os conflitos da «torva ralé» (4) explodem, selvagens; ou ainda com que, mais discretamente irónico, o poeta reconhece não ser a mulher sonhada, quando enfim possuída, «a que (ele) quis abraçar» (10), mas o próprio instante em que a vira e desejara: «A hora do jardim.../O aroma de jasmim.../A onda do luar... » (10).

A barcarola, ah, essa, ouvimos-lhe a pendulante cadência em quase todas as pequenas partituras de Clepsidra, pois há sempre uma poderosa sugestão de mar e navio, marulhando e flutuando, nos versos de Pessanha: uma «água plana» (11), um «pélago quieto» (12), que por vezes se encrespa, violento, e, então, «as ondas lutam, como as feras mugem» (13); um navio que ora recolheu as velas e cessou o mover dos remos, saudoso dos «velhos ritmos que as ondas embalaram» , ora «enfim, levantou ferro» (14), quando o «maquinista dá mais força no vapor» (14).

O instrumento de cordas que se destaca na interpretação da barcarola é, porventura, pressinto-o, o violoncelo. Das suas arcadas chorosas, «Con-vulsionadas / Pontes aladas / De pesadelo... » (15) divisam-se o rio e os barcos que «Por baixo passam,/Se despedaçam» (15), num profundo «sorvedouro» (15) como «urnas quebradas» (15), ruínas de «lemes e mastros» (15).

E toda, toda esta música tão genialmente orquestrada nos chega aos ouvidos e ao coração como que enovelada numa névoa perturbadoramente opiada, embriagante e lúbrica, com a morbidez dos ritmos orientais. E escutamo-la, e sentimo-la, e aspiramo-la, «Como os ébrios chineses delirantes/Aspiram, já dormindo, o fumo quieto/Que o seu longo cachimbo predilecto/No ambiente espalhava pouco antes... » (16)

E virá a propósito recordar que opiniões autorizadas sublinham ser o exotismo de Pessanha anterior à sua fixação na Cidade do Nome de Deus; que a poesia de Clepsidra seria exactamente a mesma, mesmo quando o poeta aqui não viesse parar. Pois se assim é, que seja assim.

Mas ninguém pode negar que, se a inspiração do poeta nada deve a Macau, Macau muito deve à inspiração do poeta; que, se Macau não influenciou Camilo Pessanha, Camilo Pessanha influenciou Macau:

Hoje, nenhum leitor de Clepsidra aqui desembarca sem se achar penetrado pelos seus versos; sem divisar, como memória presente do passado, «entre castelos serpes batalhantes» (17); sem se julgar descer «em folhedos tenros» (18) as verdejantes colinas; sem se exaltar ou aquietar, sensual ou místico, nos «jardins exíguos» (19), ao «enlanguescer da natureza» (20), adivinhando nos olhos das mulheres macaenses «oblíquo, o Sol» (21); sem experimentar nas narinas, ao deambular pelo bulíciodos bazares, a «obsessão de cheiro» (22) «adocicado» (22); sem se deslumbrar, em percorrendo as ruas nocturnas, com «fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise» (23); sem supor, na dança do leão e no arruído dos panchões, «represados clarões, cromáticas vesânias» (23); sem, sob a chuva copiosa, adivinhar o murmúrio encantador da «água morrente» (24); sem em «dia de Sol» (25) se sentir «inundado de Sol» (25); sem, a cada instante, beijar na alma esta «terra doce e boa» (26). Enfim, permanentemente ouvindo pulsar, na sua sensibilidade, uma líquida música interior, debussyniana: «O correr da água na clepsidra» (26).

Que tarefa sublime, mas difícil, meus senhores, a de transpor para notas numa pauta esta música que parece apenas nascida por letras, por sinais! Música de quem, paradoxalmente, teve como suprema aspiração «deslizar sem ruído» (27).

E, no entanto, três compositores portugueses a ousaram, tão tentadora ela é!

Iremos agora escutá-la, através da arte de Lopes-Graça, Filipe de Sousa e Simão Barreto.

Iremos admirá-la com a mesma emoção e prazer com que se lêem os versos de Camilo Pessanha.

Iremos, assim (e direi, citando o poeta), «sonhar - encher a alma» (28).

NOTAS

(1) - O Simbolismo na Obra de Camilo Pessanha, por Barbara Spaggiari - Biblioteca Breve - Lisboa, 1982.

(2) - Castelo de Óbidos.

(3) - Rufando apressado.

(4) - Porque o melhor, enfim.

(5) - Fonógrafo.

(6) - San Gabriel.

(7) - Depois da luta e depois da conquista.

(8) - Ao longe os barcos de flores.

(9) - Viola Chinesa

(10) - Se andava no jardim.

(11) - Vénus II.

(12) - Estátua.

(13) - Vénus I.

(14) - Roteiro da Vida I.

(15) - Violoncelo.

(16) - Desejos.

(17) - Tatuagens complicadas do meu peito.

(18) - Desce em folhedos tenros a colina.

(19) - Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho.

(20) - Crepuscular.

(21) - Paisagens de Inverno II.

(22) - Roteiro da Vida III.

(23) - Poema final.

(24) - «Água morrente».

(25) - Foi um dia de inúteis agonias.

(26) - «Fragmento de um hino».

(27) - Inscrição.

(28) - Caminho III.

* Poeta, dramaturgo, ensaísta.

desde a p. 75
até a p.