NO MAUSOLÉU DE MAO
Na Praça maior do mundo,
Num silêncio profundo,
A multidão
(O corpo coleante de um dragão)
Desfila em fila reverente
(Quatro de frente, em frente)
Até ao templo-mausoléu
Que se abre como um céu.
Lá dentro, a eternidade a espera
Com face mítica de cera.
É a China que chega de milénios,
Sacral de antigos deuses e de génios,
A inclinar o passado
Perante o novo deus do povo renovado.
Depois, num passo lento mas seguro,
Parte para o futuro.
(2.8.1987)
NO BARCO DE MÁRMORE DO PALÁCIO DE VERÃO
A última imperatriz da dinastia Ching,
Ao ver, de alta varanda, o lago adormecido,
Mandou que nenhum remo enrugasse o cetim
Que em noites de luar sonhava pra vestido.
E ao debruçar, depois, a palidez da face
Na água azul parada, vendo-a como flutua,
Mandou que nenhum leme, sulcando, estilhaçasse
O espelho onde, gentil, se reflectia a Lua.
E mandou construir um barco-pavilhão
De mármore embutido e plácido aparato,
Para afagar, subtil, com a palma da mão,
Esse tecido liso e esse espelho intacto.
Hoje, o barco ali está, frio e belo, na margem:
Um capricho imperial para espanto do mundo.
- Ah, se eu nele pudesse inventar a viagem;
Navegar, triunfal, os lodos do meu fundo!
(3.8.1987)
llustração de Un Chi lam © copynght 1988
NA GRANDE MURALHA
Esta coroa imperial a coroar as montanhas
Enobrecem-na séculos de aprumo militar.
Que arrogâncias de torres em distâncias tamanhas!
São visíveis da Lua, se as patrulha o luar.
(4.8.1987)
llustração de Un Chi Iam © copyright 1988
NA CIDADE PROIBIDA
Relógio que marcaste o tempo condenado,
Nos ponteiros que o medo parou no mostrador:
Soa a hora do sonho! Faz pulsar o passado
Nas veias do imperador!
Longas escadarias para brancos espaços,
Guardadas por leões que doiram o furor:
Não ouvis um rumor, um murmúrio de passos?
Vai subir o imperador!
Ó palácio vermelho com o telhado agudo,
Tectos onde o pincel enlouqueceu de cor:
Acolhei em silêncio (todo o espanto é mudo)
A sombra do imperador!
Ó trono rendilhado, de esfiados coxins,
Ergue-te nos salões de puído explendor,
Entre espectros curvados de nobres mandarins:
Vai sentar-se o imperador!
Severas teorias de bonzos e de sábios
(Na lividez do câneo as rugas do rigor),
Calai preces, sentenças, no enigma dos lábios:
Vai falar o imperador!
Mesa de onde adejava uma fina fragrância
Das leves iguarias de doçura e ardor,
No ritual do chá, abre as mãos da abundância:
Vai comer o imperador!
Pátio das diversões sensuais, musicais
(Árias bárbaras de ópera, sumptuárias do cantor),
Estala de trovões, estruge de metais:
Vai ouvir-te o imperador!
Ninbo de sedas onde, em leito de prazer,
A hábil imperatriz imitava o amor,
Abre-te em corpo nu e langue de mulher:
Vai deitar-se o imperador!
(Poço onde o Buda Velho lançou a concubina,
Ó fétida goela que apodreceste a flor,
Cerra as fauces brutais! Não se repita a sina:
Não ame o imperador!)
Turista ocidental com teu trajo bizarro,
De camara insolente prá cidade em redor:
Não vergas os joelhos e apagas o cigarro,
Ao veres o imperador?
(14.8.1987)
NO VELHO OBSERVATÓRIO
No terraço entre estranhos instrumentos,
Uma esfera armilar,
Símbolo exacto dos Descobrimentos,
Dá-me saudades de um passado mar.
E recorda-me aquela que um anjo ergue na mão,
No brasão de Macau, em S. Paulo do Monte,
E o sábio missionário que veio desse chão
Desvendar este céu, este horizonte.
Vejo-o aqui compondo com rigor
O seu Tratado de Constelações,
Sob estrelas de límpido fulgor
Que lhe recebem o olhar e as orações.
E vejo-o desdobrar o Mapa-Mundo,
Onde implantou, no meio, o Império do Meio,
Para o orgulho chinês, imperativo e fecundo,
Lhe ouvir a voz da fé, sem ódio nem receio.
- Graças, bom Padre Mateus Ricci, que vieste
Dos estudos de Coimbra e Goa,
Servindo o Reino do Mar do Oeste,
Servir a Deus que a alma te abençoa!
E a ti, esfera armilar, graças por este
Instante português e esta loa!
(15.8.1987)
NO TÚMULO IMPERIAL DE DING LING
Quando a terra que envolve o túmulo silente
Comunga a Primavera plo sangue da raiz,
Tornam-se os tronos frente a frente
E as sombras do imperador e de cada imperatriz
Vão sentar-se e olhar-se longamente...
(17.8.1987)

Ilustração de Ung Wai meng © copyright 1988
ACROBATAS
Os pequenos demónios acrobáticos
Nascem febris da imaginação
E desenham no espaço, com seus corpos elásticos
No delírio das linhas, beleza e precisão.
Subitamente, quedam estáticos
Em cima de uma esfera, de uma flor, de uma mão!
(20.8.1987)
NA AVENIDA DOS ANIMAIS
Ao ver este elefante, como um deus repousado,
Vivo a imagem do outro, vivo e ajoelhado,
Aos pés do Santo Padre Leão,
Em piedosa genuflexão,
Deixando o mundo cristão
Comovido e assombrado.
Seguira majestoso na embaixada
Que o rei mais Venturoso de Quinhentos,
Que dominava os quatro ventos
E fez do mar o trono e a estrada,
Com filiais cumprimentos,
Mandou à Roma sagrada.
E o génio de um pintor, ao vê-lo,
(Chamava-se ele Rafael),
Molhou nas tintas o pincel
E deu-lhe as honras de modelo,
Unindo assim o fel e o mel,
O bárbaro e o belo.
(O português no Oriente
Encontra sempre sugestões, sinais,
Da história da sua gente:
Até numa Avenida de Animais!)
(17.8.87)

Ilustração de Ung Wai meng © copyright 1988
NO SANTUÁRIO DO BUDA RECLINADO
Entardece. Há já sombras na alameda
Que leva ao Santuário.
Caminho de silêncio, solitário.
O vento é um fino roçagar de seda.
Os dois guardas (ou deuses?) da entrada
Paralizam o esgar
Na boca convulsiva e na órbita irada,
E o gesto violento (elegante) no ar.
Que representam? O Bem? O Mal?
Mais silêncio. Mais sombras. Mal avanço. Mal vejo.
Passo por eles cerimonial
Como passa um cortejo.
No leito de um altar, ao fundo, ao fim,
Xáquia-Muni reclina o corpo enorme.
Olhos fechados. Chego tarde. Dorme.
Mas sorri para mim.
(19.8.1987)
NO TEMPLO DO CÉU
Onde os imperadores das dinastias Ming e Ching imploravam a abundância das colheitas.
Venho implorar do meu cantar maninho,
Que teve outrora a festa da colheita,
Quando no altar da alma insatisfeita
Celebrei com meu pão e com meu vinho,
Que a espada do arado dos sentidos
Rasgue no seio gasto desse chão
Os sulcos da fecunda inspiração
Onde semeio o sonho e o verbo unidos.
Venho implorar ao deus dos horizontes
Que, verde de pomares, fresco de fontes,
Me expanda em frutos novos e diversos.
Venho implorar, no Inverno que me esfria,
Uma colheita mais de Poesia,
Em vez de versos, versos, versos, versos...
(21.8.1987)
desde a p. 61
até a p.