Crónica-Macaense

LEMBRANDO IMAGENS PERDIDAS

Ana Maria Amaro *

Para lá de Mong-Há, oculta pelas sebes de lantanas amarelas, a fértil baixa conquistada ao mar vai perder-se nos escuros e rolados calhaus, que pardacentas ondas afagam, em requebros sem espuma.

Os grandes "fán-sün",(1) de velas cor de cinza, manchando sombras castanhas nas paradas águas do Rio das Pérolas que envolve Macau nos seus braços azuis, são gaivotas poisadas naquele maravilhoso cenário a terminar no Céu...

Em continuidade com o mar, a fértil baixa, povoada de escuro casario, vai findar em terra, ao longe, num verdejante bambual franjado em mil pequenas folhas, natural biombo que oculta da cidade aquele perdido recanto, de constante trabalho e de confrangedora miséria.

Vestem a terra pródiga longos rectângulos de todos os tons de verde, pintalgados do branco e do amarelo das cabecinhas greladas dos couvais, que se sucedem, sinuosos, pujantes de vida e coloridos, como alegre e acolhedora manta de retalhos.

O verde baço do inhame, as folhas recortadas da batata doce, rentes ao chão; o verde luminoso das alfaces em longos alfobres, as franjas rendadas das cenouras, a "pák chói" (2) aureolada das pequeninas cabeças amarelas dos primeiros grelos, os ramalhetes pestanudos do cebolinho e das chalotas sucedem-se, ali, campo além, a bordar barracas escuras e pobres, de contornos mal definidos.

Cada pequena casa é uma mancha negra de madeira velhas, chapas de zinco ondulado, bambus e esteiras semi-apodreciddas. Algumas têm pequenas janelas onde cintilam vidros, a prolongar-se em redor nas capoeiras bojudas de rota entrelaçada, onde um porquito, uma galinha de penas ruivas ou um galo de crista escarlate, espreitam pelas grades entrecruzadas da sua prisão, espanejando-se ao Sol.

Não longe, nos terrenos alagadiços, outras barracas pintadas de preto elevam-se acima do solo sobre estacas, como escuras palafitas.

E é perto delas, ao longo das negras leiras abertas no humus, que os homens, de calções, sob velhas cabaias ou camisolas esburacadas, chapéus de rota a proteger as cabeças das ardências solares, se entregam placidamente às fainas agrícolas, cada dia, desde o alvorecer.

Pele escura, em mimetismo com o queimado da terra, chinelos de que apenas um fino cordel liga as palmilhas aos escuros pés, o bambu sobre o ombro, donde se suspendem dois regadores de madeira, com longos canos de zinco alongados em rodados crivos, os "Kang tin lou" (3) percorrem o campo, em monótono vai-vém. Uma, duas, tantas vezes quantas a secura do terreno ou o comprimento da leira o exijam, descem aos grandes poços escondidos algures num ângulo do terreno, encobertos pela verdura, enchendo os grandes regadores, que trazem suspensos do flexível bambu, cruzados os crivos, a facilitar o equilíbrio.

Em cada rectângulo cultivado, junto de cada pé de verdura, o estrume das várias fossas ergue-se em escuras montanhas e a água, cristalina, desce prodigamente sobre as pequeninas folhas sequiosas, reflectindo o arco-íris.

Perto, dois garotitos brincam com duas velhas latas suspensas dum galho por dois cordéis, imitando, nos seus brinquedos, a base de todo o trabalho do chinês pobre.

Não longe, outro pequenito mais velho apanha grelos num rectângulo mais afastado, entusiasticamente entregue ao seu labor...

Além, junto a uma das pobres casas, um gladíolo vermelho ergue ao Céu as suas muitas cabecitas, a despontar entre verdes e longas folhasaciformes.

Por entre os verdes luminosos dos legumes brilhantes de humidade, que são o enlevo e o arroz do lavrador, estiram-se, em coloridas pinceladas, os rectângulos das flores, de igual modo atenta e carinhosamente cultivadas.

Em grandes manchas de cor, "Kôk-fá" (4) brancos, roxos e amarelos, sucedem-se, tocando as cabecitas a cada sopro da brisa vinda do mar, rescendente ao lodo do estuário.

Para além das sebes das lantanas e dos bambus, sobe, indiferente, a colina; brilha o asfalto e a Cidade espreguiça-se, langorosa, até ao Istmo, banhada de Sol...

- "Fá-ié"! (5) Mote cantante, de sonoro pregão, cada dia renovado através da cálida atmosfera das manhãs azuis de um Janeiro compassivo.

Solto no ar, "Fá-ié" soa a versos, soa a poesia, evola perfumes...

Frágil e pequenina, envolta nas largas calças pretas, sob a cabaia ruça e remendada que lhe afaga as ancas, a vendedeira de flores avança ao longo do passeio, vagarosa, coleante, sopesando os dois grandes cestos de rota, côncavos e abertos em pá, donde emergem as cabecinhas desgrenhadas, brancas e loiras dos crisântemos.

Os cestos balouçam, rítmica ou desencontradamente, a cada passo descalço da chinesa vendedeira, que avança e apregoa.

A pele escura e curtida, os malares salientes e os olhos semi-fechados, exibem contrastes de sombra e luz sob o lenço arroxeado, com brancas fantasias rodadas, que vem terminar junto à gola baixa da cabaia em grosso nó pontudo, sob o queixo acobreado e breve.

Os dentes grandes e brancos, onde o ouro substitui alguns dos incisivos, afastam-se e brilham, a cada brado metálico da florista. E ei-la que passa, pequenina e leve, mancha escura entre o colorido das flores... Vendedeira de sonhos...

Num dos pulsos, em contraste com a pobreza do trajo de ganga preta, esverdeada pelo tempo, amarelecida pelo ar, um bracelete roliço, de jade, pintalga-lhe um pequeno contorno verde como se fora um caule de "Kôk-fá"...

Empilhadas, as flores que espreitam sobre os rebordos de um dos cestos, tremulando e cintilando orvalhos, balouçam a cada cadência, aguardando a jarra ou o copo modesto, cuja água, benéfica, lhes prolongará a vida.

No outro cesto, suspenso da vara achatada de pau preto que repousa sobre o ombro magro da vendedeira, onde um trapo, sem cor, almofada e amacia atritos, flores sem pé, rentes ao pedúnculo, emergem entre folhagem como nelúmbios num lago parado.

O colorido e a frescura das flores tentam os olhares e a vendedeira pára, aqui ou além, entrelaçando ramos, combinando tons e recebendo alguns avos escuros ou cor de latão, que vão chocalhar, alegres e aconchegados, algures nos fundos das algibeiras das suas claras cabaias interiores.

Nas jarras, pintadas em típica policromia, sobre as mesas redondas esculpidas em teca, ou diante dos nichos dos deuses, junto aos pivetes que ardem, os crisântemos vão ficando, em cada casa, como pequeninos sóis sem calor, mas radiosos.

E a florista dobra esquinas, sobe ladeiras e desce pedregosos degraus, apregoando e vendendo as suas flores vistosas.

- "Fá-ié"! Os cestos vão-se descolorindo, os avos amontoando e o Sol impiedoso vai secando, sobre as corolas das flores que espreitam de cada cesto, as gotas cristalinas do orvalho da manhã, que são, sobre os "Kôk-fá", brancas e douradas gotas de suor, sobre tigelas de arroz...

NOTAS

(1) Fan-Sün - barco à vela

(2) Pák choi - couve chinesa

(3) Kang tin lou - agricultor

(4) Kôk-fá - crisântemos

(5) Fa-ié - pregão que anuncia flores

* Profa. da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa: antropóloga e investigadora.

desde a p. 111
até a p.