Artes

DUAS IMPRESSÕES SOBRE A EXPOSIÇÃO DE PINTURA E DE CALIGRAFLA DE UN CHÜ IAM E DE LOK HÓNG

Carlos Morreiros Ana Bárbara Ribeiro

- "Impossível. Isto não são coisas dignas de seres humanos...

-Tens toda a razão. Isto é uma ocupação e um passatempo de deuses. Anda, vamos brincar aos deuses."

(...) "Ah"!, pensou ele, "só de olhar para as gravuras o orvalho do desejo humedeceu-lhe a relva".

                                            Jou Pu Tuan, O Livro Erótico Chinês de Li Yu

    De certa forma, nem eu próprio sei, 
    se viajei num bote-flor
    se deambulei em um jardim
    calcetado com pétalas de orquídea
    e penópias nos balaústres
    e nas portas redondas-de-lua. 
    As árvores translúcidas, de jade, 
    amaciadas por um nevoeiro de seda
    e as nuvens de papel-de-arroz. 
    
    Bote-flor mas não qualquer, 
    de Un Chü Iam talvez, 
    de mármore como o de Zhi Sii Dager
    furtado do Jardim de Verão. 
    Dos compartimentos, gineceus quadrados, 
    molduras de pau-preto, 
    mãos de orquídeas, delgadas, 
    afastam as transparências dos
    véus, dos cortinados
    ondulantes, 
    sereias abstractas, 
    a aparição das flores
    em convulsionadas sépalas, 
    pétalas carnudas. 

    É flor a bela Huang Tchao-Chüen, 
    a mais cortejada. 
    Tong Tsui, famosa
    pela sua histórica fealdade, 
    está bela também, "acham-na bela
    porque ela se sente bela". 
    Até a humilde Man Cheang Nü é flor. 
    E porque não também
    Tchang Ngo, a Deusa da Lua, 
    que se sente só? 
    Sobre o seu piano de cordas (gu tcheng)
    Un Chü Iam derrama tons suaves, 
    Assobios de cor e de transparências
    ambientando o seu lirismo pictórico
    em envolvências insinuantíssimas, 
    de uma imperial sensualidade, 
    húmidas e prenhes de Yin
    
    E quando a sensualidade
    se lhe apodera do corpo de tal forma
    que lhe nega habitar a pele, seu papel-de-aroz, 
    a artista não se desconcerta, 
    antes pinta estórias tradicionais, 
    corporiza fragmentos literários, 
    quase bandadesenha contos poplares. 
    O bote-flor de mármore com as suas mil flores
    como aquele poema (clássico chinês que ela pinta)
    do"Barco Que Desliza Como Uma Folha"
    na seda das águas, 
    continua sulcando estâncias intimistas. 
    
    No barco de certeza que não. 
    talvez no jardim de jade, 
    em mármore as inscrições de Lock Hóng
    para um discurso caligráfico
    vibrante e viril
    significado com Yang, 
    sobre estelas ao longo do percurso
    ou sobre troncos de árvores, 
    fustes do grande templo abrangente
    de todos os tempos -
    a escrita sínica, o caracterizador
    da unidade inteligível do
    Império do Meio. 
    Na reabilitação de
    antigas formas pictográficas e
    calimórficas, Lock Hóng cria
    uma arqueologia ideográfica e topológica
    porque escrita na terra. 
    Se determinadas incursões
    na antiguidade clássica
    lhe permitem reformular
    algumas complicadas grafias
    antropomórficas e zoomórficas, 
    ainda que de forma empírica, 
    a estruturação das inscrições
    simplificadas e simplificadores de Lock Hóng
    levam-no a uma sintetização caligráfica
    o que equivale à purificação da escrita escolástica 
    e consequente evidenciação
    do essencial da maturidade escriturística. 
    
    último: a pintura de Un Chü Iam
    é profundamente feminina, 
    subtil e muito Yin; 
    é aquele jeitinho de delicodoce porcelana
    de uma mãozinha de donzela chinesa
    que deixa cair um lenço de seda, 
    e no seu suave movimento
    cria ondulantes convulsões transversais
    e parece nunca chegar ao chão; 

    ao contrário, a pintura caligráfica
    de Lock Hóng é terrivelmente masculina, 
    frontal e completamente Yang; 
    é a personalidade imperial do Homem Chinês, 
    devoto consumidor de essência de dragão, 
    ele próprio um dragão; 
    a sua caligrafia não é coloquial, 
    é mandarinal porque édito, 
    e não se subtrai na voragem dos tempos. 
    parágrafo único: tanto Un  Chü Iam como
    Lock Hóng vêm na pintura tradicional chinesa
    a sua fonte artística de perene renovação
    e não uma plataforma estática de receitas
    eternamente repetíveis e universalistas, 
    enquanto cegamente prosseguidas até à exaustão. 

C. M.
    Ventos e véus onde
    mergulham rostos, traços de
    mensagens e são
    comunicação e encanto... 
    Contraste que resulta em
    harmonia, preto e cores
    manchadas de sensualidade, 
    de feminino. Duas formas de
    espaço, duas palavras num
    mesmo tempo. Suave e doce, 
    agreste e misterioso, que
    vertigem, a memória que
    perdura depois de um passeio
    por este jardim carregado de
    significado oriente. É preciso
    deixar livres o pensamento e
    os sentidos e entender, gostar! 

A. B. R. 
desde a p. 108
até a p.