

- "Impossível. Isto não são coisas dignas de seres humanos...
-Tens toda a razão. Isto é uma ocupação e um passatempo de deuses. Anda, vamos brincar aos deuses."
(...) "Ah"!, pensou ele, "só de olhar para as gravuras o orvalho do desejo humedeceu-lhe a relva".
Jou Pu Tuan, O Livro Erótico Chinês de Li Yu
De certa forma, nem eu próprio sei,
se viajei num bote-flor
se deambulei em um jardim
calcetado com pétalas de orquídea
e penópias nos balaústres
e nas portas redondas-de-lua.
As árvores translúcidas, de jade,
amaciadas por um nevoeiro de seda
e as nuvens de papel-de-arroz.
Bote-flor mas não qualquer,
de Un Chü Iam talvez,
de mármore como o de Zhi Sii Dager
furtado do Jardim de Verão.
Dos compartimentos, gineceus quadrados,
molduras de pau-preto,
mãos de orquídeas, delgadas,
afastam as transparências dos
véus, dos cortinados
ondulantes,
sereias abstractas,
a aparição das flores
em convulsionadas sépalas,
pétalas carnudas.
É flor a bela Huang Tchao-Chüen,
a mais cortejada.
Tong Tsui, famosa
pela sua histórica fealdade,
está bela também, "acham-na bela
porque ela se sente bela".
Até a humilde Man Cheang Nü é flor.
E porque não também
Tchang Ngo, a Deusa da Lua,
que se sente só?
Sobre o seu piano de cordas (gu tcheng)
Un Chü Iam derrama tons suaves,
Assobios de cor e de transparências
ambientando o seu lirismo pictórico
em envolvências insinuantíssimas,
de uma imperial sensualidade,
húmidas e prenhes de Yin
E quando a sensualidade
se lhe apodera do corpo de tal forma
que lhe nega habitar a pele, seu papel-de-aroz,
a artista não se desconcerta,
antes pinta estórias tradicionais,
corporiza fragmentos literários,
quase bandadesenha contos poplares.
O bote-flor de mármore com as suas mil flores
como aquele poema (clássico chinês que ela pinta)
do"Barco Que Desliza Como Uma Folha"
na seda das águas,
continua sulcando estâncias intimistas.
No barco de certeza que não.
talvez no jardim de jade,
em mármore as inscrições de Lock Hóng
para um discurso caligráfico
vibrante e viril
significado com Yang,
sobre estelas ao longo do percurso
ou sobre troncos de árvores,
fustes do grande templo abrangente
de todos os tempos -
a escrita sínica, o caracterizador
da unidade inteligível do
Império do Meio.


Na reabilitação de
antigas formas pictográficas e
calimórficas, Lock Hóng cria
uma arqueologia ideográfica e topológica
porque escrita na terra.
Se determinadas incursões
na antiguidade clássica
lhe permitem reformular
algumas complicadas grafias
antropomórficas e zoomórficas,
ainda que de forma empírica,
a estruturação das inscrições
simplificadas e simplificadores de Lock Hóng
levam-no a uma sintetização caligráfica
o que equivale à purificação da escrita escolástica
e consequente evidenciação
do essencial da maturidade escriturística.
último: a pintura de Un Chü Iam
é profundamente feminina,
subtil e muito Yin;
é aquele jeitinho de delicodoce porcelana
de uma mãozinha de donzela chinesa
que deixa cair um lenço de seda,
e no seu suave movimento
cria ondulantes convulsões transversais
e parece nunca chegar ao chão;
ao contrário, a pintura caligráfica
de Lock Hóng é terrivelmente masculina,
frontal e completamente Yang;
é a personalidade imperial do Homem Chinês,
devoto consumidor de essência de dragão,
ele próprio um dragão;
a sua caligrafia não é coloquial,
é mandarinal porque édito,
e não se subtrai na voragem dos tempos.
parágrafo único: tanto Un Chü Iam como
Lock Hóng vêm na pintura tradicional chinesa
a sua fonte artística de perene renovação
e não uma plataforma estática de receitas
eternamente repetíveis e universalistas,
enquanto cegamente prosseguidas até à exaustão.
C. M.
Ventos e véus onde
mergulham rostos, traços de
mensagens e são
comunicação e encanto...
Contraste que resulta em
harmonia, preto e cores
manchadas de sensualidade,
de feminino. Duas formas de
espaço, duas palavras num
mesmo tempo. Suave e doce,
agreste e misterioso, que
vertigem, a memória que
perdura depois de um passeio
por este jardim carregado de
significado oriente. É preciso
deixar livres o pensamento e
os sentidos e entender, gostar!
A. B. R.


desde a p. 108
até a p.