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Macau - suas bibliotecas e documentos

Jorge de Abreu Arrimar*

Página de rosto do livro xilogravado do Padre Miguel Ruggiere, S. J., impresso em Macau em 1585. Foi o primeiro livro impresso em Macau. (Arquivos da Companhia de Jesus em Roma; reproduzido de "primórdios da Imprensa em Macau", de Jack M. Braga, edição do Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau-1965).

Macau poderia possuir a mais rica biblioteca e os mais preciosos documentos desta zona da Ásia. Pelo facto de ter sido o centro do comércio europeu do Extremo Oriente durante três séculos, ponto de passagem dos missionários, embaixadores, negociantes e viajantes que, da Europa, demandavam esta parte do globo e de ter possuído numerosas igrejas e conventos, escolas e universidade. Infelizmente não é assim e, bem pelo contrário, raros são os documentos anteriores ao século XVIII encontrados nas suas bibliotecas ou arquivos. Quanto a livros, que se saiba, apenas 2 são datados do século XVI. No Arquivo Histórico, apenas se encontram 16 livros do século XVII e 28 do século XVIII.

A Biblioteca Nacional (Sector do Leal Senado), até à presente data, tem referenciados somente 3 livros do séc. XVII, sendo alguns do séc. XVIII (poucos), cabendo a maioria aos séculos XIX e XX.

Bibliotecas particulares como as do Comendador Lourenço Marques, de Montalto de Jesus e de José Baptista de Miranda e Lima, ou desapareceram, ou perderam uma boa parte das suas espécies bibliográficas. Da excelente biblioteca de Jack M. Braga, apenas alguns exemplares ficaram a pertencer à Biblioteca Nacional (Sector do Leal Senado), que para ali foram através do Expediente Sínico; o grosso da biblioteca, segundo consta, foi vendido à Universidade australiana de Melbourne. A Biblioteca do Clube de Macau desapareceu sem deixar rasto. Dela fazia parte a colecção completa do mais antigo jornal de Macau, A Abelha da China, e uma colecção valiosa que Rafael das Dores havia reunido e da qual constavam jornais e folhetos em língua portuguesa publicados no Oriente.

O mesmo destino tiveram bibliotecas e arquivos de organismos públicos ou eclesiásticos.

O arquivo do Leal Senado sofreu, a 3 de Dezembro de 1966, um ataque ao seu edifício e a destruição de um terço dos seus manuscritos. O arquivo da Câmara Eclesiástica também se desbaratou ao longo dos tempos. O arquivo da Secretaria do Governo sofreu uma inundação por causa do tufão de 1874, nada mais se aproveitando do que era antigo.

Macau deveria ser o repositório dos documentos que atestassem a passagem e influência dos Portugueses no Extremo Oriente, mas uma boa parte da sua documentação com valor histórico desapareceu devido à incúria dos homens; outra, por causa das inclemências do tempo; outra ainda, porque foi transferida para outras regiões do Império. Assim aconteceu com os documentos anteriores à separação de Macau da Índia Portuguesa (1884), que foram levados para o Arquivo de Goa, pelo menos os que então foram considerados de valor; o restante, foi a pouco e pouco para a Metrópole, acabando muitos documentos por desaparecer, pois na altura não havia nenhum organismo que curasse de defender e preservar a documentação do Ultramar Português.

Para exemplo do que aqui acabou de ser dito, vale a pena contar o que se passou com a documentação que, no século passado, o Comendador Lourenço Marques enviou para Lisboa.

Em 1851 ou 1852, constou ao Governo de Macau que alguém ia, na Metrópole, escrever a história desta colónia. O Sr. Comendador Lourenço Mar-ques, então proprietário da Gruta de Camões, acomodou em 3 baús todos os documentos antigos que possuía sobre a história de Macau, entre os quais alguns relativos ao poeta Luís de Camões, e entregou-os ao Governador de Macau, que se apressou a enviá-los para Lisboa, como subsídio importantíssimo para a história do domínio português no Extremo Oriente.

Um dos primeiros livros impressos em Macau - descrição da viagem da embaixada enviada pelos japoneses ao Papa Gregório XIII; compilado pelo Padre Alessandro Valignano e escrito em latim pelo Padre Duarte Sande, S. J. (Reprodução de "Primórdios da Imprensa de Macau" de Jack M. Braga).

Passaram-se anos, a história não apareceu e os documentos não foram publicados. O Sr. Comendador Lourenço Marques, proprietário dos referidos documentos, pediu então para Lisboa que lhe fossem devolvidos, visto que não eram aproveitados. A resposta foi que os documentos, com os respectivos baús, se tinham completamente extraviado.

Tempos depois, em carta datada de 10 de Julho de 1883, assinada por José Alberto Corte Real, Secretário-Geral do Governo de Macau, dirigida ao Presidente do Leal Senado, podia ler-se o seguinte: «Devem existir em Lisboa documentos valiosos, alguns que foram comprados pelo Ministério da Marinha em 1875, pertencentes à Livraria do falecido José Torres, os quais não sei se serão parte dos que foram em tempos mandados pelo Comendador Lourenço Marques para Lisboa, e cuja notícia não se sabe até que data retrocede ignorando-se também o destino que tiveram».

Traçado que foi o panorama geral de Macau em termos documentais, vale a pena abordarmos em seguida, de uma forma mais concreta, a situação real dos nossos documentos hoje, isto é, falarmos da Biblioteca Nacional de Macau e do Arquivo Histórico de Macau, instituições vivas que se apresentam nos nossos dias como os guardiões da riqueza deixada. Contudo, em jeito de exemplo do que não deve acontecer, começaremos por fazer referência a duas importantes bibliotecas de Macau que, por incúria dos homens, voracidade da formiga branca e inclemências do tempo, acabaram por desaparecer sem deixar rasto, tendo ficado muito mais pobre o nosso já delapidado património cultural. Trata-se das Bibliotecas do Seminário de S. Paulo e do Clube Militar de Macau.

BIBLIOTECA DO SEMINÁRIO DE S. PAULO

Os Jesuítas estabeleceram-se muito cedo em Macau, e, dado o seu interesse pela instrução e pela difusão da religião, logo trataram de adquirir uma casa contígua à antiga igreja a fim de instruírem os pagãos e educarem os jovens portugueses. Ainda antes de 1594, foi essa casa preparada para seminário, onde chegaram a receber lições 90 meninos, filhos dos habitantes de Macau. Mais tarde foi fundado um colégio, onde se ministrava o ensino do latim, teologia, filosofia e belas-artes.

Os Jesuítas, para além dos livros que adquiriam na Europa, ou até mesmo na Índia, introduziram uma tipografia em Macau, o que lhes permitiu imprimirem as suas próprias obras. O Pe. Alessandro Valignano (1) (1539-1606), visitador da Companhia de Jesus no Oriente, desde logo viu a importância da tipografia para a difusão do livro e, consequentemente, da instrução e religião no Extremo Oriente, sobretudo no Japão. Foi com base nestas ideias que mandou vir de Roma os materiais necessários para a instalação, no antigo Cipango, de uma oficina tipográfica.

Foi, portanto, por sugestão de Valignano, que a embaixada japonesa à Santa Sé (2), efectuada em 1582, no seu regresso, trouxe até Macau o conjunto tipográfico. Mais tarde, em 1590, a tipografia foi enviada para o Japão, onde se manteve em actividade por um período de 23 anos.

Em 1614, devido às perseguições que se começaram a mover contra os cristãos japoneses, transferiu-se de novo para Macau a laboriosa tipografia que acabou, mais tarde, por ser vendida, tendo o seu equipamento ficado em casa de André Botto e Manuel Ovello, até 1620 (3). E não fica por aí a tipografia, acabando pouco tempo depois por ser vendida aos Agostinianos de Manila (Filipinas) (4).

"Arte Breve da Lingoa Japoa", do Padre João Rodrigues, impresso em Macau em 1620. (Exemplar da Biblioteca da Ajuda, in "Primórdios da Imprensa em Macau" de Jack M. Braga).

O primeiro livro impresso em Macau na imprensa de Valignano, não é mais do que a reimpressão dum trabalho sobre educação cristã, redigido pelo Pe. Giovani Bonifácio, S.J. (5), intitulado Cbristiani Pveri Institvtio, Adolescentiaeqve Perfugium (...) in Portv Macaensi: in Domo Societatis lesv: Anno 1588.

Trata-se de um livro de 252 folhas, do qual se conserva apenas um exemplar, que se encontra na Biblioteca do Palácio da Ajuda, em Lisboa (6).

O segundo livro a ser dado ao prelo referia-se à viagem que os católicos japoneses haviam efectuado à Europa, da autoria do jesuíta português Eduardo de Sande; trata-se do livro De Missione Legatorvm Iaponensivm ad Romanam curiam, rebusq; in Europa (…) In Macaensi portu Sinici regni in domo Societatis lesv (...) Anno 1590 (7). Desta obra apenas se conservam, hoje, doze exemplares. Nela se faz referência aos primeiros enviados japoneses à Santa Sé, em 1582-85. De 1510 a 1614, como já se referiu, a Imprensa dos Jesuítas esteve no Japão. Em 1620, já em Macau, um novo livro é dado à estampa, intitulado Arte Breve da Língua Iapoa Tirada da Arte Grande da mesma língua, para os que começam a aprender os primeiros principios della (...) Em Amacao no Collegio da Madre de Deos da Companhia de Iesv. Anno de M. DC. XX. in 4, 4 ff. nc. ff. (8).

Quanto ao último livro a ser impresso em Macau na tipografia dos Jesuítas, sabe-se que foi um estudo sobre Gramática Japonesa, do Pe. João Rodrigues, notável linguista, a quem os japoneses chamavam Tçuzzu, que significa intérprete (9). Com a ajuda de uma impressora própria e com os livros que eventualmente iam chegando a estas paragens, a Biblioteca do Colégio de S. Paulo foi crescendo até se tornar, juntamente com a de Goa, numa das mais ricas bibliotecas ocidentais do Extremo Oriente.

João Álvares, cidadão de Macau, em 1746 dá-nos a notícia de que a Biblioteca do Colégio de S. Paulo compunha-se de 4.200 livros (10) e encontrava-se instalada numa grande sala que ficava no recinto do Seminário (11).

Para além da Biblioteca, havia ainda um rico Arquivo, copiado por João Álvares e do qual há cópias na Biblioteca Nacional de Lisboa, no Arquivo Histórico Ultramarino e na Secção «Jesuítas na Ásia», da Biblioteca da Ajuda.

Quando começaram a chegar a Macau os ecos da perseguição movida pelo Marquês de Pombal aos Jesuítas, o Ir. João Álvares que, com infinita paciência, havia copiado os documentos existentes no Colégio, empacotou todos os códices e enviou-os para Manila, daqui acabando, mais tarde, por serem remetidos para Madrid. Foi providencial tal actuação, pois, caso isso não tivesse acontecido, teriam perecido os preciosos códices no incêndio que devorou a Igreja de S. Paulo, em 1835.

"História da Igreja do Japão", do Padre João Crasset, S. J. (Manoel da Sylva, Lisboa, 1749) Descrição do começo da acção missionária no Japão, tradução para português por D. Maria Antónia de S. Boaventura e Menezes).

BIBLIOTECA DO CLUBE MILITAR DE MACAU

Clube Militar é o nome mais recente do chamado Grémio de Macau, fundado em Macau em Abril de 1870, por iniciativa do então Alferes Rafael das Dores, ao que se juntaram o Capitão Manuel Azevedo Coutinho e o Tenente Henrique de Carvalho.

Como se pode ver na acta da fundação do Grémio, a principal prioridade era o estabelecimento de «… uma biblioteca de livros militares, científicos e de qualquer outro assunto.. » (12). Elaborados os estatutos, foram aprovados pelo Governo a 24 de Janeiro de 1871 e publicados a 31 do mesmo mês no Boletim de Macau e Timor, vol. 5. O art.o 3.o diz o seguinte: «O fim da sociedade é adquirir livros nacionais e estrangeiros de assuntos militares, navais, históricos, científicos e quaisquer outros de utilidade; bem como de proporcionar aos sócios, a leitura de jornais, jogos d'armas e de todos os demais permitidos por lei: tudo para instrução e recreio dos mesmos sócios».

A Biblioteca que se organizou foi sendo enriquecida com aquisições várias, vindo, mais tarde, a ter preciosas espécies bibliográficas, como por exemplo: primeiras edições de obras de Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro e muitos mais.

Rafael das Dores viveu 25 anos em Macau e, enquanto aqui esteve, conseguiu reunir uma colecção quase completa de todos os jornais publicados em português no Oriente. A esta colecção de jornais, juntou uma colecção de perto de cem folhetos em língua portuguesa, que haviam sido publicados em diversos pontos da China e do Japão. Curiosamente, essa colecção foi oferecida pelo próprio Rafael das Dores, então Major, ao Clube União (Teatro D. Pedro V) e não à Biblioteca do Grémio, do qual ele foi o fundador. Em assembleia geral do Clube União e por proposta do seu sócio Pedro Nolasco da Silva, foi o Major Rafael das Dores agraciado com um voto de louvor e agradecimento, ao mesmo tempo que era nomeado sócio honorário da Biblioteca do Clube (13).

Hoje, nada se sabe da colecção de jornais que Rafael das Dores ofereceu ao Teatro D. Pedro V, e dos livros da sua biblioteca pouca coisa ficou.

Quanto à Biblioteca do Clube Militar, o Pe. Manuel Teixeira diz que foi destruída na década de 50, pois «o clube precisa(va) de uma sala de dança e os livros tira(va)m muito espaço» (14). Disso nos dá conta, também, o jornal O Progresso de 2 de Novembro de 1959, notificando que a sala da biblioteca havia sido encerrada para obras com o objectivo de tornar as suas paredes «iguais às do salão». Quanto aos livros ali existentes, foram sujeitos a uma selecção, sendo os aproveitáveis entregues à guarda e conservação da biblioteca do Q. G., enquanto os restantes eram destruídos porque se encontravam danificados pela formiga branca. Era o «dobre a finados» da Biblioteca do Clube Militar de Macau.

"Entrata nella China de Padri della Compagnia del GESU" do Padre NicolaoTrigauci (António Sozzini da Sarzana, Nápoles, 1615). Informação do início da evangelização na China, com comentários do Padre Mateus Ricci.

BIBLIOTECA NACIONAL DE MACAU

Corria o ano de 1873 quando o Governador da Província de Macau e Timor, Visconde de S. Januário, aprovou os estatutos da sociedade denominada Biblioteca Macaense, os quais constavam de cinco capítulos e dezasseis artigos, criados pela portaria n.o 92 de 27 de Dezembro de 1853 (15). Tinha esta associação o objectivo de estabelecer e manter uma biblioteca particular da qual constassem livros nacionais e estrangeiros destinados à promoção da instrução e recreio dos sócios e subscritores. Faziam parte desta associação 20 sócios proprietários, administrada por uma comissão composta por figuras de relevo na sociedade macaense de então: Pedro Nolasco da Silva Jr., presidente; Domingos C. Pacheco, tesoureiro; Nicásio Simão, secretário; A. Bastos Jr., vogal; Câncio Jorge, vogal.

A aquisição de livros para a Biblioteca estava a cargo exclusivo, da comissão, assim como o emprego dos fundos da associação, que eram conseguidos, quer pela contribuição mensal dos sócios (1), quer por doações ou outros.

Alguns anos depois fazia-se sentir a falta de uma biblioteca pública em Macau pois a Biblioteca Macaense, com os seus serviços limitados aos sócios e subscritores, não podia chegar a qualquer cidadão. O Pe. Manuel Teixeira diz que a Biblioteca Macaense desapareceu sem deixar rasto (16). Ora, embora não haja certezas, podemos aventar a hipótese de ter sido parte do seu acervo documental transferido para uma nova biblioteca que entretanto se criou em Macau. Em 1895, já durante o governo de Horta e Costa, em sessão de 29 de Setembro foi eleita uma comissão de professores do Liceu (17) para elaborar o projecto de regulamento da Biblioteca Pública de Macau. Foi seu primeiro bibliotecário Matheus António de Lima, figura distinta no meio cultural macaense da época. Quatro anos depois, a estatística então feita apresentou um número de leitores que chegava aos 36 e um número de livros consultados que chegou aos 44. Os temas que mais despertavam a curiosidade dos leitores eram, em primeiro lugar, a Literatura, com 14 livros consultados; Linguística, com 10 livros consultados; História, com 8; Botânica, com 6; Matemática, com 6. O horário estabelecido para abertura e fecho da Biblioteca era das 8.00 horas às 17.00 horas (18).

Lançados que estavam os fundamentos de uma instituição tão cara ao meio cultural macaense dos fins do século passado, foi só necessário esperar mais alguns anos, até que em Setembro de 1939 a Biblioteca Pública de Macau fosse dotada do seu regulamento. Este viria a sofrer uma reformulação em Abril de 1945. Indo de encontro aos anseios da sua Direcção, em Junho de 1952, o então Ministro do Ultramar, deu uma nova designação à Biblioteca Pública de Macau, a fim de que, assim, pudesse vir a beneficiar do estatuto das bibliotecas nacionais, usufruindo do direito a «depósito legal». A velha biblioteca, designada agora por Biblioteca Nacional de Macau, vê o seu acervo documental enriquecido com novas aquisições, principalmente devido ao envio regular de publicações, pois, sempre que uma nova publicação surja, são as editoras obrigadas, por lei, ao envio de um determinado número de exemplares. Assim, em 1962, tinha já a Biblioteca Nacional, então instalada no edifício do Leal Senado, 43.336 volumes, sendo seu bibliotecário interino Luís Gonzaga Gomes, intelectual macaense de muito prestígio (19). Dois anos depois, contava já a Biblioteca com um acervo documental de mais de 60.000 volumes, recebendo uma média de 1.000 exemplares por mês através do «depósito legal». Integrou-se por essa altura a Biblioteca da antiga repartição do expediente Sínico, que muito veio a contribuir para a valorização da Biblioteca Nacional (20). No decurso desse ano, Luís Gonzaga Gomes procedeu à encadernação de algumas obras em fascículos, bem como a de numerosas colecções de jornais e revistas outrora publicados em Macau, ficando assim facultada a sua consulta aos investigadores, facto que até então não acontecia. Em 2 de Abril de 1966 a Biblioteca Nacional de Macau foi representada no 2.o Encontro de Bibliotecários e Arquivistas Portugueses pelo seu bibliotecário, Luís Gonzaga Gomes. Neste Encontro, realizado no Palácio Foz, em Lisboa, a Biblioteca Nacional de Macau foi referida como exemplo de «testemunho real, não apenas de preservação de uma parte do património documental do País, mas ainda da sua utilização em proveito dos estudos de investigação histórica e da valorização cultural das populações (...)» (21). Com o aumento sempre constante do seu acervo documental, viram-se os responsáveis da Biblioteca na necessidade de criar uma secção no rés-do-chão do Centro Cultural «Sir Robert Ho Tung», deslocando para este local uma parte da sua documentação. Quase vinte anos depois, de Setembro a Dezembro de 1980, a convite do Director dos Serviços de Educação, Dr. Peres Claro, veio de Portugal o Professor Silva Rego, com o objectivo de tratar a numerosa documentação que, num estado de semi-abandono, se encontrava na referida secção da Biblioteca Nacional no Edifício «Sir Robert Ho Tung». Iniciou-se o trabalho com a arrumação de numerosa documentação antiga que se encontrava quase a monte num quarto. Catorze grandes caixotes de livros e periódicos que ali se encontravam também, ficaram fechados até ser arranjado espaço para a sua arrumação. Mais tarde, após o arranjo das estantes existentes e a aquisição de mais duas, foram abertos os referidos caixotes e a sua documentação arrumada provisoriamente. Segundo diz o próprio Professor Silva Rego, não se pôde fazer na altura o tratamento técnico da documentação encontrada, pois isso exigia muito mais tempo disponível (22).
"Le Historie delle Indie Orientali”‚ de R. P. Giovan Pietro Maffei (Damian Zenaro, Veneza, 1589), traduzido do latim para toscano por M. Francesco Serdonati Fiorentino. A mais antiga obra impressa existente na Biblioteca anexa ao Arquivo Histórico de Macau.

O património documental desta Biblioteca é, na sua maior parte, proveniente de doações, quer de particulares, quer de organismos públicos. Assim encontramos espécies bibliográficas que foram oferta do Com. Lourenço Marques; alguns livros que fizeram parte da biblioteca particular de Jack Braga; documentos que pertenciam à Delegação de Saúde, Imprensa Nacional, Repartição da Administração Civil e Biblioteca do Liceu de Macau. Obras que haviam pertencido a Camilo Pessanha e a Pedro Nolasco da Silva, acabaram por entrar para a Biblioteca do Leal Senado, aquando da recepção da Biblioteca da Repartição do Expediente Sínico.

A segunda área, essencialmente vocacionada para o livro chinês, é constituída pelas bibliotecas dependentes, que são:

1.a - Biblioteca Sir Robert Ho Tung, instalada no edifício que foi doado ao Governo Português pelo súbdito britânico de Hong Kong, Sir Robert Ho Tung, como preito de gratidão por lhe ter sido possibilitada a residência em Macau, durante a Segunda Guerra Mundial.

Por testamento de 4 de Julho de 1955, foi legado um prédio e o seu recheio, situado na cidade de Macau no largo de St.o Agostinho, n.o 3, com o objectivo de ser convertido numa biblioteca pública provida de livros chineses, para a compra dos quais também legou a importância de $25.000,00 dólares em moeda de Hong Kong, conforme consta da Portaria n.o 5:984 de 6 de Abril de 1957. A biblioteca abriu as suas portas ao público no dia 1 de Agosto de 1958, constituído o seu acervo por cerca de três mil livros escritos em chinês, ainda que alguns sejam traduções de autores europeus e americanos.

Hoje, constitui fundo principal da Biblioteca a própria biblioteca particular de Sir Robert Ho Tung. Deste fundo, destacam-se espécies bibliográficas do séc. XVIII, XIX e inícios do século XX, que se referem à história da China, literatura chinesa e aos contactos entre a China e outros países, incluindo Portugal.

Uma edição do séc. XVIII, que importa aqui destacar, é a História Cheng, escrita por Yue Ke da dinastia Song e que trata dos factos ocorridos durante as dinastias Song do Sul e do Norte. Faz parte de um grande catálogo intitulado Obras Completas de Quatro Espécies, que levou quinze anos a realizar-se (1773-1787) e no qual participaram trezentos e sessenta estudiosos.

Do século XIX é importante a obra Visão Geral do Mundo, de Xu Jishe, ed. xilografada, 10 vols., 1861. Trata-se de um atlas mundial feito no 28.o ano do reinado do imperador Daoguang da dinastia Quing (1848), sendo de destacar uma parte dedicada à História de Portugal (Rolo 7).

Ainda do século XIX, valiosos são os documentos Registos do Concelho de Cantão, da autoria de ShiDeng, ed. xilografada, 1879; Atlas de Cantão, da autoria de Tan Zhongling, imp. Cantão, 1898; Compilação de Acordos que se refere aos acordos entre a China e outros países, ed. Xanghai, 1878; Revista Missionária, edição de 1891, importante como precursora dos jornais chineses; etc.

"Regni Chinensis Descriptio" (Batávia, 1639). É a mais antiga obra impressa existente no acervo documental da Biblioteca Nacional, secção do Leal Senado.

Dos princípios do século XX, são de destacar as seguintes obras, na sua maioria publicadas em 1923: Registos Históricos, oito volumes, escrita no período Taishi da dinastia Han (ano 93 a. C.). Regista de forma sistemática e completa a história das dinastias antigas dos Han; Livro Sobre Zhou, escrita no 10.o ano do reinado do imperador Taizong da dinastia Tang (ano 636), foi o primeiro livro escrito pelos historiadores do Departamento Oficial de História dessa dinastia; História do Sul, escrita na dinastia Tang (ano 959), apresenta a história geral das dinastias do Sul da China (Song, Qi, Liang, Chen); História do Norte, escrita também durante a dinas-tia Tang, refere-se às dinastias do Norte da China (Wei, Qi, Zhou e Sui); História da Dinastia Song; História da Dinastia Yuan; História da Dinastia Ming; Os Acontecimentos Importantes em Lições Gerais Sobre a Dominação, livro escrito por Li Zhutao no 1.o ano do reinado do imperador Xianfeng da dinastia Quing (1851), é a primeira obra de grande vulto de história geral chinesa apresentada sob a forma de crónicas; Registo dos Faróis do Litoral Chinês, é um dos mais importantes documentos sobre a história da alfândega chinesa.

2.a - Biblioteca Itinerante. No desenvolvimento da política do livro chinês, foi criada em 1986 a Biblioteca Itinerante, presentemente constituída por uma carrinha. Em breve estará ao serviço do público macaense de expressão chinesa uma segunda carrinha. A estatística entretanto feita, leva-nos a considerar ter sido um êxito a criação deste tipo de biblioteca: 4.000 leitores por mês.

Encontra-se o posto fixo e depósito da Biblioteca Itinerante, no edifício n.o 14 da Av. Horta e Costa, onde são os documentos submetidos ao tratamento técnico. Compete à Biblioteca Itinerante o apoio, em termos bibliográficos, ao Centro de Idosos da Praia do Manduco e à Cadeia Central de Macau.

3.a - Biblioteca de Coloane. Esta biblioteca é importante porque é a única em funcionamento na ilha de Coloane. O seu edifício é agradável, possuindo uma fachada ao gosto neoclássico, onde sobressaem 6 grossas colunas compósitas. Construído o edifício em 1911, ali laborou uma escola primária até que, em 1983, se instalou a biblioteca.

Embora bilingue, isto é, com documentação em português e chinês, é predominantemente chinesa. A sua bibliografia, ao contrário da de Sir Robert Ho Tung, é constituída por livros de edição recente. Nesta biblioteca regista-se uma média superior aos 200 leitores por mês.

Uma das salas da Biblioteca (Leal Senado)

Hoje, a Biblioteca Nacional de Macau é uma realidade firmada, constituída por 5 bibliotecas, possuindo um corpo de trabalhadores na ordem das 60 pessoas e um acervo documental de cerca de 350.000 espécies bibliográficas.

ARQUIVO HISTÓRICO DE MACAU

Foi em meados de Fevereiro de 1979 que principiou o Arquivo Histórico de Macau. Provisoriamente ficou instalado na antiga residência de Sir Robert Ho Tung.

O primeiro fundo documental que lhe deu corpo foi remetido pela Administração Civil. Posteriormente chegaram os fundos da Santa Casa da Misericórdia, dos Serviços de Marinha, do Leal Senado, da Fazenda, da Administração do Concelho e das Forças de Segurança. Isto até finais de 1980.

Para a organização do Arquivo Histórico de Macau, na altura quase votado ao abandono, foi necessário que de Portugal viesse o Professor Dr. Silva Rego que, com a colaboração da Dr.a Beatriz Basto da Silva, professora do Liceu e conhecida investigadora da História de Macau, meteu ombros à difícil tarefa. Quando no final de 1980 o Prof. Silva Rego regressou a Portugal, punha-se o problema da falta de técnicos, quer auxiliares, quer superiores, que pudessem garantir a continuidade do seu trabalho. Depois de terem sido feitos contactos no sentido de dotar o Arquivo de um director, a pessoa apontada acabou por desistir, ficando então com esse cargo a Dr.a Beatriz Basto da Silva. Em 1982, a Direcção dos Serviços de Educação enviou a Directora do Arquivo Histórico de Macau ao I Encontro Internacional de Arquivologia da Ásia, a decorrer em Kuala Lumpur. Tal facto permitiu uma abertura aos contactos internacionais, proporcionando, assim, um intercâmbio maior de informações com os demais participantes. O interesse manifestado pelo Arquivo em deslocar-se àquela Mesa Redonda Internacional de Arquivos, prendia-se com o facto de se pretender que o Arquivo Histórico de Macau fosse admitido como membro do Conselho Internacional de Arquivos (ICA), o que veio a acontecer no início do ano seguinte (1983). A abertura dos contactos internacionais, a actualização técnica e o intercâmbio de informações, são as vantagens que o ICA proporciona aos seus membros. A 10 de Março de 1982 o Arquivo Histórico passou para as suas novas instalações na Avenida Conselheiro Ferreira de Almeida.

No início do ano de 1986 transitou o Arquivo Histórico para a tutela do Instituto Cultural, tendo, de seguida, encerrado as portas do edifício antigo para remodelação das suas instalações. Presentemente encontra-se provisoriamente instalado no n.o 14 da Av. Horta e Costa.

a) Boletim do Arquivo Histórico de Macau

Começou o Professor Silva Rego, coadjuvado pela Dr.a Beatriz Basto da Silva, por elaborar roteiros e inventários da documentação existente, encontrada, aquando da sua chegada ao Território, em estado de abandono quase total. Consequência normal deste trabalho foi a publicação do Boletim do Arquivo Histórico.

Luís Gonzaga Gomes recebe Monsenhor Capri na Biblioteca Nacional (Leal Senado), de que era o Director.

Trata-se de uma publicação semestral, dedicada basicamente a publicar os trabalhos realizados no Arquivo. Cada número, com 200 a 250 páginas, tem uma secção de estudos onde eventualmente são publicados trabalhos de eminentes investigadores. No 1.o número podemos ver artigos e estudos assinados por Charles Boxer, Pe. Benjamim Videira Pires e Xe Fuya, com tradução do Dr. José Graça de Abreu, professor de Português em Pequim. O Boletim, através da publicação de inventários dos diferentes fundos do Arquivo, permite o conhecimento, por parte dos interessados pela história de Portugal no Oriente, da riqueza documental ali conservada.

b) Biblioteca do Arquivo Histórico

Dispõe o Arquivo Histórico de uma Biblioteca Especializada, que pertenceu ao notável cidadão macaense Luís Gonzaga Gomes. Esta biblioteca destina-se essencialmente a dar apoio aos investigadores que desenvolvam o seu trabalho de pesquisa no próprio Arquivo. O seu importante acervo divide-se, como é natural, pelas áreas seguintes: I-Macau; II-China; III-História Geral; IV-Arte; V-Literatura; VI- Diversos.

Desta biblioteca fazem parte espécies bibliográficas preciosas, merecendo destaque especial duas obras, ambas do século XVI: a primeira, editada em 1568, intitula-se Nuovi Avisi dell'Indie di Portugallo, recevuti dalli Reverendi Padri della Compagnia di Giesu, tradotti della lingua Spagnuola nell'Italiana... A segunda é de 1589 e tem por título Le Historie delle Indie Orientali, del R. P. Giovani Pietro Maffei della Compagnia de Giesu... Como é do conhecimento geral, os livros do século XVI são apreciados em qualquer biblioteca. Dos livros do século XVII, destaca-se o da autoria do Padre Jesuíta Nicolao Trigauci, Entrada Nella China de'Padri della Compagnia del Gesu, que é uma fonte preciosa de informações sobre os primeiros passos da evangelização na China, com comentários do célebre missionário jesuíta, Padre Mateus Ricci.

Para além de outras monografias de valor bibliográfico, faz parte do acervo em questão um exemplar (o n.o IV de 3 de Out. de 1822) do mais antigo dos periódicos de Macau, o jornal A Abelha da China. O primeiro número foi publicado numa terça-feira, dia 12 de Setembro de 1822, sob um clima de agitação política acentuada, fruto das desinteligências entre liberais e absolutistas. Era dirigido o jornal por homens de temperamento arrebatado e com pouca tendência para a conciliação. Publicada semanalmente, A Abelha da China constava de 4 páginas, era impressa em papel de fabrico chinês e tinha como editor o prior dos Dominicanos em Macau, Fr. António de S. Gonçalo de Amarante, porta-voz dos constitucionalistas. Havia uma colecção completa na Biblioteca do Clube de Macau, que veio a desaparecer, não existindo, presentemente, nenhuma no Território.

Sala de leitura da Bibioteca do Centro Cultural Sir Robert Ho Tung

No capítulo da legislação, há a destacar uma encadernação de Boletins do Governo de Macau, Timor e Solor, do ano de 1850.

c) Filmoteca Histórica Macaense

O Arquivo Histórico de Macau dispõe também de uma Filmoteca, criada pelo Prof. Silva Rego com um fundo de 20.000 patacas e com o objectivo de proporcionar a leitura da principal documentação histórica relacionada com a expansão de Portugal no Oriente e que se encontra espalhada por vários arquivos estrangeiros. Destina-se, assim, a Filmoteca do Arquivo Histórico a proporcionar aos investigadores e estudiosos de Macau o acesso a muita documentação importante para o conhecimento da história local, sem ser necessário deslocações - na maior parte dos casos difíceis de realizar - a Portugal, Inglaterra ou França. De 1980 a 1985 foram várias centenas de documentos filmados no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. Muitos documentos sobre Macau existem na Biblioteca da Ajuda, na Biblioteca Nacional, nas bibliotecas de Évora, do Porto, de Braga, de Londres, de Paris, etc., à espera de tratamento semelhante. ·

NOTAS

(1) Morreu em Macau, em Janeiro de 1606.

(2) FRÓIS, Luis, Pe. - Tratado dos Embaixadores que foram a Roma no anno de 1582, in: PINTO, J. A. Abranches, e outros «La Première Ambassade de Japon en Europe», Tokyo, 1942.

FIGUEIREDO, J. A. - Primeira Embaixada do Japão à Europa. «Archivo Pittoresco» vol. 5, Lisboa, Ed. Castro Irmão & C.a, 1862.

(3) BRAGA, Jack M. - Primórdios da Imprensa em Macau. Macau, Ed. do Boletim Eclesiástico da Diocese, 1965, p. 6.

(4) RODELLES, Gomes, Pe. - Imprensa de los antiguos Jesuitas en Europa, América y Filipinas durante los siglos XVI al XVII. Madrid, 1910, p. 29-30.

(5) A 1.a edição foi feita em Salamanca, em 1565.

(6) FREITAS, João de- A Imprensa de Tipos móveis em Macau. «Anais das Bibliotecas e Arquivos de Portugal», 1 (5) 1915, p. 211 e segs.

PEIXOTO, Jorge - Notas, in: Douglas C. Mc Murtrie «O livro: Impressão e Fabrico». Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, 1969, p. 405-407.

(7) Arquivos de Macau, 2.a série, p. 100.

(8) BRAGA, Jack M. -ob. cit., p. 15.

(9) BOXER, C. R. - The Christian Century in Japan. Berkeley, p. 134.

(10) DOMINGOS, M. G. dos Santos - Macau - Primeira Universidade Ocidental do Extremo Oriente. «Anais da Academia Portuguesa da História», II Série, vol. 2, p. 206.

(11) LJUNGSTEDT, Andrew - Historical Sketch of Portuguese Settlements. Boston, 1836, p. 40.

(12) In Os Militares em Macau. Ed. CTIM, 1975, p. 460.

(13) Id., p. 466.

(14) Id., p. 467.

(15) Boletim da Província de Macau e Timor. Macau, 19 (53), 1873.

(16) Os Militares em Macau. Ed. CTIM, p. 469.

(17) O Liceu de Macau havia iniciado as suas funções no ano anterior, 1894.

(18) Boletim Oficial: Suplemento. Macau, n.o 5, 1900, p. 64.

(19) Anuário de Macau. Macau, 1962, p. 27.

(20) Anuário de Macau. Macau, 1964, p. 31.

(21) ALMEIDA, Justino Mendes de - Discurso de Encerramento do 2.o Encontro de Bibliotecários e Arquivistas Portugueses in «Relatório da Biblioteca Nacional de Macau», Macau, 1966.

(22) Macau. Macau, 1, Jan.-Mar., 1981, p. 15-28.

(23) O mobiliário existente nas «salas Joaninas» da B. N. M. (S. L. S.), foi mandado construir, em 1940, à firma Lane Crawford de Hong Kong. A madeira utilizada foi a teca.

(24) Mandada concluir, em 1725, no reinado de D. João V.

* Lic. História: especialista em Ciências Documentais; Director da Biblioteca Nacional de Macau

desde a p. 46
até a p.