Por várias razões se compaginam, neste número de RC, o texto de António Manuel Couto Viana sobre a música em Camilo Pessanha com as partituras originais de Simão Barreto, de seguida apresentadas.
Inspiram-se, um e outras, no genial registo musical da "Clepsidra", e as intervenções do Poeta e do Compositor conjugaram-se na promoção do recital de 30 de Setembro a facto culminante das comemorações da Academia de Música S. Pio X. Com isso, e destacadamente avaliado, foi esse recital um dos actos de maior autenticidade cultural acontecidos em Macau nos fins do ano passado, de que podem orgulhar-se a Academia e o Instituto Cultural.
Depois da exposição introdutória de Couto Viana, original e inédito ensaio sobre a música na poesia da "Clepsidra", foram interpretadas em primeira audição mundial composições de Lopes-Graça, Filipe de Sousa e Simão Barreto, inspiradas em poemas de Luís de Camões e Camilo Pessanha - dois poetas ligados a Macau.
Continuando em próximas edições, RC publica agora as partituras de Simão Barreto referentes aos poemas "Viola Chinesa" e "Ao longe os barcos de flores", que pela qualidade e originalidade merecem a melhor divulgação e o registo discográfico.
Actualmente responsável pela secção musical do Conservatório de Macau (em fase de instalação), Simão Barreto é instrumentista (Cursos de violino e piano do Conservatório Nacional de Lisboa) e compositor (Curso de composição do Conservatório de Lisboa). Considerado por Filipe de Sousa "compositor fascinante, e um dos maiores na vanguarda musical de hoje", Simão Barreto tem composições para orquestra sinfónica e conjunto de câmara, já interpretadas em mais de dez países da Europa e da América.
Com a publicação destas partituras, RC orgulha-se de retomar uma tradição das melhores revistas de cultura portuguesa, da "Ocidente" à "Contemporânea", e passando por outras da história cultural deste século - tradição interrompida pelo monopólio leonino das letras em espaços a outras Artes também destinados.
AO LONGE OS BARCOS DE FLORES
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
- Perdida voz que de entre as mais se exila,
- Festões de som dissimulando a hora.
Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.
E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?
Só, incessante, um som de flauta chora...
Camilo Pessanha, "Clepsidra"
VIOLA CHINESA
Ao longo da viola morosa
Vai adormecendo a parlenda
Sem que amadornado eu atenda
A lenga-lenga fastidiosa.
Sem que o meu coração se prenda,
Enquanto nasal, minuciosa,
Ao longo da viola morosa,
Vai adormecendo a parlenda.
Mas que cicatriz melindrosa
Há nêle que essa viola ofenda
E faz que as asitas distenda
Numa agitação dolorosa?
Ao longo da viola, morosa...
Camilo Pessanha, "Clepsidra"


















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