O Comércio

KIRA, O MAU DA FITA

Carlos Marreiros

Este título nada tem a ver com o Kilas, o tal mau da fita de Fonseca e Costa. Pese embora o facto de Kira, pseudónimo artístico de António Joaquim Pereira Gama, se estrear em Macau na Galeria de Arte da Livraria Portuguesa com vinte e três obras que não estávamos acostumados a reconhecer na sua fita: o Kira das cores agressivas (no sentido oftalmológico) às vezes fauves, das estruturas quase ósseas dos seus corpos-paisagens urbanos, do passeio de triciclo pelas colmeias da propriedade horizontal geometrizadas e das colinas de Afrodite que o pincel subtiliza nos contornos da sua líbido.

Ao invés, Kira traz ao convívio macaense duas dúzias de fragmentos nostálgicos da sua infância alentejana, muito brancos, cheios de cal e de algum sol, aparentemente glorificando a solidão calcária das suas recordações topológicas. De quando em vez, três precisamente, alguns pedaços de mar, muito azuis, que convocam em si mesmos alguns reflexos prateados de um qualquer passeio de barco que Kira, ainda Kirinha de calções e fato-de-marinheiro-às-riscas-azul-branco, alguma vez sonhara nas ondas dos seus lençóis de infância, também às riscas.

Kira destrói o arcaboiço de um corpo urbano e, esfacelando a carnação envolvente, retira o cabide onde recoloca os elementos constitutivos, agora sintéticos e geometricamente purificados. É a vitória da cor, da composição estruturalista e do vigor. Esse o Kira que conhecíamos.

Insistência no branco, permanência no tempo, agorafobia (só na composição, porque tematicamente as grandes planícies impõem-se), texturação subtil de algumas superfícies - são aspectos da reinvenção do seu discurso actual, eloquente e popular. Casario desbotando ao sol e atravessado por leve poeira de um tempo que se soltou de ampulheta partida e a exaltação flórea e sensual da Noiva-Primavera e de outras Primaveras, de formas redondas e avantajadas, são outras circunstâncias que se desnudam nesse Kira que Macau conheceu.

Mau da fita, só porque não estávamos à espera dessa sua proposta plástica, tão enfaticamente branca e calma. Um título cinematográfico, apesar de tudo, premeia, com justiça, a sua pintura que é cinética, rítmica e abundante em enquadramentos eleitos (fixação compositiva em pormenores), em movimentos transversais desfocando o objecto, em transparências sucessivas (poeiras) com o efeito de fade out... ·

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