Atrium

Para um futuro sem complexos

Jorge Morbey

"O futuro é filho do passado e tem a cara do pai"

Provérbio árabe

O estabelecimento dos portugueses em Macau, no século XVI, constitui matéria em que divergem acentuadamente as opiniões formadas em Portugal e na China.

Durante várias gerações, os portugueses aprenderam - desde a História ensinada nas escolas primárias - que Macau constituíra uma doação feita pela China a Portugal, em reconhecimento da ajuda prestada pelos seus antepassados, nas dinastias Ming e Qing, no combate aos piratas que infestavam as regiões costeiras do Império do Meio (1), (2) e (3).

Diametralmente oposto é o entendimento que na China têm os historiadores oficiais sobre o mesmo facto: o estabelecimento dos portugueses em Macau é explicado como ocupação colonialista de uma parcela do território chinês por Portugal. Alguns autores qualificam os portugueses como sendo os próprios piratas, seus aliados ou mentores. E sobre a tese tradicional portuguesa replicam tratar-se de uma grave distorção da História e de mera ficção construída tardiamente (4), (5) e (6).

Uma terceira interpretação sobre o estabelecimento dos portugueses em Macau é a que o pode explicar como entreposto comercial obtido por via do arrendamento, pelas autoridades chinesas aos portugueses, de terras situadas na Península de Macau (7), (8) e (9).

A observação fragmentária efectuada estaticamente sobre momentos descontínuos da História; a interpretação de factos de um passado remoto, à luz de critérios actuais de análise e crítica social; a sobrevalorização ou a depreciação de factos e de protagonistas em função de preconceitos enraízados - produzem o enviezamento dos resultados da investigação e fundamentam a construção de teses parciais, deformadas ou inverosímeis.

Temos a funda convicção de que a História de Macau que tem sido possível fazer-se, por chineses e por ocidentais, se tem defrontado com questões do tipo das atrás enunciadas, a que tem acrescido um bloqueamento até aqui não ultrapassado: as dificuldades de acesso às fontes ocidentais pelos investigadores chineses e a inacessibilidade das fontes chinesas aos historiadores do Ocidente.

Admitimos que a História de Macau contenha episódios marcados pela solidariedade dos portugueses ao povo e às autoridades chinesas em relação a terceiros, o que constitui o fundamento da tese tradicional portuguesa; que em outros momentos os interesses dos portugueses possam ter encontrado oposição das autoridades chinesas e que, por essa razão, tenha havido lugar a conflitos com recurso à força das armas; e que, por último, o estabelecimento e a permanência dos portugueses em território da China se tornou possível com o consentimento das autoridades deste País, mediante o pagamento de uma renda periódica (Foro do chão) e em compensação dos benefícios culturais e económicos, que a situação de Macau gerava nas regiões chinesas adjacentes.

Na História de Macau aparecem, assim, os elementos caracterizadores das três teses antes enunciadas. Só que, do nosso ponto de vista, não se encontrou até agora a justa medida do seu peso relativo de modo a extrair a dominante histórica da presença dos portugueses em Macau, por mais de quatro séculos.

Uma tão longa permanência, coloca desde logo à partida como hipótese de trabalho confirmada pelo tempo, o desejo dos portugueses de aqui permanecer e o consentimento das autoridades chinesas, tácito ou expresso, entusiástico ou reticente, de que aqui estivessem.

Com este pano de fundo, que parece não aceitar controvérsia, cabe aos investigadores coligir, do acervo bibliográfico e documental existente, os materiais a partir de que se extraiam as linhas mestras da História de Macau.

Torna-se assim imprescindível a realização de todo um vastíssimo trabalho de pesquisa e tradução de documentos que permita colocar os investigadores, chineses e ocidentais, em pé de igualdade no acesso às fontes da História de Macau.

Chamou a si essa magna tarefa o Instituto Cultural de Macau: através de uma equipa de investigadores portugueses e de outra de investigadores chineses, procede-se à recolha, inventariação e tradução, para publicação, pelo menos bilingue, da documentação sobre os factos relevantes da História de Macau, segundo a sua ordem cronológica. Não se trata de mero exercício académico. Nem de preocupação tardia, na opinião daqueles para quem já nada vale a pena quando o futuro de Macau (querendo significar o fim de Macau) está definido e aprazado, entre Portugal e a China, para 1999.

Do que se trata, afinal, é de dar real conteúdo à expressão contida na Declaração Conjunta, em que os Estados Português e Chinês acordaram numa "solução apropriada da questão de Macau legada pelo passado" (10).

Não é crível que o "fortalecimento das relações de amizade e cooperação" no futuro possa assentar em equívocos sobre o passado.

Há que definir com clareza os contornos e a essência desse passado em entreajuda serena e em pesquisa verdadeiramente científica, com a intervenção de especialistas portugueses e chineses, como condição essencial à construção de uma sociedade saudável no futuro, porque despida de complexos sobre o seu passado.

Jorge Morbey Presidente do Conselho Directivo do Instituto Cultural de Macau.

NOTAS

(1) "Em 1556, fins do anno, infestava as paragens do golpho chinez um famigerado pirata, por nome Chan-si-lau, o qual levava o terror e a devastação aos povos do litoral. N'esta conjuncção, é tradição constante, os portuguezes, querendo captivar os mandarins no interesse do nosso commercio, deram repetidos ataques áquelle pirata, logrando exterminar-lhe as forças. Se bem que não haja do facto documentos authenticos, é geralmente admittido que foi em premio deste relevante serviço que o imperador Che-tseng (em vida Kia-tsing) nos deu a posse de Macau".

(Bento da França: "Subsídios para a História de Macau"; Lisboa, Imprensa Nacional, 1888).

(2) "A China confirma a perpétua ocupação e Governo de Macau e suas dependências por Portugal como qualquer outra possesão portuguesa".

(Arto. 2o. do Protocolo Luso-chinês, feito em Lisboa, em 26 de Março de 1887. In Boletim da Província de Macau e Timor no. 20, Vol XXXIII, de 19 de Maio de 1887).

(3) "A China confirma na sua íntegra, o artigo 2o. do Protocolo de Lisboa, que trata da perpétua ocupação e governo de Macau por Portugal".

(Artigo 2o. do tratado de Amizade e Comércio entre Portugal e a China, de 1 de Dezembro de 1887. In Tratado de Amizade e Comércio entre Portugal e o Império da China. Ed. Lisboa, Imprensa Nacional, 1888).

(4) "Dai Yixuan, o autor, consultando vária documentação histórica, tanto chinesa como estrangeira, e tomando como base a realidade histórica, descreve detalhadamente o decurso da invasão do território chinês de Macau pelos piratas-colonialistas-portugueses, as suas atrocidades e a luta do povo da China contra a colonização portuguesa".

"A monografia conta o processo da invasão portuguesa de Macau e as actividades dos portugueses durante 70 anos de história, até à chegada de Mateus Ricci à China em 1587... ".

"Desde há muito tempo, porém, alguns estudiosos ocidentais, desfigurando essa história, sustentam que Macau foi doado como retribuição pelo auxílio dos portugueses na expulsão dos piratas...".

(Dai Yixuan: "História da Dinastia Ming" - Capítulo Sobre os Portugueses - Notas e Comentários. Introdução. Ed. da Academia das Ciências Sociais da China. Pequim, 1984).

(5) Dai Yixuan: "Sobre a Questão da Chamada Expulsão dos Piratas na História de Macau"; Ed. Livraria Seng Kwong de Macau. Abril, 1987.

(6) 1623 - Novembro27

Relação sobre a fundação de Macau; da autoria do escrivão da Câmara daquela cidade, Diogo Caldeira do Rego. BNM-MS. 20262.

«Breve Relação do estado da Cidade do Nome de Deos Reino da China de seu principio ate o anno de 1623».

Depois que os primeiros Portugueses que a estas partes da China passarão no anno de 1524, estiverão e contratarão com os Chinas desoito annos na Ilha de Sanchuão, e doze em Lampacao, descobrirão este porto de Amacao aonde por acharem mais comodidades, e melhores para seu trato e mercancia se forão deixando ficar esquecer nelle ora huns, ora outros fasendo suas casas ao principio de palha, e depois de taipa, cresceram de maneira em espaço de trinta annos que quasi sem se sentir no cabo delles estava ja huã povoação tal que tratou de ser cidade como de efeito no anno de 1584....

Porque os primeiros fundadores em bella paz fasiam sua mercancia com os Chinas e as viagens da índia, Japão, Sião, e outras se continuarão sem temor dos imigos não cuidavão então que os poderião ter ao diante, e cada hú edificava para si, e a seu modo aonde lhe melhor estava sem respeito ao comu, com que ficou esta cidade muy espalhada, mal armada, pouco defensavel, e sendo edificada como foi sem licença nem consentimento del Rey da China só com a dissimulação dos Mandarins que governavão pellos proveitos comuns do Reino, e seus particulares, avendo nelles as continuas mudanças que conforme a seu governo costuma aver, não faltarão cõ elles por muitas veses varias contrariedades aos moradores della os quais mostrandose sempre leais vassalos de Sua Magestade assi como se presavão de a custa de sua fazendas, sangue e vidas com grandes perigos e trabalhos de tão largas navegações terem descuberto tantos portos nestas partes fundando e edificando neste hua tal cidade se presão também muito seus filhos e sucessores de a conservare, e acrescentare com a mesma custa e mayores perigos, sem nella entrar ate oje a fazenda real para gastos que se tenhão feito, antes teve sempre grandes proveitos e acrecentamentos della como se vera.

Sobre tudo se fizerão grandes diligencias com os Chinas para efeito de se fortificar de todo e cõ novas peitas que lhe derão vierão alguns mandarins ver as naos dos imigos*, e os mortos que no campo ficarão dos quais levarão alguãs cabeças a Cantão em prova que os muros que desejavamos fazer era só afim de defender a cidade que estava nas terras del Rey da China de imigos que injustamente a querião tomar, e nisto se teve também modo que como o dar pode muito, e acaba tudo com elle se venceo a mayor dificuldade que avia, e se deu principio a obra, os mandarins forão desimulando a gente de serviço veo crecendo a obra continuando con tanto fervor que em pouco mais de hú anno se tem acabado grandes lanços de muro de desoito palmos de largo e trinta e sinco de alto cõ seus reveses baluartes e parapeitos que a cidade esta ja quasi fechada da parte da terra. Esta feito grande parte da fortaleza dos Estados de Sua Mgde. e este foi o proveito que a Sua Mgde. e a esta sua cidade derão os imigos com sua vinda a ella porque tarde ou núca doutra maneira se podera fortificar por mais que nisso se trabalhasse.

* N. A - Os inimigos referidos no texto eram os Holandeses.

(In Luz, Francisco P. Mendes da - "O Conselho da Índia". Lisboa, 1952).

(7) Sendo geralmente admittida a desistencia aos seus direitos sobre Macau que os chinas fizeram em nosso favor, levanta-se, comtudo, controversia sobre se esta concessão foi feita com ou sem onus para nós. Parece, porém, que os sinologos mais competentes e os escriptores mais abalisados concordam em que se nos não exigiu cousa alguma, mas sim os portuguezes, em prova de gratidão e de seu motu-proprio, enviavam ao imperador annualmente 500 taeis de prata, cerca de $600,000 réis. Nós estamos inclinados a acceitar as cousas assim, já pelas rasões expendidas, já porque não colhe a exigencia posterior do fôro annual, visto que tal exigencia foi feita depois da ascensão ao throno da dynastia tartara-mandechua, dynastia que nem aos proprios chins deixou conservar os seus direitos e costumes.

(Bento da França: Ob. cit).

(8) "O mandarim Lin Fu apresentou ao Imperador o seguinte memorando: "Em Guangdong, os rendimentos públicos e privados provêm em grande parte dos impostos. Se se impedir a vinda dos navios estrangeiros, tanto o sector público como os particulares ficarão numa situação embaraçosa. Se permitirmos que os portugueses façam negócios connosco, teremos quatro vantagens. Nos tempos dos nossos antepassados, os vários países estrangeiros acorriam amiúde até nós, pagando as taxas e trazendo mercadorias. Cobravam-se impostos. Uma pequena percentagem deles era suficiente aos dispêndios do Imperador. Esta é a primeira vantagem. Reside a segunda no abastecimento dos exércitos, preparando-os para situações imprevisíveis. Guangxi sempre viveu na dependência de Guangdong. Uma pequena acção militar contra ela, é o bastante para a deixar em posição aflitiva. Se os navios estrangeiros vierem, solucionar-se-ia o problema financeiro. É a terceira vantagem. A população sempre viveu do pequeno comércio. Para sobreviver, tem que vender ou trocar rapidamente as suas pequenas produções. É esta a quarta vantagem. A abertura comercial ao exterior ajuda o país e beneficia a população.

O bem do povo não é estarmos a cavar a nossa própria sepultura".

N. T. - O memorando terá sido entregue no ano do Imperador Jia Jing (1529).

(In Dai Yixuan: "História da Dinastia Ming", idem).

(9) Os colonialistas portugueses aproveitaram-se da boa relação comercial existente entre os chineses e os povos do Sueste Asiático fazendo-se originários de outro país, através de um chinês chamado "Zhou Luan", que os apresentou como representantes de uma companhia comercial, no ano 1553 (32o. ano de Jia Jing), subornaram um oficial dos assuntos marítimos "Wang Bai", no ano seguinte obtiveram autorização para fazer comércio nos portos de Guangdong, seguindo as regras do "imposto".

Antes dessa data, os mercadores-piratas portugueses negociaram com os chineses clandestinamente na aldeia Nan Shui de Lang Bai Jiao. Após obterem a autorização de "Wang Bai", não só atracaram e zarparam abertamente nos portos da província de Guangdong, como entraram também na cidade de Guangzhou. Entretanto, alegando que as mercadorias estavam molhadas e com pretexto de obterem terreno para as secar, mudaram-se do Lang Bai Jiao para Hao Jing Ao. (Hao Jing Ao ou Xiang San Ao eram outros nomes de Macau (Ou Mun).

De acordo com os hábitos comerciais existentes entre a China e os países do Sueste Asiático, quando os navios estrangeiros aportavam a Macau, os que neles vinham somente instalavam tendas provisórias para residência, demolindo-as quando, terminados os negócios, os navios levantavam âncora. Mas mal os colonialistas portugueses chegaram a Macau, não acataram os hábitos existentes. Sem fazer caso da oposição do povo chinês, adoptaram uma atitude dura e construíram em 1557 casas em tijolo, telha, madeira e pedra. O oficial responsável pela defesa de Macau aceitou os seus subornos, tolerou essa atitude, e em breve as casas transformaram-se numa aldeia de onde os colonialistas portugueses nunca mais queriam sair. Esta ocupação de Macau pelos colonialistas portugueses encontra-se registada nos documentos originais de então.

(Dai Yixuan: "Sobre a Questão da Chamada Expulsão dos Piratas na História de Macau", Idem).

(10) O Governo da República Portuguesa e o Governo da República Popular da China, recordando com satisfação o desenvolvimento das relações amistosas entre os dois Governos e os dois povos existentes desde o estabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países, acordaram em que uma solução apropriada da questão de Macau legada pelo passado, resultante de negociações entre os dois Governos, seria propícia ao desenvolvimento económico e estabilidade social de Macau e a um maior fortalecimento das rela-ções de amizade e de cooperação entre os dois países.

(Texto da Declaração Conjunta do Governo da República Portuguesa e do Governo da República Popular da China sobre a questão de Macau, rubricado em Pequim, em 26 de Março de 1987. Ed. Imprensa Oficial de Macau, 1987.)

desde a p. 3
até a p.