Artes

A PROPÓSITO DA EXPOSIÇÃO COLECTIVA 9 ARTISTAS

Luís Sá Cunha

"Um", pastel a guache sobre papel, de Ana Leandro - 1987.
"Escriturismo I", acrílico sobre tela, de Carlos Marreiros - 1987.
"Sobre paisagem", aguarela, tinta da China e acrílico, de Conceicão Júnior - 1987.

O acto de criação artística (e assim qualquer genuíno acto cultural) é o contrário da competição - porque gerado sem o pecado original da inveja. Invejoso é o que não quer ver ou não vê (in videre), e mais do que noutras tentativas artísticas é na Pintura que melhor se detecta a estrela polar de todo o impulso artístico: a desvelaçao do invisível. Por isso a solidão e a clandestinidade agraciam os criadores de Arte e caracterizam o puro acto de Cultura, e a competição e a publicidade são cariz dos "intermediários da Cultura", dos que intentam geri-la ou organizá-la. Prescrutam os primeiros a noite, olham os segundos para o lado onde, segundo a visão táctica, está o inimigo principal. É assim esclarecidos e legitimados, libertos da competição invejosa, que nos atrevemos a afirmar que esta Exposição de "9 Artistas" é um dos actos de maior signo, genuinidade e importância culturais acontecidos recentemente em Macau. Apesar (melhor diríamos, por causa) da modéstia de que se reveste para um público cada vez mais promovido a grande plateia internacional pelos cenários sardanapalescos que lhe servem.

A primeira coisa a relevar nesta Exposição de "9 Artistas" é o ser ela colectiva, facto raro e promissor de consequências mais vastas. Colectiva quer apenas dizer propriedade ou partilha de alguns: não se trata de filiação num movimento, nem subscrição de proposta comum. Circunscreve um espaço, que é franca távola onde têm lugar reservado diversas linguagens individuais. Da diferença e como exemplo: José Catita afronta-nos com o sensualismo dos seus desenhos: é a fascinação do feminino na correspondência geométrica e simbólica, vazada na morfologia de maior sabor clássico e ocidental. O que há de comum entre isto e a delicada sugestão sensual que se desnuda nas pinturas de Un Chi Iam? E que analogia é possível entre o "ilustrativismo" destas, tematicamente provocadas do exterior, e o "intimismo" de António Conceição Júnior, interioridade indagada que se projecta em paisagens (poentes? levantes?), manchas transparecentes de uma guerra serena: conquista da luz ou conquista da noite? E logo nos comove a candibilidade de Ung Wei Mei onde um lirismo claro, alegre, afectivo, se derrama em postais palpitantes de vida e vibráteis de cor, a lembrar um Delaunay em estaçao minhota.

Que geminaçao possível com as plúmbeas ambiências de Ana Leandro, exorcismo dos fantasmas da agressividade e dos autómatos da opressão? E o que pode aproximar o ousado espontaneismo gestual de Kwok Wun, a desferir-se em trepidações líquidas, em explosões e revoluções aquáticas, da serenidade castigada com que Victor Hugo Marreiros pacienta as manchas na luta da organização? E Carlos Marreiros, com a sua pintura arquitectónica (porque fulcral busca de solução dos espaços), servida por um neo-figurativismo denso que o cerebralismo organiza, na denúncia da mais poderosa capacidade conceptual? E a exuberante cenografia de Mio Pang Fei, animada da alma da grande pintura e inspirada pelos fôlegos das grandes expressões artísticas, partitura de sugestões, signos e ritmos para os olhos escutarem? Que identidade nesta colectiva? Que fio de unidade perpassa em tudo isto?

"Desenho", lápis, de José Catita.

"Honestidade de princípios", óleo sobre tela, de Kwok Wun - 1987.

"Paisagem Amarela", óleo sobre tela, Mio Pang Fei - 1987.

Um, primeiro: com algumas ausências, por certo, estão aqui convocados os pintores, actualmente no Território, que demonstram a percepção e a compreensão mais fundas de linguagem visual. Depois do caso singular de Luís Demée, eis que se confirma agora em Macau uma nova geração que reclama estatuto paritário com o que de mais actual se vai produzindo nos grandes centros internacionais. Num tempo em que a didáctica parece grandemente remetida à estética, esta colectiva assinala um momento, ou, mais do que isso, uma vocação interventora, interessante à informação e à formação cultural desta comunidade. Com maior atrevimento, diríamos que nesta participação colectiva, e com diversos graus de consciência individual, adolesce o embrião de uma vanguarda, surta das próprias entranhas do universo cultural que se propõe polarizar. É que, qualquer acto colectivo pressupõe (muitas vezes "nolens, volens") uma "organização" e uma proposta, sendo indiferente que elas sejam expressas ou virtuais. Daqui nasce a fronteira que marca a diferença fundamental entre iniciativas culturais em Macau e manifestações culturais de Macau. E são estas que merecem privi- légio, num tempo em que a entidade cultural macaense mais apela os factores universantes da sua identificação. Entre os puros extremos ocidental e oriental, nesta colectiva se centra um núcleo de artistas que operam na sua pintura o entrosamento das duas grandes tradições artísticas em presença, assim alargando pistas interessantes de continuidade. Num quadro conceptual ocidental, o gestualismo e as técnicas orientalistas resolvem o discurso do abstraccionismo expressionista ou impressionista, enquanto o teor neo-figurativo para as telas transporta os temas e os signos locais, não como significados mas já como significantes. É isto verificável na inserçao dos pictogramas da escrita chinesa, que da tradicional funcionalidade de legendas se autonomizam como elementos de expressão estética, numa calimorfia sígnica que timbra os trabalhos de Conceição Júnior e de Carlos Marreiros e é axial na orquestração de Mio Pang Fei. Nesta síntese, nesta univocidade dos discursos vários saudamos a versão renovada e futurante de um díalogo cultural de quatro séculos, imagem paradigmática de Macau. Não se trata aqui do provincianismo emocional que Eça humorava na "trouvaille" de que "Aveiro é a capital do aveirismo". É antes, ponderadamente, a sintonia com Almada, que da experiência soube que a "Arte não vive sem a Pátria do artista". Confiamos que, também por esta via, se alme a pequena Pátria macaense.

"Tábuas", óleo sobre tela, de Ung wai meng - 1987.

"Mane I", acrílico sobre teta, de Victor Marreiros - 1986.

"Alegria", tinta da China sobre papel de arroz, de Un Chi Iam - 1987.

desde a p. 105
até a p.