Macau Capital da Música

2 Acontecimentos musicais Marcos na vida cultural de Macau

Cardoso de Almeida*

    1o FESTIVAL INTERNACIONAL DE MÚSICA DE MACAU/87
    25o ANIVERSÁRIO DA ACADEMIA DE MÚSICA S. PIO X

A série de recitais comemorativos do 25o. Aniversário da Academia de Música S. Pio X. no período de 12 de Setembro a 22 de Novembro, e a realização do 1o. Festival Internacional de Música de Macau, de 24 a 31 de Outubro, constituiram dois marcos importantes na vida cultural do Território. Escrever sobre eles torna-se, consequentemente, uma tarefa ingrata, não porque não haja muito a acrescentar ao que já foi dito nos meios de comunicação social, mas, fundamentalmente, por que se sente sobre os ombros a responsabilidade de o fazer para uma revista de cultura a que, por norma, só deveriam ter acesso pessoas que se distinguem no campo das artes.

O tema é porém demasiado interessante para que se lhe posso fugir, propondo-me abordá-lo nos cinco seguintes pontos:

- As tradições musicais de Macau.

- A Academia de Música S. Pio X e as comemorações do 25o. Aniversário.

- O Instituto Cultural e as suas responsabilidades na área de formação e de divulgação da música clássica.

- O 1o. Festival Internacional de Música de Macau.

- Algumas considerações quanto ao futuro.

AS TRADIÇÕES MUSICAIS DE MACAU

Ao falar-se dos vários aspectos culturais de que se revestiu a presença portuguesa em Macau, é normal afirmar-se que a população do Território vive de costas voltadas para a música clássica.

Trata-se duma afirmação gratuita, infundamentada, mas de efeitos persuadíveis quase imediatos. Não estão os auditórios praticamente vazios quando se realizam concertos ou recitais? Não há nos meios de comunicação de massas um silêncio quase absoluto, antes, durante, e depois desses acontecimentos? Não se vive, no que respeita à Música, como numa situação de pré-história, pela quase total inexistência de uma documentação escrita sobre o que tem vindo o ser feito ao lonqo destes 400 anos?

Estas objecções não serão, em si, totalmente descabidas, mas o leitor compreenderá que não me posso permitir tomar uma igual atitude de espírito, embora nem as dimensões nem a finalidade deste artigo me possibilitem comprovar o empirismo que as caracteriza.

Contactei pela primeira vez Macau há cerca de 32 anos, e aqui permaneci durante quase 3 anos. O ambiente musical era então mais privado, mais discriminado e talvez mais rico. O carácter privado vinha-lhe da muito reduzida intervenção por parte do Governo. A protecção das actividades artísticas pertencia então aos beneméritos da época, uns mais voltados para os espectáculos de música oriental, outros para os de música ocidental. A discriminação vinha-lhe do facto de muitos desses espectáculos, por satisfazerem os interes-ses dos seus organizadores, se realizarem em casa dos próprios benfeitores e para os seus convidados, ou se destinarem aos sócios dos clubes então existentes. Espectáculos públicos eram poucos, mas geralmente bons. A iniciativa pertencia fundamentalmente à delegação de Macau do Ciclo Cultural de Música, fundado nos anos 50, a quem se não pode negar o mérito de ter trazido ao Território os mais famosos executantes de nível internacional. A população chinesa beneficiava ainda da presença inopinada de algumas companhias ambulantes de ópera e de dança que actuavam ao ar livre. A riqueza vinha-lhe do facto de ainda ser de "bom tom" as principais famílias proporcionarem aos filhos e filhas uma educação musical. Quase todas as casas importantes possuíam um piano, e muitos filhos da terra, quando se reuniam, podiam recrear-se com uma sessão de música de câmara. O ensino era-lhes ministrado através dos professores particulares, que sempre os houve em Macau. As impressões que então recolhi foi de que a cultura musical de Macau não só era idêntica à de qualquer das cidades de província de Portugal, como também parecia haver um certo paralelismo na aprendizagem e divulgação das músicas ocidental e oriental: os europeus, de acordo com o seu nível cultural, aprendiam, escutavam e gostavam da música ocidental; os chineses, aprendiam e gostavam da música do Oriente; os macaenses, embora com ouvido e gosto para ambas, orientavam as suas preferências, em cada família, pela consistência dos laços genealógicos e pelo grau de convivência que os mais cultos tinham com cada uma destas civiliza-ções.

30 anos depois, verifico ter havido uma evolução algo contraditória. Como pontos negativos, a "moda" afastou-se da música clássica e, consequentemente, alguns pianos e conhecimentos musicais desapareceram de muitas casas, e os benfeitores potenciais perderam o entusiasmo, talvez por acharem que os contratos de jogo e os impostos são agora mais pesados para as suas bolsas. Como pontos positivos, para além duma salutar intervenção do Governo em todos os assuntos da cultura, constatam-se: a criação de condições que permitem o acesso à Música de todas as classes sociais; os naturais reflexos que se fazem sentir do desenvolvimento cultural de Hong Kong; e o interesse da população chinesa pela música ocidental, infinitamente superior ao que se verificava em 1955. As tradições musicais de Macau, em conclusão, não parecem afastar-se muito das que se verificam actualmente em Portugal, acrescidas do aspecto positivo de uma maior integracão da população chinesa na aprendizagem e gosto pela música ocidental.

A ACADEMIA DE MÚSICA S. PIO X E AS COMEMORAÇÕES DO 25o. ANIVERSÁRIO

Se procurarmos identificar os principais responsáveis pela evolução verificada, e eles teriam forçosamente de existir, vamos encontrá-los no pequeno grupo que, há 25 anos, fundou a Academia de Música S. Pio X. Não vou citar os nomes, porque, apesar da modéstia e do colectivismo com que sempre se identificaram, todos os conhecemos, mas realçar o próposito que os orientou: "proporcionar à juventude de Macau, portuguesa e chinesa, uma formação musical estruturada em programas de escolas de música internacionalmente reconhecidas, com predominância nos programas do Conservatório Nacional de Lisboa".

Este pequeno grupo, de que o padre Áureo é o único sobrevivente, contando apenas com algum dinheiro emprestado pelo então Bispo de Macau para a compra dos três primeiros pianos, em 2ª. mão, abriu, a 2 de Outubro de 1962, as portas da Acamedia à juventude de Macau.

Movidos por uma decisão inquebrantável, com o indispensável apoio dos governadores e de beneméritos (já que sempre vingou a decisão de tornar o ensino praticamente grátis para os alunos), e com a força anímica que sempre se apossa dos que servem uma causa justa, e que os leva a remover todos os obstáculos, chegaram os responsáveis às comemorações do 25o. Aniversário da Academia de Música S. Pio X.

Conta hoje a instituição, para além do seu director de sempre, com 13 professores e o pessoal administrativo mínimo, os primeiros encarregados de ministrar a formação musical e os cursos de violino e piano a cerca de 120 alunos, e os segundos encarregados da administração e conservação da casa.

Na definição do termo "juventude de Macau', constante da declaração de propósitos, poderemos encontrar os segredos da longevidade e do êxito desta instituição. Englobando todos, embora beneficiando aqueles com menos posses, abriram o caminho que permite o acesso da juventude oriental à música do Ocidente.

O programa das comemorações do 25o. aniversário veio, curiosamente, pôr em destaque uma outra resolução. bem vincada nessa declaração: "com predominância nos programas do Conservatório Nacional", o mesmo é dizer, com relevo para a Música, compositores e artistas portugueses.

Afirmei na introdução que estas comemorações constituíam um marco na vida cultural de Macau. Errado seria porém vir a fazer qualquer comparação com o outro dos marcos apontados. O que dá ao primeiro o seu carácter relevante é o facto de se tratar do aniversário de uma escola de ensino da Música. Essa importância não teria sofrido a menor beliscadura se a festa se tivesse realizado em família, apenas com a prata da casa. Para o padre Áureo e sua equipa, os momentos mais gratificantes e comoventes devem-lhes ter sido proporcionados pelo reconhecimento público do trabalho realizado ao longo desses anos, traduzido no significado da condecoração com que, a 2 de Outubro, o Governador Carlos Melancia distinguiu a Academia de Música S. Pio X.

Qualquer festa de anos conta, para além dos familiares, com a presença sempre bem-vinda dos amigos. E esses amigos apareceram, uns vindos de Lisboa, como o Maestro Filipe de Sousa e os cantores Elsa Saque, Filomena Amaro, Femando Serafim e Oliveira Lopes; outros já residentes ou naturais de Macau, como o maestro Simão Barreto e os elementos da Orquestra de Câmara, do quarteto Camões e do Grupo Coral Polifónico; outros ainda, vindos de Hong Kong, como o Professor David Gwilt, a pianista Margaret Lynn, o Lugard Woodwind Quintet e o grupo de instrumentistas, alunos da faculdade de Música da Universidade Chinesa de Hong Kong; e até um outro, o professor Ronald Woodcock, veio da Austrália. Foram estes amigos, como artistas, e os presentes que cada um trazia no respectivo reportório, que deram às comemorações o brilho artístico que tiveram. Foram eles, os convidados, que acabaram por ofuscar, na opinião de muitos, o brilho do 1o. Festival lnternacional de Música. Porém, é bom que se volte a frisar o marco na vida cultural de Macau permaneceu imutável: a comemoração dos 25 anos de uma brilhante instituição do ensino da Música.

A presença dum núcleo tão numeroso e valoroso possibilitou que, ao longo de 2 meses, tivesse havido lugar para 18 reuniões diferentes, divididas por 15 recitais de música (4 dos quais por professores e alunos da Academia), 1 sessão fonográfica, 1 exposição de manuscritos e edições musicais e 1 Missa de graças. Seria assim impossível não concluir este segundo ponto sem referir alguns dos convidados e as valiosas prendas que ofereceram não só aos aniversariantes, mas também ao público melómano e ao património cultural de Macau.

Através da execução das partituras que trouxeram consigo, tivemos oportunidade de ouvir uma percentagem significativa de obras de compositores portugueses, mais concretamente, de Filipe de Sousa, Padre Áureo de Castro, Cláudio Carneiro, Frederico de Freitas, Artur Santos, Luís de Freitas Branco, Femando Lopes Graça, J. Croner de Vasconcelos e Simão Barreto, indicados na ordem pela qual as composições da sua autoria foram sendo apresentadas. Quiseram ainda os maestros e artistas presentes valorizar as comemorações com a estreia mundial de algumas dessas composições. Refiro-me aos "10 novos sonetos de Camões", de Lopes Graça, às "3 canções de remadores", de Filipe de Sousa, e aos 2 cantos ("Viola chinesa" e "Ao longe os barcos de flores") da Clepsidra, de Simão Barreto. Dada a raridade, mesmo em Portugal, de 1as audições num tão curto espaço de tempo, esta prenda de anos constituiu, por si só, um acontecimento muito especial, pelo que respeita ao enriquecimento do património cultural nacional e pelo que representa na ligação do nome de Macau à vida de tais produções artísticas.

Quanto aos demais presentes oferecidos, destacam-se os recitais dos dias 22 e 30 de Setembro, totalmente preenchidos com música portuguesa dum significado muito especial. O 1o. foi dedicado, quase em exclusivo, a obras inspiradas em sonetos de Camões; o 2o. também na quase totalidade, a obras inspiradas na Clepsidra, de Camilo Pessanha. Tratando-se de dois poetas a cujas vidas e obras Macau se encontra ligado, quiseram os artistas estender, desta forma, as suas homenagens à população do Território. Um gesto bonito, sem dúvida, em que o poeta Couto Viana colaborou, no recital do dia 30, com algumas palavras de introdução, inspiradas na tríade Pessanha - Macau - Clepsidra.

Quanto aos convidados, e embora todos sejam dignos de uma referência muito especial, terei que me restringir aos dois compositores presentes. A Filipe de Sousa, porque foi ele quem conseguiu a participação dos 4 cantores e coordenou os respectivos programas de actuação; foi o emprestador ao ICM dos manuscritos e edições musicais, alguns de valor inestimável, para a realização da exposição; foi o acompanhante ao piano de todos os recitais de canto; foi o orientador da sessão fonográfica (neste ponto, deve-se acrescentar Carlos Seixas à lista dos compositores portugueses ouvidos): e, porque se trata de um dos nossos melhores compositores, foi o autor de algumas das partituras ouuidas, entre as quais as "3 canções de remadores", recolhida do folclore açoreano do século 18, no caso presente da Ilha do Pico. Ouvi-las é ter-se a sensação incontestável da riqueza do folclore nacional e do génio artístico deste compositor.

Quanto ao Maestro Simão Barreto, também ele um homem de sete ofícios, como executante da viola no Quarteto Camões, director e intérpete do conjunto que se intitulou de "instrumentalistas da orquestra de Câmara do ICM", director do Grupo Coral Polifónico de Macau, e colaborador na montagem da exposição de manuscritos e edicões musicais na Biblioteca do Leal Senado, fica o património cultural de Macau devedor das duas obras importantes para canto, declamação e grupo instrumental, inspiradas na Clepsidra de Camilo Pessanha. Mas da sua autoria foi também a "Sequência Thei", uma orquestração de canções tradicionais de Timor para soprano e grupo orquestral que Macau ouviu pela 1ª vez, no recital de 30 de Setembro.

Um convidado houve que primou pela ausência: o público de Macau. É porém precipitado estar a tirar do facto quaisquer conclusões, a não ser a de que também essa parte negativa em nada veio afectar o marco que o 25°. aniversário da Academia de Música S. Pio X representa na vida cultural do Território. Estou certo que é um marco que se vai repetir, muito para além dos 50 anos de regime especial na administração de Macau.

O INSTITUTO CULTURAL DE MACAU E AS SUAS RESPONSABILIDADES NA ÁREA DE FORMAÇÃO E DIVULGAÇÃO DA MÚSICA CLÁSSICA

Comecei por me referir às tradições musicais de Macau, para, por esse caminho, realçar a importância que a Academia de Música S. Pio X tem tido na evolução artística da população do Território. Nesse ângulo de abordagem, o Instituto Cultural de Macau, criado em 1982, aparece como o segundo grande responsável pelos progressos havidos. Ainda que com uma vida curta, já realizou uma obra importante no campo da música clássica.

Na área da "formação musical", para além do apoio financeiro que, por seu intermédio, tem vindo a ser dado às actividades do ensino, tem vindo o ICM a chamar a si o encargo de ministrar parte desse ensino. São de referir os cursos de instrumentos chineses, iniciados em 1985 e com uma frequência de 190 alunos no ano lectivo em curso (número que merece a ponderação daqueles que põem em causa a vocação e a preparação musical da juventude de Macau).

Na área da "divulgação musical", e desde a sua criação, contratou muitos artistas de renome para actuar em Macau, e muitos outros figurarão certamente no planeamento das actividades futuras. Por outro lado, o ICM já dispõe de orquestra de Câmara, orquestra de instrumentos chineses, e apoia o quarteto de cordas "Camões", o grupo Coral Polifónico, e muitos outros agrupamentos locais que se exibem regularmente nos concertos oferecidos à população de Macau.

O ICM não se pode assim dissociar dos 2 marcos que assinalaram a actividade cultural do último quadrimestre de 1987. Ao primeiro ligam-no o apoio que presta à divulgação da Música; ao 2o. ainda que a direcção deste acontecimento tenha sido assumida, pessoalmente e através do seu gabinete, pelo então governador Pinto Machado, ligam-no todo o trabalho já produzido e que contribuiu para a criação de condições favoráveis à realização deste festival.

O 1°. FESTIVAL INTERNACIONAL DE MÚSICA DE MACAU E OS SEUS RESULTADOS

O 1°. Festival Internacional de Música de Macau, quer se tenha gostado, quer não, constituiu um outro marco na vida cultural do território no último quadrimestre de 1987.

Como o nome que lhe foi dado dá a entender, homenageou-se oficialmente, pela primeira vez, a MÚSICA, considerada nas suas três componentes: compositores, obras e intérpetes. Se mais alguma vez se vier a realizar outro festival, e espero que sim, ter-se-à que lhe dar a numeração de 2°. ou alterar-lhe o nome, se houver o desejo de minimizar o valor do agora realizado.

Confesso que a designação de "Internacional" me parece despropositada. Como a Música, em si mesma, não tem Pátria nem Língua, poderá a aplicação do termo fazer supor que a organização do festival ultrapassou os limites nacionais, tendo Macau sido escolhido para ponto de encontro. Julgo não ter sido esse o caso, pelo que, à semelhança do que se faz lá fora, se deveria ter chamado apenas de "Festival de Música de Macau". O objectivo teria continuado inalterável - Homenagem à Música - e não insinuaria que precisámos dos outros para o realizar.

No 1°. Festival homenagearam-se os músicos, através de 25 compositores: Jolly Braga Santos, Ravel, Dvorak, Ho Zhan-huo e Chong Gong, Rossini, Mozart, Finzi, Tchaikovsky, Schubert, Schumann, Scriabine, Beethoven, Verdi, J. Strauss Jr., Bizet, Puccini, Mascagni, Bellini, Händel, Vivaldi, Mendelsshon, J. S. Bach e Pergolesi. Executaram-se 40 composições, integrais ou extractos, excluindo deste número as peças de ocasião com que os artistas geralmente agradecem os aplausos do público. Diversificaram-se pelas formas da Abertura, Concerto, Música de Câmara, Ópera, Cantata e Oratório. Participaram na execução destas composições 10 artistas de 1°. plano, 1 orquestra sinfónica e 1 agrupamento de câmara: de Portugal, os pianistas Adriano Jordão e Pedro Burmester e o maestro Silva Pereira; da R.P.C., o violinista Kung Zhao-Hui, o maestro Yuan Fang e a Orquestra Sinfónica da Radiodifusão; da Roménia, a soprano lleana Cotrubas; da Itália, ameio-soprano Lucia Valentini-Terrani; da Holanda, o barítono Max Van Egmond; da Áustria, a pianista Ingrid Haebler; da Alemanha, o violoncelista Peter Dauelsberg; e, da Inglaterra, o conjunto de câmara Goldberg, dirigido por Malcolm Lavfield. Teria sido, efectivamente, um bom festival internacional de Música, se os artistas referidos tivessem vindo em representação dos respectivos países. Como "Festival de Música de Macau", constituiu um Marco: a música teve a homenagem que lhe é devida e de cuja difusão Macau se deve orgulhar.

Podem-se tecer críticas sobre se os compositores apresentados não deveriam incluir mais portugueses, se a selecção das músicas não deveria ter sido orientada pela preocupação de dar a conhecer ao mundo as obras-primas do nosso património cultural, ou sobre se não deveria ter havido uma maior representação de artistas nacionais, já que os há em quantidade suficiente para participar num festival de nível artístico elevado. Podem-se fazer muitas mais críticas, não exactamente musicais, quer sobre a oportunidade e as finalidades que foram apontadas pela organização quando da apresentação ao público; quer sobre a distribuição de tarefas, na fase preparatória; quer sobre o carácter discriminatório de alguns dos concertos; quer, inclusivamente, sobre o valor do festival, apreciado segundo o binómio custo-eficácia. Qualquer destes reparos, que já fez correr alguma tinta, merecia e poderia ser objecto de um estudo mais aprofundado, mas julgo não estar nas condições mais indicadas para o fazer, nem ser esta revista o local mais apropriado para o efeito. Porque se trata dum ataque à cultura, nao posso porém deixar de criticar aqueles que argumentaram que os milhões de patacas gastos no festival teriam tido uma melhor aplicação no apoio aos pobres. Acho sempre discutível a exclusividade que se pretenda dar à alimentação do corpo, em detrimento da alimentação do espírito. O ideal seria dispor-se do dinheiro suficiente para saciar as duas partes, mas, quando tal não é possível, torna-se sempre necessário estabelecer um orçamento que contemple ambas. O que se pode e deve discutir, com o argumento de fazer parte da sua missão e tratar-se dum organismo constituído com gente que trabalha no Território e que conhece as exigências e os gostos da população de Macau, é se o orçamento não teria tido melhor aproveitamento se o ICM tivesse ficado encarregado da realização do festival.

Acho porém que a análise final, qualquer que sejam as conclusões a que chegue, deve ser uma tarefa para os responsáveis que o prepararam e que o executaram, com a finalidade de colher ensinamentos para o futuro.

O fundamental é que ninguém se aproveite das faltas que possam ter sido cometidas para procurar minimizar o marco que o festival representa. Com muitos ou poucos erros, constituiu uma homenagem à Música, como a mais bela das artes humanas.

Quanto ao mais, até Deus escreve direito por linhas tortas.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES QUANTO AO FUTURO

O 25° Aniversário da Academia de Música S. Pio X passou a constituir um ponto de referência no difícil caminho de ensinar a Música aos que gostam desta arte. Apontando para o futuro, torna-se agora necessário que sejam materializados os projectos já anunciados para a criação dum Conservatório em Macau, não só porque a Academia está nos limites da sua capacidade de admissão, mas também porque o complexo ensino da Música abrange muitas áreas a que aquela instituição se não tem podido dedicar.

Em Portugal, tem-se vindo ultimamente a encarar seriamente a integração das artes (música, teatro e dança) no ensino académico. Presentemente, os jovens que entram no ensino geral aprendem os rudimentos da música e a tocar um instrumento. Os que chegam ao ensino secundário vocacional têm a possibilidade de optar por uma área orientada para as artes, com mais horas para a aprendizagem da Música ou da Dança. Na final do 12°. ano ficam com uma habilitação igual ao curso geral do antigo Conservatório. Os que transitam para o ensino superior politécnico, frequentam, durante 3 anos, a Escola Superior de Música ou o curso de Ciências Musicais da Faculdade de Ciências, recebendo uma formação superior artística equivalente ao bacharelato. Para se ter uma ideia da diversidade de especializações que a Música abarca, referirei que, na área dos instrumentos, o aluno pode seleccionar a aprendizagem de um ou dois instrumentos ocidentais, entre cerca de 20. No caso de Macau, o número de instrumentos de música chinesa é sensivelmente igual, o que elevará o total para cerca de 40.

No que se refere ao ensino da Música em Macau, além dos primeiros passos que já se começaram a dar no ensino preparatório, só a Academia de Música S. Pio X permite uma formação geral, correspondente ao curso geral do Conservatório, orientada, como já referido, para o violino e para o piano.

Há ainda muito para fazer até que esteja montado um sistema de ensino que contemple as aspirações dos jovens que desejam profissionalizar-se nos campos da música instrumental, vocal, composição, educação musical e ciências musicais. A projectada criação do Conservatório de Macau será um passo decisivo para se atingir essa meta.

Quanto às previsões do futuro dos Festivais de Música, são tão difíceis e falíveis como as que se fazem para um recém-nascido de uma mãe que muitos consideram ser ainda uma criança. Poder-se-à acusar a mãe de lhe ter dado vida quando ainda não estaria física e psicologicamente preparada para tal; mas a criança nasceu, existe, e é nela que se deve pensar. Vai ser sempre difícil organizar um Festival de Música com capacidade para fazer convergir ao Território os interesses da comunidade internacional, nos tempos em que os artistas de primeira grandeza aparecem em todos os palcos e podem ser vistos por todos os melómanos, em directo ou pela televisão. O último espectáculo deste 1°. festival, transmitido pelas cadeias de televisão de 10 países, é um bom exemplo de que não é preciso sair-se de casa para se ver um bom concerto.

Poder-se-à tentar, por exemplo, transformá-lo num festival competitivo, com júri, prémios e divulgação que sirvam de incentivo para os músicos e artistas virem tentar a sorte das suas novas produções. Julgo porém que tal solução continuaria a ter resultados duvidosos, dado o natural gosto do público pelas obras que já conhece bem. Teria também a agravante de se perder muita da beleza da homenagem à Música, como arte, dado o seu carácter competitivo.

Poder-se-à tentar também a solução de, aproveitado o nome de "Internacional", que já tem, obter a colaboração dos outros países e tranformá-lo realmente num encontro de amigos, com o fim de homenagear a Música e, porque não, de apoiar a UNICEF, como também se fez no recital de encerramente do 1°. festival. Uma maior cobertura televisiva pode bem vir a pagar as despesas que um festival desses comporta para os seus organizadores.

Julgo porém que a melhor solução será a de manter o actual esquema, com as necessárias rectificações, criando-se na população de Macau a sã mentalidade de que se trata de um acontecimento cultural, um alimento para o espírito, sem fins lucrativos, cujos prejuízos devem ser cobertos pelo erário público.

O importante no futuro, se se pretende realmente chamar a atenção e o respeito da comunidade interncional, será sempre conseguir-se que a divulgação e o gosto pela Música se venham a tomar, cada vez mais, numa das características das gentes de Macau.

*Crítico musical; Coordenador da instalação do futuro Conservatório de Macau:

desde a p. 128
até a p.