Artes

DEZ GRANDES MESTRES DA PINTURA CHINESA

António Conceição Júnior *

Em contraponto ao Ciclo dos Últimos Cem Anos de Pintura Portuguesa, concluído há meses, o Leal Senado, através do Museu Luís de Camões, apresentou, em conjunto com a Galeria Nacional de Arte da China - Pequim, esta exposição dedicada aos 10 maiores mestres da Pintura Chinesa dos Últimos Cem Anos.

É a primeira vez que uma exposição desta importância e qualidade é apresentada fora da República Popular da China o que constitui, para o Leal Senado e Museu Luís de Camões, natural satisfação.

Os Últimos Cem Anos da História da China foram marcados pela queda da Dinastia Manchu dos Qing, pela implantação da República, pelo início das reformas ao sistema feudal, por um maior contacto com o Ocidente e, finalmente, pela implantação da República Popular da China.

"O lódão vermelho",1961, (138,3x69,1) - Pan Tianshou (1897-1979)

Se no exemplo português foi possível criar um Ciclo de Exposições que abordaram, de um modo mais ou menos compartimentado, os diversos períodos que aconteceram na Pintura Portuguesa, tal não é possível repetir no caso chinês porque toda a evolução se processou de maneira diferente.

De facto, a queda dos Manchus e a implantação da República na China originaram ventos reformistas que se estenderam também ao domínio das artes, onde artistas mais progressistas condenavam a pintura tradicional, a cópia repetida de velhos mestres que retirava a criatividade que se desejava acompanhasse a nova ordem.

Muitos destes artistas contestatários procuravam nas Academias Ocidentais novas teorias e formulações estéticas que pudessem propiciar ao surgimento de um movimen-to renovador da sua pintura.

Assim, os últimos Cem Anos da História da Pintura na China caracterizam-se por um confronto entre os tradicionalistas e os reformistas.

Contudo a questão do reformismo na pintura chinesa, em confronto com países a Ocidente, data dos Han (200 A. C. - 221 D. C.), através da introdução do Budismo na China proveniente da Índia. O seu enraízamento em solo chinês exerceu grande influência na arte e na cultura. Porém, com a passagem do tempo, essa metafísica expressa em imagens e cores foi absorvida e dissolvida na corrente da cultura chinesa, a sua singularidade e origem esquecidas,

. "Os lódãos no vaso", 1934 (107,5x50,8) - Zhang Daquiam (l899-1983)

Durante o reinado do Imperador Wan Li dos Ming (1573-1620), o jesuíta Mateus Ricci levou consigo para a China pinturas religiosas que despertaram o interesse de alguns artistas chineses desse tempo. De entre aqueles que conseguiram, com êxito, combinar as técnicas e o olhar ocidental com o estilo chinês, importa destacar Ceng Ting, de Fujian, que criou uma escola realista de retrato. O estilo, que teve os seus seguidores, persistiu até ao período inicial da dinastia Qing, nas pinturas de Man Guoli (1672-1736), e Ding Yuntai, que ficaram conhecidos pelo recurso à metodologia ocidental com técnica chinesa para a pintura de retratos e objectos à maneira naturalista. Contudo, o impacto da pin-tura ocidental foi mínimo até aos finais da dinastia Qing, apesar da nomeação de outro jesuíta, Giuseppe Castiglione, para pintor da corte do Imperador Kangxi. Castiglione seria forçado a incorporar elementos tradicionais chineses nos seus óleos.

Wu Li, um dos seis maiores pintores chineses do período inicial dos Qing, convertido ao catolicismo e mais tarde sacerdote jesuíta e, como tal, possuidor de suficientes conhecimentos sobre a pintura ocidental escreveria:

"A semelhança formal não é objectivo da minha pintura que não está presa a regras formais. Só assim pode transmitir a atmosfera que quero dar. Eles (os pintores ocidentais) dedicam os seus esforços a convenções como luz e sombra, direcção do olhar e semelhança formal...".

Esta desaprovação formal da maneira ocidental era partilhada pela maior parte dos artistas da época, além de que a pintura era dominada pelos artistas mais ortodoxos que defendiam a cópia dos grandes mestres da antiguidade como a única fórmula legítima de aprendizagem.

Com a proibição, pelo Imperador Qian Long, das religiões estrangeiras, surge consequentemente um corte nas relações culturais com o Ocidente, que só viriam a ser ser retomadas mais tarde.

Mas esta nova emergência da cultura Ocidental não resultou do interesse meramente filosófico, mas sim face às circunstâncias sócio-políticas do período final da monarquia chinesa. A re-introduçâo da arte ocidental nos princípios do nosso século foi activamente apoiada e procurada pela intelectualidade chinesa.

Os finais do Século XIX na China foram caracterizados por um crescente descrédito da corrupta e inepta Corte Qing que levou a China a um grave estado de declínio.

Os patriotas chineses procuravam salvar o seu país através de um processo de massiva ocidentalização e modernização pelo que havia que criar espaço na cultura chinesa para a introdução da ciência e tec-nologia ocidentais.

O bastião do conservadorismo estava sob intenso ataque pela sede de saber que percorria o país, agora exposto ao Ocidente pelos inúmeros portos abertos ao comércio ao longo da costa chinesa.

O aparecimento do pragmatismo e a introdução do realismo na pintura chinesa foram simultâneos, divulgados em inúmeros ensaios e artigos na imprensa da China.

Surgem as primeiras revistas ilustradas que trazem as primeiras ilustrações que se multiplicam, levando ao público imagens pictóricas que se radicavam noutras temáticas que não no retrato, na paisagem, flores e pássaros ou em temas religiosos.

O carácter funcional das ilustrações e pinturas divulgadas nos jornais, forma de veicular ideias e descrever temas quotidianos, foi fundamental para a receptividade que então se registou para a pintura Ocidental. Em 1905, os Qing decretam a abolição dos exames para o acesso ao mandarinato. Em sua substituição criaram-se escolas públicas integrando cursos de arte. Nesse mesmo ano, o grande educador Li Duan-qing criou um curso de educação artística na Universidade de Liangjiang em Nanjing com disciplinas tão definidas como desenho a lápis e carvão, aguarela e pintura a óleo, pintura chinesa de paisagem e de flores e pássaros, desenho mecânico bidimensional e tridimensional e ainda design gráfico.

O movimento de formação artística, assim iniciado, alastra rapidamente a partir de 1908, nomeadamente em Xangai, onde a presença Ocidental era particularmente forte.

Inúmeras instituições, entre as quais a Escola de Pintura a óleo de Xangai, a Escola de Pintura Profissional de Xangai, a Universidade de Arte de Xangai e outras, transformam-se em autênticos viveiros de novas gerações de artistas.

A arte chinesa entra assim numa nova fase de desenvolvimento, aceitando em definitivo a presença da arte europeia. Os próprios eruditos, tradicionalmente conservadores, criticam as escolas ortodoxas pelo seu conservadorismo que conduzia a pintura chinesa para a degeneração total.

"O estreito de Sai Leng", (74,4x107,5) - Fu Baoshi (1904-1965)

O gesto livre, expresso pelo pincel, é ferozmente defendido pelos reformadores que buscam emancipar-se de um passado já anacrónio, embora fosse difícil mudar hábitos, fortemente sedimentados, de copiar os velhos mestres do passado.

Estes artistas reformistas acreditavam na dupla função da arte; a de reflectir a realidade social e a de educar o público, incorporando novas experiências e teorias estéticas ocidentais.

Entre os mais zelosos reformistas importa destacar Liu Haisu e Gao Jian Fu, este último educado no Japão e um dos fundadores da Escola de Lingan, de Guangdong. A maioria das escolas de arte fazia incidir a formação básica no desenho à vista, que era considerado a base inicial do curso, promovendo a observação do real em vez do velho método da cópia.

Este tipo de formação traz as raízes da emancipação de um passado considerado desajustado, permitindo possibilidades ilimitadas de desenvolvimento.

Por volta dos anos 50 inúmeros pintores combinam técnicas tradicionais para pintar cenas campestres, aldeias, camponeses, afinal a base do social-realismo.

Mais recentemente, com a consolidação do social-realismo, alguns artistas têm experimentado a abstracção e novas composições, percebendo aí novas formas para um rompimento com um realismo velho de milénios.

E é precisamente em Hong Kong que alguns artistas mais audazes, expostos à permanente influência do Ocidente e do Oriente, liderados por Lu Shoukun, conseguem dar o passo decisivo na quebra do último elo com o passado. Um deles, Liu Guosong, expôs em Macau, na Galeria do Leal Senado, em 1985.

A exposição que ora se patenteia ao público de Macau permite ilustrar significativamente a obra de dez dos mais importantes artistas chineses que, através das suas obras, contribuíram como pilares para a transição da velha pintura chinesa para um olhar mais contemporâneo.

"Cavalos", 1936 (100,2x55) - Xu Beihong (l895-1953)

* Chefe dos Serviços Recreativos e Culturais do Leal Senado: Conservador do Museu Luís de Camões.

desde a p. 97
até a p.