Artes

ALGUMAS PINTURAS DO SEMINÁRIO DE S. JOSÉ

Marie - Pièrre Astier*

S. Miguel (discípulos japoneses da escola do p e. Giovanni Nicolao, l. de S. Paulo; Séc. XVII)

(PINTURA JAPONESA) S. MIGUEL

Quadro de grande dimensão onde se reúnem duas culturas: a do Ocidente representada pelo Arcanjo S. Miguel, e a do Oriente, representada pela força destruidora de um dragão perseguindo os espíritos maus.

Tudo é movimento. Nada está calmo. A sua capa levanta-se e agita-se em turbilhão, a sua couraça de franjas tortuosas faz ruído com o gesto brusco do guerreiro. S. Miguel maneja o sabre curvo como uma serpente em movimento, enquanto as suas asas enormes se agitam. Na cabeça, um capacete coberto de penas e, por trás, uma auréola de linhas bem nítidas.

Está vestido da cabeça aos pés com roupas ligeiras, esvoaçantes, presas por broches de pedras preciosas.

Uma corrente, direita, sólida e grossa mantém prisioneira uma imagem de Cristo na Cruz. Está fixa por uma forte argola a uma pesada laje, em baixo, à direita, apenas deslocada para deixar entrever o Inferno. À esquerda, chamas dançando aos pés de S. Miguel, sugerem a guerra, a acção. A cor vermelha domina todo o quadro.

S. Miguel, ao cortar a corrente com o sabre, vai libertar Cristo representado na imagem, libertar a sua doutrina no Oriente.

Duas culturas, neste quadro, que se encontram por meio de uma expressão artística - S. Miguel é digno dos guerreiros, couraçados e de ar terrífico, que guardam as portas dos templos do Oriente, com a mão pronta a brandir o sabre.

Duas culturas que se defrontam e se unem: S. Miguel aparece como um guerreiro do Oriente num estilo europeu do século XVII - um quadro muito bonito, pintado em madeira, o que é raro se tivermos em conta a sua grande dimensão.

A DESCIDA DA CRUZ

Infelizmente, falta "qualquer" coisa" nesta descida da Cruz; tudo está morto. Nenhum rosto é expressivo ou evidencia uma emoção. O corpo do Cristo é interessante porque nos lembra o corpo de um Cristo bizantino. Talvez uma má restauração tenha "apagado" a vida neste quadro.

A ADORAÇÃO DOS REIS MAGOS (PINTOR ANÓNIMO)

Os Reis Magos acabam de chegar mas a viagem não acabou. Os cavalos, inquietos, são retidos pelas rédeas enquanto os camelos se aproximam, um pouco mais ao longe.

O artista faz-nos subir para o dorso do camelo através da composição do seu quadro. Sentimos nitidamente essa viagem. Começando à esquerda do quadro, no braço que segura a mula, o pintor segue uma linha de força que sobe para a ponta do turbante de Baltazar, descendo, em seguida, para a mirra que o rei tem na mão. Deste pote voltamos a subir pelo manto de Melchior em direcção ao seu rosto, para descer, novamente, seguindo a linha do nariz e do incenso na sua mão esquerda e assim chegamos, directamente, ao ombro e ao braço de Gaspar, que oferece já ao Menino uma caixa aberta cheia de ouro. Voltamos a subir pelo braço gorducho de Cristo em direcção ao rosto atento da Virgem. E podemos continuar, passando lentamente do ombro para a manga. A mão de José lembra-nos uma duna a percorrer em direcção ao seu rosto inquieto. A nossa viagem termina em José, homem simples e piedoso.

É, com efeito, um quadro que fala de viagem, uma viagem cujo tumulto é bruscamente interrompido por uma linha vertical: uma parede sombria onde se destaca a Sagrada Família em toda a sua intimidade. Esquecemos a longa caminhada, o calor e as dunas. Os primeiros raios da aurora banham a vinda dos reis - luz de paz e de tranquilidade após uma noite de tormenta.

Gaspar é o mais velho dos reis, o primeiro a ofertar o seu presente, com o chapéu pousado no chão, junto dos joelhos. Pintado de vermelhão, o chapéu chama a atenção, mostrando-nos a humildade e o respeito de um rei para com a criança.

O segundo rei, Melchior, está impaciente, nervoso e tem os lábios cerrados. Com uma mão segura a coroa e com a outra o incenso, contido num cibório com motivos trabalhados no próprio ouro.

O quadro foi restaurado muitas vezes; a capa vermelha de Baltazar perdeu a sua terceira dimensão. Sobre o manto de Gaspar, o primeiro rei a oferecer o ouro, podemos distinguir ainda ricas decorações florais, renascentistas, vermelhas sobre um fundo de ouro.

A Adoração dos Reis Magos (Séc. XVII)

(Por isso, uma pintura que seja restaurada perde as suas camadas escuras de verniz, mas também as últimas pinceladas da mão do mestre. Não se pode apagar as rugas num rosto velho sem lhe tirar também um pouco da sua alma.)

Neste quadro a pintura conservou, todavia, muito do seu encanto; basta olhar para o rosto da Virgem para sermos transportados ao século XVII, uma época em que se escondia o rosto do sol, em que a fé e a devoção faziam parte da trama da vida quotidiana, uma vida dominada somente pelos fortes ruídos da natureza - um tempo, uma época em que um raio de sol era o clarão mais deslumbrante que já se tinha visto.

Que viagem!...

QUATRO PINTURAS DE UM PINTOR ANÓNIMO DO SÉCULO XVIII DESCREVENDO OS MOMENTOS IMPORTANTES DA VIDA DE S. FRANCISCO DE ASSIS

Os dois primeiros quadros falam da sua vida antes da consagração a Deus e neles se destacam, diante de paredes escuras, personagens magnificamente vestidas.

Os outros dois situam-se numa paisagem natural: neles podemos observar a água, o céu, as colinas, as árvores e os pássaros. Ao longe, destaca-se ainda um mosteiro branco e sólido.

O primeiro quadro descreve o baptismo: um grupo de nobres, à esquerda, discute, inquieto, o futuro da criança. Um anjo segura S. Francisco sobre a pia baptismal, presságio de um destino de devoção e pobreza para esta criança de famílias ricas.

No segundo quadro somos atraídos pela imagem de uma criança, em tronco nu, exprimindo um gesto de recusa. A sua pele branca ressalta entre as pessoas notáveis da terra, com vestidos de tecido rico e de rendas - reflexo de um sistema de poderes instalados.

Os móveis são bem talhados e as paredes espessas dão-nos a ideia de um lugar de onde não se pode escapar. Uma cortina pesada e rica, caída no lado esquerdo, torna esta cena ainda mais opressiva. É o momento difícil em que a criança se torna adulto, em que o adulto (S. Francisco tinha 24 anos), representado como uma criança, tem de enfrentar o pai, a sociedade. Com um gesto brusco, rejeita as suas roupas de tecido fino, o seu destino de homem mundano. Tal coragem faz dele um homem, um homem feliz que encontramos no terceiro quadro, no meio do campo, pregando aos pássaros com as mãos erguidas para o céu. É observado por dois monges de ar radiante. A atmosfera do quadro inspira doçura e, mais à esquerda, a ribeira conduz-nos a um paraíso prometido.

Após quarenta dias de retiro na montanha, sem comer, S. Francisco vê aparecer Cristo crucificado. O pintor, neste último quadro, mostra-nos S. Francisco nesse momento sagrado em que o Santo se lança contra Cristo para o estreitar fortemente, num instante de abandono total em relação ao Ser amado. Está tão perto, é tão parecido com Ele que se lhe revelam nos pés e nas mãos os estigmas da Paixão. O pintor mostra-se apaixonado por este episódio da vida de S. Francisco: imagina e depois descreve esse momento louvável.

Baptismo de S. Francisco de Assis

Momento de Decisão

Como é sensível a alma deste artista! Conta-nos os passos da vida do Santo de um modo sincero, apaixonado, no seu estilo primitivo, simples e espontâneo. As cores são sóbrias e tudo evoca a vida do campo. Não encontramos aqui as cores vibrantes típicas dos luxos das cidades orientais.

Quatro pinturas de um artista de gosto simples, apaixonado pela sua fé em S. Francisco.

MÁRTIRES DO JAPÃO

Esta pintura é a representação de um quadro dentro de um quadro, para comentar a realidade de um episódio.

Eis o que aconteceu - diz-nos o pintor: ficai sabendo que seres inocentes foram torturados cruelmente.

Olhando para o quadro, compreendemos imediatamente, pelas linhas principais da descrição, que esses mártires são todos santos.

Duas diagonais de homens crucificados partem da parte inferior em linhas simples e trágicas, para terminar nos céus. Estes dois traçados de vítimas transformam-se em nuvens ribombantes: o céu carregado é testemunha da atrocidade. Alguns anjos sobrepujam o céu ameaçador para acolher as novas almas. Ao centro, num céu aberto e penetrante, Jesus apresenta-se aos mártires, na sua cruz. É um reconforto, mesmo no centro do quadro.

Na parte inferior da pintura estamos na Terra. Tudo parece ser pesado. À direita, um grupo de mulheres e de homens rezam, observam. Uma mãe aponta, com um dedo, os crucificados ao seu filho: "Olha e não esqueças!" A esquerda, o exército japonês parece inflexível no cumprimento da sua tarefa; todas as lanças estão apontadas para o alto do quadro, guiando-nos o olhar para o céu, último repouso dos crentes Arrás do massacre, entre céu e terra, um mar calmo que evoca a paz para além da morte. À esquerda, está um barco com as velas enroladas, apontando para os céus, símbolo de uma última viagem.

O nosso olhar fixa-se sempre nessas três personagens, à direita, que observam de longe o morticínio, e que representam uma instituição, a ordem, uma vida normal: são três padres. Estarão ali para ser testemunhas? Estará o artista presente? A cor dominante do quadro é o castanho-escuro, a terra, sofrimento corporal neste mundo; mas também há o azul: a paz após o sofrimento, a benção celeste.

Esta pintura do século XVll envelheceu de uma maneira muito bonita: as cores misturaram-se suavemente por acção da luz solar. Confundir-se-ia facilmente com uma tapeçaria do século XVl que tivesse ficado muitos centenários na parede, fria e húmida, de um castelo medieval.

É um quadro inocente, retratando inocentes, pintado num estilo inocente (primitivo).

O artista tinha qualquer coisa para contar. A sua compaixão diz-nos: Não vos esqueçais, foi isto que aconteceu.

O MARTÍRIO DE S. SEBASTIÃO POR GUIDO RENI 1575-1642

A sua imagem está suspensa, com os pés tocando levemente o chão. Um sentimento total de santidade emana de S. Sebastião. Parece desprendido de tudo, com três setas atravessando-lhe o corpo. Não é uma cena sangrenta, o mártir não transmite a sensação de dor terrestre nem de degradação do corpo. Apesar do sofrimento, permanece um Santo, um ser celeste.

A sua túnica, em torno das ancas, parece flutuar em seu redor, pelo sopro dos anjos; mal toca o contorno das pernas. A roupagem tem um aspecto de volúpia aérea e parece envolvida de amor espiritual. Até o nó parece feito com nuvens celestes. Todo o quadro evoca leveza e, no entanto, vê-se o arco do corpo inclinando-se muito naturalmente sobre o lado esquerdo.

O rosto está virado para o firmamento e raios dourados, fontes de inspiração, descem dos céus. S. Sebastião está bem direito sob a abóbada celeste. Está muito calmo, extasiado pela luz que vem do alto. Esqueceu a dor. Neste momento, S. Sebastião é um santo, não um homem. Contudo, não podemos deixar de notar a voluptuosidade da sua expressão: o nariz de adolescente, que não é particularmente fino mas muito masculino, as narinas pouco abertas, os lábios grossos e infantis, ligeiramente abertos, sem reserva alguma, impõem-se ao espectador. E gostaríamos que S. Sebastião nos olhasse, apenas ele.

O seu corpo está pálido e doce. Uma gota de sangue segue lentamente o contorno do seu peito. Quando o olhamos com um primeiro relance de amor, reparamos que a túnica em volta das ancas tem algumas dobras, descrevendo formas circulares, exactamente onde é preciso neste momento da contemplação.

S. Sebastião é sedutor, é um homem.

O quadro de Guido Reni sabe dar essa impressão muito particular de elevação, de flutuação e de divin-dade. E com essa mesma pincelada transmite-nos sedução e beleza, que constituem prazeres altamente terrestres.

Estes dois talentos reunidos só se podem encontrar nas mãos e na alma de um grande artista.

A sua presença inegável, no quadro representando S. Sebastião, permite afirmar que este foi pintado pelo célebre artista italiano, do século XVII, Guido Reni.

(Traduzido do francês por Luís Gonçalves)

Ediçáo Especial

Poter RC

Os Mártires do Japáo (pintado em Macau em 1640)

*Especialista em técnicas de restauro de arte sacra; responsável pelo restauro de algumas pinturas e esculturas da colecção do Seminário de S. José.

desde a p. 93
até a p.