Crónica-Macaense

CASAMENTOS PÓSTUMOS NA CHINA*

Deolinda da Conceição

Quem nasceu e viveu na China não encontra nela nada de estranho nem de inverosímil. Essa civilização milenária contém ritos desconhecidos da maior parte do mundo, e se algumas vezes aparecem, como factos inacreditáveis, revelações de acontecimentos invulgares nesse país misterioso, o espanto que causam não chega por certo a ser partilhado por quem está habituado a assistir de perto ao periódico levantar do véu da fantasia, com que a China se apresenta para a maior parte dos que a conhecem somente por meio de contos e lendas.

Assim, não estranhará a ninguém nesta pequenina terra portuguesa, perdida na imensidade da China, um acontecimento que seria extraordinário se ele se não repetisse com frequência relativa, pois o casamento póstumo data de há longos séculos e constitui neste grande país do levante um facto por todos aceite, visto que, se os vivos se casam, porque não os mortos, que foram apenas transportadas para um mundo diferente do nosso, mas onde a vida parece seguir o seu curso normal? Sendo assim, perguntamos às vezes se a vida que os chineses vivem nesse mundo do além-túmulo, separado do nosso pela morte, não será uma vida eterna, onde o espírito continuará aquilo que o corpo deixou de fazer, isto é, se a cadeia de continuidade de acções terminará com o aniquilamento e a subsequente corrupção da matéria? Nada sabemos sobre a crença chinesa acerca deste assunto, e, posto isto, limitar-nos-emos a descrever os ritos e as festas que se realizaram recentemente nas bodas de dois jovens que se encontraram e se amaram no outro mundo, mas que se casaram neste.

Era uma noite calmosa, dessas que nos têm tirado o sono e atribulado o espírito. A velha Man Lou levantou-se do seu leito de bambu e dirigiu-se à janela que dava para a rua, com passos incertos. O corpo alagado em suores frios tremia ainda, agitado por um nervosismo explicável. Pela imaginação passava-lhe com nitidez aquela cena estranha em que acabara de tomar parte e que a acordara. Via ainda, mesmo já desperta, o rosto da filha, morta havia perto de vinte anos, e a sua voz soava-lhe ainda aos ouvidos. Como tinha sido grato aquele momento em que a sua Chan Chi lhe aparecera, uma donzela graciosa, ela que lhe ficara rija e fria nos braços, uma criança de cinco anos apenas. O rosto era o mesmo, mas aformoseado pelas vinte primaveras e a voz tinha um timbre mais aveludado, desconhecido nos seus tenros anos. Man Lou vira-lhe nos olhos um brilho encantador e quando ela lhe falou sentiu no coração o júbilo que as mães sentem ao ouvirem as confidências amorosas das suas filhas.

Chan Chi falou-lhe assim: "Minha mãe, a quem eu tudo devo, não teria vindo despertar em ti a saudade que te ficou no coração desde a minha partida, se não soubesse que tu serás o instrumento da minha futura felicidade. Vivo contente e sou feliz aqui, para onde vim há tantos anos e onde te espero, mas seria mais feliz ainda se tu quisesses.

Devo dizer-te que só a muita confiança em ti me permite fazer-te este pedido. Desejo casar-me e o meu noivo é pessoa de quem gostarás, por certo. A sua delicadeza e a sua natural bondade recomendam-to. Encontrei-o há tempos, éramos ambos crianças ainda. Ele chegou pouco depois de mim, e é filho duma família tão boa como a nossa. Os seus pais vivem a pouca distância da tua casa e eles quererão também a felicidade do seu filho. Ngan Cóng é um rapaz digno que será um marido conveniente para a tua filha. Agora, adeus, minha mãe, deixo nas tuas mãos o meu futuro e a minha felicidade".

Man Lou, encostada à janela, olhava o céu onde as estrelas iam perdendo o brilho. Do leste, uma claridade brilhante anunciou o romper do dia. Man Lou chamou as criadas e logo que pousou os faichis, depois da refeição matutina, saíu, seguida de uma pequenita que levava no bra-ço um cesto onde se viam várias velas de cebo, um molho de pivetes amarelos e papéis para serem queimados no templo.

Com passo apressado dirigiram-se as duas para uma travessa estreita, dum bairro distante, ao fundo do qual se via um pagode com dois grandes lampeões à porta.

Man Lou acercou-se do bonzo que em alta voz recitava um cantochão monótono, acompanhado ao som dum ferrinho tocado com pequenos intervalos. O homem, mal a viu, levantou-se do seu lugar e com ela entrou para um pequeno cubículo que ficava à esquerda do templo. A mulher fez-lhe presente dos pivetes e velas que trouxera e contou-lhe em seguida o seu sonho. O bonzo ouviu-a com atenção, de olhos baixos e fazendo passar pelos dedos umas contas amarelecidas. Finalmente, regressaram ao templo e, depois de algumas rezas, o bonzo participou à Man Lou que a sua filha seria feliz se lhe fizessem o casamento o mais depressa possível e que ele se encarregaria de fazer chegar ao conhecimento dos pais do noivo a pretensão do seu filho.

Dias depois, Man Lou recebia instruções do bonzo acerca dos esponsais e imediatamente meteu mãos à obra. Seguiram-se dias inteiros de excursões pelas lojas da cidade, onde ela adquiria as prendas condignas para uma noiva com as posses da sua filha. Em dia marcado pelo bonzo, foram transportadas para a residência dos pais do noivo as prendas, que consistiam em várias peças de jóias de valor, roupas de cama riquíssimas, mobiliário elegante, duas grandes arcas cheias do enxoval confeccionado em seda e rendas, lindas cabaias de seda brocada e ainda dois lindos serviços de chá, presos sobre a mesa do quarto com fita de seda vermelha. A passagem das prendas, por que é conhecida esta cerimónia, fez-se com toda a elegância oriental, acompanhada de música adequada e da queima de panchões. Os vizinhos de ao pé da porta não resistiram à tentação de tocar nas coisas que entravam naquela casa onde um morto ia receber em breve a sua noiva. Era tudo comentários, exclamações de admiração.

À porta da casa do noivo, dois grandes lampiões vermelhos, enfeitados com ricas sedas onde se viam caracteres chineses impressos em oiro, anunciavam aos transeuntes o próximo casamento.

Chegado o dia escolhido, depois de várias visitas ao templo, a casa dos pais do noivo encheu-se de convivas, todos ricamente vestidos. As mulheres apresentavam jóias de raro valor e tinham na cabeça enfeites de flores artificiais. Até as crianças envergavam cabaias de seda de cores vivas. O lauto banquete começara ao pôr do sol e devia prolongar-se até à madrugada do dia seguinte, quando a noiva daria entrada em casa do noivo. Os convivas à luz de dois grandes bicos de gaz, jogavam o má-cheoc, o tin-cau, e outros jogos chineses, em que se ganham e perdem pequenas fortunas. As mulheres, em grupos, examinavam as prendas com aquela natural curiosidade feminina e comentavam em voz baixa o acontecimento extraordinário. Muitas lembravam-se de terem levado ao colo a pequena Chan Chi, enquanto que outras recordavam a esperteza e vivacidade do Ngan Cóng.

Quando o sol começou a despontar tudo cessou, pois era a hora em que a noiva devia chegar. Retiraram-se as mesas, acenderam-se mais velas de cebo e pivetes e abriu-se a porta ao som de uma longa fita de panchões.

O bonzo, à entrada, vestido de gala, entoava o seu eterno cantochão, aspergindo, com pequeninas tigelas de vinho de arroz, os umbrais da porta. Finalmente, os convivas juntaram-se em volta de uma mesa onde ardiam inúmeras velas de cebo vermelhas e cada um bebeu, com ar solene, a sua tigelinha de chá. O bonzo anunciara que a noiva se encontrava entre eles. Nova fita de panchões encerrou a cerimónia.

Já o sol vinha doirando o telhado das casas quando os convivas se retiraram tagarelando, sem respeito pela vizinhança que não conseguira pregar olho em toda a noite.

Man Lou, que não assistira ao casamento, segundo os costumes da China, passara a noite à janela, acompanhando em pensamento os ritos que se realizavam naquela casa para onde a sua filha iria habitar. Um sorriso estranho passou-lhe pelos lábios delgados e os seus olhos oblíquos fechavam-se langorosamente como que a saborear uma felicidade inesperada.

É que entrevia com prazer o dia em que a sua Chan Chi lhe viria participar o nascimento dum filho, mas... então talvez fosse ela recebê-lo em pessoa...

* Com a publicação deste texto, RC assinala e associa-se à justa rememoração dessa figura do jornalismo e da Cultura macaenses que foi Deolinda da Conceição, ao tempo da reedição do seu livro "Cheong Sám - A Cabaia", pelo Instituto Cultural. O conto agora incluído nesta edição, não integrado naquela antologia, foi publicado pela autora no jornal "Notícias de Macau".

desde a p. 113
até a p.