Linguística

Mapa de Pequim desdobrável no coração
10 poemas de António Manuel Couto Viana

NO MAUSOLÉU DE MAO

    Na Praça maior do mundo, 
    Num silêncio profundo, 
    A multidão
    (O corpo coleante de um dragão)
    Desfila em fila reverente
    (Quatro de frente, em frente)
    Até ao templo-mausoléu
    Que se abre como um céu. 
    Lá dentro, a eternidade a espera
    Com face mítica de cera. 
    É a China que chega de milénios, 
    Sacral de antigos deuses e de génios, 
    A inclinar o passado 
    Perante o novo deus do povo renovado. 
    Depois, num passo lento mas seguro, 
    Parte para o futuro. 
    (2.8.1987)

NO BARCO DE MÁRMORE DO PALÁCIO DE VERÃO

    A última imperatriz da dinastia Ching, 
    Ao ver, de alta varanda, o lago adormecido, 
    Mandou que nenhum remo enrugasse o cetim 
    Que em noites de luar sonhava pra vestido. 
    
    E ao debruçar, depois, a palidez da face
    Na água azul parada, vendo-a como flutua, 
    Mandou que nenhum leme, sulcando, estilhaçasse
    O espelho onde, gentil, se reflectia a Lua. 
    
    E mandou construir um barco-pavilhão 
    De mármore embutido e plácido aparato, 
    Para afagar, subtil, com a palma da mão, 
    Esse tecido liso e esse espelho intacto. 
    
    Hoje, o barco ali está, frio e belo, na margem: 
    Um capricho imperial para espanto do mundo. 
    - Ah, se eu nele pudesse inventar a viagem; 
    Navegar, triunfal, os lodos do meu fundo! 
    (3.8.1987)
llustração de Un Chi lam © copynght 1988

NA GRANDE MURALHA

    Esta coroa imperial a coroar as montanhas
    Enobrecem-na séculos de aprumo militar. 
    Que arrogâncias de torres em distâncias tamanhas! 
    São visíveis da Lua, se as patrulha o luar. 
    (4.8.1987)
llustração de Un Chi Iam © copyright 1988

NA CIDADE PROIBIDA

    Relógio que marcaste o tempo condenado, 
    Nos ponteiros que o medo parou no mostrador: 
    Soa a hora do sonho! Faz pulsar o passado
    Nas veias do imperador! 
    
    Longas escadarias para brancos espaços, 
    Guardadas por leões que doiram o furor: 
    Não ouvis um rumor, um murmúrio de passos? 
    Vai subir o imperador! 
    
    Ó palácio vermelho com o telhado agudo, 
    Tectos onde o pincel enlouqueceu de cor: 
    Acolhei em silêncio (todo o espanto é mudo)
    A sombra do imperador! 
    
    Ó trono rendilhado, de esfiados coxins, 
    Ergue-te nos salões de puído explendor, 
    Entre espectros curvados de nobres mandarins: 
    Vai sentar-se o imperador! 
    
    Severas teorias de bonzos e de sábios
    (Na lividez do câneo as rugas do rigor), 
    Calai preces, sentenças, no enigma dos lábios: 
    Vai falar o imperador! 
    
    Mesa de onde adejava uma fina fragrância
    Das leves iguarias de doçura e ardor, 
    No ritual do chá, abre as mãos da abundância: 
    Vai comer o imperador! 
    
    Pátio das diversões sensuais, musicais
    (Árias bárbaras de ópera, sumptuárias do cantor), 
    Estala de trovões, estruge de metais: 
    Vai ouvir-te o imperador! 
    
    Ninbo de sedas onde, em leito de prazer, 
    A hábil imperatriz imitava o amor, 
    Abre-te em corpo nu e langue de mulher: 
    Vai deitar-se o imperador! 
    
    (Poço onde o Buda Velho lançou a concubina, 
    Ó fétida goela que apodreceste a flor, 
    Cerra as fauces brutais! Não se repita a sina: 
    Não ame o imperador!)
    
    Turista ocidental com teu trajo bizarro, 
    De camara insolente prá cidade em redor: 
    Não vergas os joelhos e apagas o cigarro, 
    Ao veres o imperador? 
    (14.8.1987)

NO VELHO OBSERVATÓRIO

    No terraço entre estranhos instrumentos, 
    Uma esfera armilar, 
    Símbolo exacto dos Descobrimentos, 
    Dá-me saudades de um passado mar. 
    
    E recorda-me aquela que um anjo ergue na mão, 
    No brasão de Macau, em S. Paulo do Monte, 
    E o sábio missionário que veio desse chão 
    Desvendar este céu, este horizonte. 
    
    Vejo-o aqui compondo com rigor
    O seu Tratado de Constelações, 
    Sob estrelas de límpido fulgor
    Que lhe recebem o olhar e as orações. 
    
    E vejo-o desdobrar o Mapa-Mundo, 
    Onde implantou, no meio, o Império do Meio, 
    Para o orgulho chinês, imperativo e fecundo, 
    Lhe ouvir a voz da fé, sem ódio nem receio. 
    
    - Graças, bom Padre Mateus Ricci, que vieste 
    Dos estudos de Coimbra e Goa, 
    Servindo o Reino do Mar do Oeste, 
    Servir a Deus que a alma te abençoa!     
    E a ti, esfera armilar, graças por este 
    Instante português e esta loa! 
    (15.8.1987)

NO TÚMULO IMPERIAL DE DING LING

    Quando a terra que envolve o túmulo silente
    Comunga a Primavera plo sangue da raiz, 
    Tornam-se os tronos frente a frente 
    E as sombras do imperador e de cada imperatriz 
    Vão sentar-se e olhar-se longamente... 
    (17.8.1987)

Ilustração de Ung Wai meng © copyright 1988

ACROBATAS

    Os pequenos demónios acrobáticos
    Nascem febris da imaginação
    E desenham no espaço, com seus corpos elásticos
    No delírio das linhas, beleza e precisão. 
    Subitamente, quedam estáticos
    Em cima de uma esfera, de uma flor, de uma mão! 
    (20.8.1987)

NA AVENIDA DOS ANIMAIS

    Ao ver este elefante, como um deus repousado, 
    Vivo a imagem do outro, vivo e ajoelhado, 
    Aos pés do Santo Padre Leão, 
    Em piedosa genuflexão, 
    Deixando o mundo cristão 
    Comovido e assombrado. 
    
    Seguira majestoso na embaixada
    Que o rei mais Venturoso de Quinhentos, 
    Que dominava os quatro ventos
    E fez do mar o trono e a estrada, 
    Com filiais cumprimentos, 
    Mandou à Roma sagrada. 
    
    E o génio de um pintor, ao vê-lo, 
    (Chamava-se ele Rafael), 
    Molhou nas tintas o pincel 
    E deu-lhe as honras de modelo, 
    Unindo assim o fel e o mel, 
    O bárbaro e o belo. 
    
    (O português no Oriente 
    Encontra sempre sugestões, sinais, 
    Da história da sua gente: 
    Até numa Avenida de Animais!)
    (17.8.87)

Ilustração de Ung Wai meng © copyright 1988

NO SANTUÁRIO DO BUDA RECLINADO

    Entardece. Há já sombras na alameda 
    Que leva ao Santuário. 
    Caminho de silêncio, solitário. 
    O vento é um fino roçagar de seda. 
    
    Os dois guardas (ou deuses?) da entrada 
    Paralizam o esgar
    Na boca convulsiva e na órbita irada, 
    E o gesto violento (elegante) no ar. 
    
    Que representam? O Bem? O Mal? 
    Mais silêncio. Mais sombras. Mal avanço. Mal vejo. 
    Passo por eles cerimonial
    Como passa um cortejo. 
    
    No leito de um altar, ao fundo, ao fim, 
    Xáquia-Muni reclina o corpo enorme. 
    Olhos fechados. Chego tarde. Dorme. 
    Mas sorri para mim. 
    (19.8.1987)

NO TEMPLO DO CÉU

Onde os imperadores das dinastias Ming e Ching imploravam a abundância das colheitas.

    Venho implorar do meu cantar maninho, 
    Que teve outrora a festa da colheita, 
    Quando no altar da alma insatisfeita 
    Celebrei com meu pão e com meu vinho, 
    
    Que a espada do arado dos sentidos 
    Rasgue no seio gasto desse chão 
    Os sulcos da fecunda inspiração 
    Onde semeio o sonho e o verbo unidos. 
    
    Venho implorar ao deus dos horizontes 
    Que, verde de pomares, fresco de fontes, 
    Me expanda em frutos novos e diversos. 
    
    Venho implorar, no Inverno que me esfria, 
    Uma colheita mais de Poesia, 
    Em vez de versos, versos, versos, versos... 
    (21.8.1987)
desde a p. 61
até a p.