Linguística

Das traduções de um poema de Li Bai

António Graça de Abreu *

llustração de Anabela Canas © copyright 1988

Um dos mais conhecidos poemas de Li Bai (701-762), o maior poeta da China, é um jue ju /絕句/, breves versos «cortados», vinte sílabas em vinte caracteres extraordinariamente concisos, com os elementos descritivos reduzidos ao mínimo, um exemplo quase perfeito da riqueza simbólica da poesia chinesa e também das dificuldades de qualquer tradutor ao verter o poema para uma outra língua.

Eis o poema no original chinês:

    玉 階 怨
   
    玉階生白露
    夜久侵羅襪
    卻下水晶簾
    玲瓏望秋月(1)
"Li Bai embriagado', Su Liu Peng (Dinastia Qing)

Na grafia romanizada dos caracteres, de acordo com o sistema hanyu pinyin / 漢語拼音 /, adoptado desde 1979 como transliteração oficial da República Popular da China, o poema veste-se destas roupagens:

    Yu jie yuan
    
    yu jie sheng bai lu
    ye jiu qin luo wa
    que xia shui jing lian
    ling long wang qiu yue (2). 

A tradução portuguesa literal, carácter a carácter:

Jade degraus lamento

jade degraus nascer branca geada

noite longa penetrar seda meias

retirar baixar água cristal cortina

belo transparente olhar outono lua.

Na língua chinesa não existe género nem número, no entanto no poema nada é neutro ou impessoal. Li Bai não usa «eu», «ela» ou «nós», mas convida o leitor a viver os sentimentos de alguém, através de gestos e objectos.

O poeta fala-nos seguramente de uma mulher de elevado estrato social que espera, em vão, o bem amado nos degraus de jade, (yu /玉/ também significa mármore de boa qualidade). A noite está fria, a dama retira-se para os seus aposentos. Baixa as cortinas perladas de vidro e, através delas, observa a lua, tão próxima e tão distante, espelho suspenso no céu que aproxima e afasta quem ama.

O simbolismo poético escapa, com certeza, ao leitor menos identificado com a imensa riqueza das imagens usadas na poesia chinesa.

Degraus de jade: o gineceu, o lar feminino. O jade pode ter uma forte conotação erótica ao ser associado à pele lisa e fina comum nas mulheres chinesas.

Meias de seda: o corpo da mulher, incluindo zonas menos ao alcance do olhar do homem.

Cortinas de cristal: o interior do gineceu, lugar de repouso da mulher.

Ling long /玲瓏/ é uma onomatopeia intraduzível que, tentativamente, transformei em «belo transparente» ou em «límpido». Originalmente refere-se ao tilintar dos enfeites de jade, ou a jóias cintilando, podendo ainda sugerir a face brilhante e bela de uma mulher. Finalmente, se considerarmos que ling long introduz a ideia expressa pelos caracteres que se seguem, wang qiu yue /望秋月/ «olhar outono lua», obteremos o duplo efeito da mulher que vê a lua brilhando no céu e, ao mesmo tempo, tem o rosto iluminado de luar.

Lua de Outono: uma presença longínqua e próxima, o desejo de união dos amantes.

Este poema passa por ser inocente e casto e, no entanto, quanto contrabando de erotismo!

A estrutura formal do «Lamento nos Degraus de Jade» reveste-se também de aspectos peculiares à grande poesia chinesa. Li Bai cria um universo coerente através da sucessão de imagens relacionadas sempre com objectos brilhantes e transparentes, que dão a ideia de derivar umas das outras. O sujeito é omisso, o poema desenvolve-se num processo em que as coisas se encadeiam por si próprias, uma imagem dá origem à seguinte, numa sequência que se completa com a lua de outono, símbolo fundamental da poesia clássica chinesa e tão querida a Li Bai. As rimas, os ritmos, são originais e poderosos. Yu jie /玉階/ ressoa em ye jiu /夜久/, luo wa /羅襪/ liga-se a lian ling long /簾玲瓏 /, que xia /卻下/ completa-se em qiu yue /秋月/. O que está fora une-se ao que está dentro, o longínquo ao próximo, o sujeito ao seu complemento.

O jade é simultaneamente uma escadaria e a pele de uma mulher, a geada é a frescura da noite e o desejo feminino, o ling long é a face bela da dama olhando a lua e o luar inundando o seu rosto. Encontramos aqui as características fundamentais da linguagem poética tal como as define Ramon Jakobson: «la projection de l'axe de la sélection sur celui de la combinaison».

O «Lamento nos Degraus de Jade» é um dos mais perfeitos poemas de Li Bai. Muitos tradutores ocidentais têm-se encarregado de distorcer e banalizar o poema, utilizando por vezes métodos bárbaros, filhos da ignorância e do mau gosto.

Paul Jacob, numa recente tradução francesa, na prestigiosa série «Connaissance de l'Orient», subsidiada pela Unesco, dá-nos uma versão rimada do poema cujo mérito deixo ao julgamento do leitor:

Plainte du Perron de Jade

Sur le perron de jade un givre blanc,

Tard dans la nuit, transit les bas de soie.

Puis le rideau de cristal qu'on descend

Ouvre à la lune automnale la voie (3).

Ezra Pound (1885-1972), em período muito anterior às suas simpatias pelo fascismo italiano, interessou-se pela literatura clássica chinesa. Veio a herdar os esboços das traduções de poesia chinesa elaborados em vida pelo sinólogo Ernest Fenollosa e metamorfoseou-os em poemas ingleses, de indiscutível qualidade, que reuniu em «Cathay», publicado em 1915. Pound não conhecia a língua chinesa mas sabia, como poucos, do ofício da poesia. Eis a versão de Ezra Pound:

The Jade Stairs' Grievance

The jewelled steps are already quite white with dew,

It is so late that the dew soaks my gauze stockings,

And I let down the crystal curtain

And watch the moon through the clear autumn (4).

Talvez seja surpresa para o leitor saber que o «Lamento nos Degraus de Jade» teve já duas traduções portuguesas. A primeira, mais uma recriação dos versos de Li Bai do que uma tradução, deve-se a António Feijó (1860-1917), o expoente máximo do parnasianismo em Portugal. Feijó publicou em 1890 o «Cancioneiro Chinês», versões, ao gosto e molde parnasiano, de poemas de vinte e um poetas chineses, elaboradas a partir das traduções francesas de Judith Gautier reunidas no «Livre de Jade», um sucesso literário na Europa culta de finais do século passado.

António Feijó conseguiu o milagre de transformar o breve jue ju de Li Bai em cinco estrofes de quatro versos, em decassílabos de rima alternada (abab). As vinte sílabas do poema de Li Bai transmutaram-se, na nossa língua, em duzentas sílabas. Mas a versão de António Feijó é hábil e curiosa:

A Escadaria de Jade

Do plenilúnio à doce claridade,

Formosa e moça, a Imperatriz subia

A grande escada artística de jade,

Que o relento da noite humedecia.

A fímbria do vestido, que tocava

Muito de leve nos degraus sem fim,

Nesse beijo tenuíssimo igualava

A cor do jade à alvura do cetim.

O luar vagabundo e sonolento

Tinha invadido a câmara tranquila,

E naquele imortal deslumbramento

A imperatriz extática vacila...

Nas cortinas, as pérolas doiradas

Andavam num radioso turbilhão,

Em diamantes enormes transformadas,

Disputando esse esplêndido clarão.

E no chão marchetado e reluzente,

Na inefável brancura do luar,

Parecia que andavam, doidamente,

As estrelas, em rondas, a dançar! (5).

Muito mais comedido foi Francisco de Carvalho e Rego que, em Macau, em 1951, publicou uma pequena antologia de poesia chinesa que titulou «Mui Fá», transliteração em cantonês dos caracteres «Mei Hua» /梅花/ que significam «Flor da Ameixieira», símbolo do renascer da vida, da primavera e do amor.

Francisco de Carvalho e Rego viveu longos anos em Macau, falava um pouco do dialecto de Cantão mas não lia os caracteres chineses, como honestamente reconhece. Elaborou as suas versões a partir das traduções (em português?, em inglês?) de um seu amigo chinês, Leonel Yeong, aliás Yeong Iau Kun. A qualidade das versões portuguesas cerzidas por Carvalho e Rego está para além do meu comentário:

A Escada da Desilusão

O tapete de orvalho, que cobre a escadaria,

Humedece os sapatos de seda, em nossos pés.

Brilha a pálida lua, através dos cortinados

Oue descem, portadores de atroz desilusão (6).

Wu Juntao, no prefácio a uma sua recente tradução inglesa de poesia de Du Fu (712-770), o genial poeta amigo de Li Bai e, sempre associado a ele, formando o par dos maiores poetas da China de todas as épocas, pois Wu Juntao observa: «É costume dizer-se que a poesia nunca pode ser adequadamente traduzida para outra língua. Talvez seja assim, mas são permitidas, mesmo necessárias, várias versões. A poesia de um grande poeta atrai diferentes tradutores, tal como uma bela paisagem atrai diferentes pintores» (7).

Para concluir, pego eu no pincel, afio a pena romba e traduzo:

Lamento nos Degraus de Jade

Os degraus de jade cobrem-se de geada branca.

O frio da noite atravessa suas meias de seda.

Baixa então a cortina de pérolas de cristal

E, através do límpido painel, enleia seu olhar na lua de outono.

NOTAS

(1) Tangshi Sanbai Shouxinzhu /唐詩三百首新註/, (Trezentos Poemas da Dinastia Tang, comentados), Shanghai Guji Chubanshe /上海古籍出版社/, (Editora de Livros Clássicos), Shanghai 1981.

(2) Prescindi da utilização dos acentos tonais na língua padrão hoje uniformizada na República Popular da China, dadas as grandes variações na acentuação silábica tonal em relação à língua falada na dinastia Tang.

(3) Jacob, Paul. Florilège de Li Bai, pág. 98, Ed. Gallimard, Paris 1985.

(4) Pound, Ezra. Selected Poems, pág. 69, Ed. Faber and Faber, London 1984.

(5) Feijó, António. Cancioneiro Chinês, 2.a edição, pág. 33, Livraria Cardoso e Irmão, Lisboa 1903.

(6) Rego, Francisco de Carvalho. Mui Fá, pág. 71, Imprensa Nacional de Macau, 1951.

(7) Wu Juntao. Du Fu, a New Translation, pág. 4, The Comercial Press, Hong Kong 1981.

* Assistente da Univ. Nova de Lisboa: orientalista: foi durante 4 anos leitor de Português no Dep. de Línguas Estrangeiras da Univ. de Pequim.

desde a p. 70
até a p.