Intervenção

A Cultura em Macau: perspectivas de futuro

Jorge Morbey

Por razões históricas, amplamente conhecidas, Macau tem sido, desde o século XVI, o ponto de encontro e de amigável convivência entre chineses e portugueses, portadores dos seus valores culturais próprios e bem diferentes.

Esta tradição secular de convivência de culturas distintas é alicerce seguro e sinal de bom augúrio para a intensificação do conhecimento recípocro dos valores próprios de cada uma delas e pode constituir a membrana social por onde, nos dois sentidos, se promova uma fecunda osmose cultural e se prossiga a edificação do que certamente será um valioso património da humanidade. Assim concebido, não o confinando à sua dimensão regional, nem cedendo a uma visão eurocentrista ou sinocentrista do Mundo, Macau assume, em termos culturais, um estatuto universal, sem paralelo no Mundo moderno.

Desde a Conferência Mundial sobre Políticas Culturais realizada em Veneza, em 1970, o fenómeno mais importante da política cultural tem consistido no alargamento do seu campo de acção, quer na ordem interna dos Estados, quer na esfera internacional. Esta tendência tem-se mantido sem alterações após a realização da MUNDIACULT, em Agosto de 1982, na cidade do México.

Num Mundo onde os recursos económicos são cada vez mais escassos e onde a segurança diminui assustadoramente, o movimento cultural tem vindo a desenvolver-se e a expandir-se. As instituições sociais - de base territorial, de defesa de interesses de classe, com fins lucrativos, etc. -vêm descobrindo uma dimensão cultural na sua actividade que vai dando corpo a uma política cultural da Sociedade, para além da política do Estado.

A evolução mais recente no Mundo fundamenta a esperança de que, num futuro não muito distante, se confira prioridade à Cultura, colocando-a no centro da vida do Estado e da Sociedade, como foi normal acontecer em outras épocas da história da humanidade.

O Mundo dos nossos dias oferece um quadro social em que, novamente, as razões culturais estão na génese dos conflitos e das alianças. Por essa razão, o cultural e o social convergem cada vez mais.

É na prioridade à Cultura que se encontram os principais parâmetros dos modelos de desenvolvimento, quando a economia e a política se tornam assustadoramente instáveis.

É, outra vez, na Cultura que se encontra a chave da mudança e o principal horizonte terreno da libertação do homem, quando é visível uma vontade generalizada de recriar o mundo e de promover a reidentificação humana face a esse mesmo Mundo novo.

O Mundo em que vivemos balança entre o sonho de um novo renascimento e o pesadelo de uma guerra de extermínio, ou seja, entre a inteligên-cia dos renascimentos culturais e o suicídio militar ou económico. E é intuitivo que, quanto mais ameaçada está a paz, mais valioso parece tornar-se o Mundo e, em consequência, mais empenho se coloca na defesa do património cultural e mundial.

A criação do Instituto Cultural de Macau, em 1982, significou um acto de inteligência do governo do Território, face à Cultura. Ela traduz o empenhamento do Estado no apoio à formulação e execução da Política de Cultura do Território. Sem preocupação de dirigismo ou estatismo cultural, o Governo do Território quis, e muito bem, que um Instituto Público tomasse para si o encargo de animar, incentivar, e apoiar as iniciativas culturais da Sociedade, em Macau. A existência do Instituto Cultural tem sido um bem para as ideias e para os homens de ideias, relativamente aos quais ele pretende ser uma infra-estrutura e um eixo da acção conjunta com todas as entidades interessadas.

O Instituto Cultural tem significado o diálogo, a cooperação, o conhecimento recíproco privilegiado entre chineses e portugueses no Território, mas pode ser também, na justa medida dos interesses de ambos os povos, a antena irradiadora de Cultura para as comunidades histórica ou culturalmente afins, nesta parte do Mundo.

Em cinco anos de vida, o Instituto Cultural de Macau pode orgulhar-se da obra realizada, atentos os -recursos financeiros e humanos que teve ao alcance.

O desenvolvimento futuro do trabalho do ICM depende de cinco factores cujo ponto de situação farei sucintamente:

Os recursos financeiros e a sua correcta gestão são factor decisivo na vida de qualquer instituição.

Com uma dotação orçamental de 5,9 milhões de patacas em 1983, o ICM dispõe em 1987 de um orçamento de 36 milhões de patacas.

A melhor forma, porém, de aferir a importância dos meios financeiros disponíveis é a que resulta da sua análise em termos de relação percentual com o Orçamento Geral do Território.

De 0,42% do OGT em 1983 evoluiu-se para 1,56% em 1987, o que é uma situação invejável no quadro mundial, onde as verbas destinadas à Cultura raramente atingem 1%.

Em segundo lugar, refiro as instalações e os equipamentos. É que a Cultura tem um problema de alojamento e oxigenação.

E o oxigénio da cultura são as salas de teatro, cinema, bailado, os auditórios musicais e de canto, os "ateliers" e os estúdios para criação no domínio das artes plásticas e do cinema, os espaços para exposições e os museus, os arquivos classificados de documentação escrita, sonora e de imagem, as biliotecas, etc. etc.. É bom que se retenha que um dos emblemas mais significativos do desenvolvimento se encontra nos países onde à Cultura deixou de caber apenas aquilo que sobra aos outros.

O próprio Instituto Cultural não pode deixar de ser um equipamento cultural que ainda não é completamente. Falta-lhe ainda espaço físico. Mais espaço para a Cultura.

Esta questão encontra-se equacionada no âmbito do Plano Director de Macau onde se prevê a disseminação de espaços de animação cultural por todo o tecido urbano.

Em terceiro lugar, coloca-se um problema de estatuto das gentes ligadas à Cultura. Não se trata apenas de evitar a proletarização intelectual. Trata--se de alterar o estatuto marginalizado da inteligência, que em consequência da barreira da língua ou de outra qualquer, é obrigada ao exercício de actividades onde se não aplica e que visam apenas garantir a sobrevivência física. Tem de se conceber um estatuto próprio que permita à inteligência exercer funções no campo da Cultura, criando as condições que viabilizem ultrapassar as barreiras existentes. Para além disso, haverá que abrir maiores possibilidades de, no Território, se fomentar e ajudar a formação de escolas luso-chinesas nos vários domínios da arte e da cultura, estimulando a formação artística e o gosto por ela.

Em quarto lugar refiro as questões ligadas ao património cultural.

O Património Cultural, no seu sentido mais amplo, abrange dois universos: o do Património material e o do património imaterial.

Começando por este último, convém referir que o crescimento demográfico explosivo de Macau, a partir da década de 40, foi marcado fundamentalmente pela fixação, temporária ou definitiva, de grandes fluxos migratórios originários do interior e, simultâneamente, pela saída para diversos países - Portugal, Brasil, Canadá, Estados Unidos, Austrália, etc. - de significativo número de famílias macaenses, herdeiras dos padrões culturais portugueses, durante séculos recriados em Macau e aqui enriquecidos por valores culturais chineses e malaios.

Pode dizer-se que até à década de 30 existia em Macau uma sociedade biológica e culturalmente mestiça, cuja matriz cultural essencial era de origem portuguesa, e que caminhava na sedimentação dinâmica de valores culturais aqui recriados e onde a influência da cultura chinesa era notória. Esta "Sociedade Macaense" correspondia, em termos urbanos, à "cidade cristã".

O definhamento em termos quantitativos dessa "Sociedade Macaense" por via da emigração de boa parte dos seus componentes e do crescimento veloz da população de matriz cultural chinesa, provocaram inevitável diminuição percentual à "Sociedade Macaense" na estrutura global da população e, naturalmente, o declínio ou mesmo a extinção das suas criações culturais próprias.

Aconteceu isso, por exemplo, no domínio da língua, pelo declínio progressivo da "língua di Macau", o "patois", hoje praticamente extinto e que do ponto de vista linguístico se pode classificar como um crioulo nascido a partir do português dos séculos XVI e XVII e enriquecido no léxico e também na sintaxe com aquisições do cantonense.

Esse património imaterial está hoje praticamente extinto, o mesmo acontecendo com a música popular que se exprimia no mesmo "patois".

Outros elementos culturais, porém, subsistem através de usos, costumes, tradições de que parecem poder relevar-se a religião e a culinária tradicionais de Macau.

No domínio do património material avulta a cidade edificada.

Não sendo Macau importante em termos de possuir grandes palácios, castelos ou templos religiosos, como acontece, por exemplo, em cidades da China ou da Europa, a cidade apresenta características sem igual nesta parte do Mundo e que derivam da ambiência urbana mediterrânica aqui construída ao longo de séculos e que reflecte a vida modesta do povo que a foi construindo, principalmente atestada pela modéstia dos materiais utilizados nas construções.

Refira-se que da cidade seiscentista, que se confinava nos limites das muralhas e das fortificações, praticamente nada resta.

Mas, ficando assente que a importância do patrimómio arquitectónico de Macau reside no conjunto que forma e não no valor individual das suas peças integrantes, penso que a sua preservação no futuro reside fundamentalmente no justo equilíbrio entre a tradição e a modernidade ou, de forma mais concreta, entre a pressão do investimento imobiliário e as respostas que as entidades responsáveis pelo planeamento urbano tiverem para dar aos investidores em termos alternativos aos ocupados pelas edificações classificadas.

Penso que Macau só terá a ganhar com a preservação do que resta da cidade mediterrânica que constitui, nomeadamente em termos de Turismo, exemplar único nesta zona do Mundo.

Creio, no entanto, que a preparação do futuro em termos de preservação do património cultural tem de passar, quanto antes, pela criação das condições económicas e financeiras que permitam a sua conservação e reutilização, através de uma entidade autónoma do tipo Fundação, e pela alteração, já em curso, da legislação vigente que modifique a situação actual, de modo a que os edifícios classificados deixem de constituir um pesado fardo para os seus proprietários e passem a ser algo de apetecível e disputável no mercado imobiliário de Macau.

Em quinto e último lugar, menciono as modificações que se torna necessário introduzir em termos de redefinição institucional do Instituto Cultural de Macau, por via de alterações às infra-estruturas legislativas e administrativas.

Após a assinatura da Declaração Conjunta sobre o futuro de Macau, entre os Governos da R. P. China e de Portugal, toda a construção do futuro tem de obedecer ao espírito e à letra do que nela se contém, para todas as áreas da vida do Território.

Para a área da Cultura e atendendo às características muito específicas de Macau como porta secular de comunicação da China com o Ocidente, preconizamos que se cometa a uma estrutura do tipo Fundação a competência para gerar e gerir os meios necessários ao desenvolvimento cultural do Território, preservando as suas características de ponto de encontro e antena difusora das culturas portuguesa e chinesa.

Para finalizar, aponto algumas áreas prioritárias na cooperação e intercâmbio entre Macau e o interior.

Estive em visita à R. P. China, de 12 a 22 de Março passado, a convite da Comissão Nacional para a Educação, durante a qual tive oportunidade de visitar e trocar ideias com responsáveis dos Ministérios da Educação e da Cultura, Universidades e outras instituições culturais e científicas, escritores, investigadores, etc.

Ficou bem claro, durante a visita, que temos um longo caminho a percorrer no intercâmbio cultural de Macau com o interior, de que passo a enumerar alguns aspectos:

- O incremento das trocas de espécies documentais, bibliográficas e inconográficas entre os arquivos e Museus nacionais do interior e de Macau (e por esta via dos arquivos e museus nacionais de Portugal), tendo em vista o enriquecimento mútuo dos respectivos espólios, no que se refere à história das relações da China com o exterior, e, particularmente, da História de Macau e da presença dos portugueses nesta zona do Mundo, com vista à constituição em Macau de um importante centro de investigação histórica aberto a investigadores de todo o Mundo.

- O incremento da cooperação no ensino do português na R. P. China, do Pu Tong Hua em Portugal e de ambas as línguas nacionais dos dois países em Macau.

Partindo-se da situação actual em que o português é dominado apenas por cerca de 3% da população e o Pu Tong Hua por percentagem não muito superior, entendo que se torna tarefa prioritária, na construção do futuro de Macau, o alargamento a todos os graus e modalidades de ensino das respectivas línguas nacionais.

Penso ser de utilidade indispensável que gradualmente toda a população possa dominar o Pu Tong Hua e o português.

-No que se refere à difusão da cultura por via da leitura, através das bibliotecas, entendo ser absolutamente urgente que as bibliotecas públicas de Macau possam vir a ser abastecidas por livros e outras publicações editadas na R. P. China, graciosamente, como acontece com as obras editadas em Portugal.

-Ainda no que se refere à difusão da cultura através do livro e de outras publicações, reputamos da maior importância que se estabeleçam os canais comerciais necessários para a difusão em Macau das obras editadas no interior e, reciprocamente, para a divulgação no interior das obras editadas em Macau.

Claro que a circulação de edições entre o interior e Macau apresenta algumas dificuldades que importa superar no futuro e que resultam da circunstância de as edições no interior serem impressas em caracteres simplificados enquanto que em Macau (como aliás também em H. Kong e Taiwan) se usam os caracteres antigos.

Esta é uma barreira à circulação das ideias entre o interior e Macau que, naturalmente, virá a ser resolvida no quadro da reunificação da R. P. China.

Penso, no entanto, que este problema carece de atenção imediata que provavelmente terá de passar, numa fase inicial, pela edição das mesmas obras simultaneamente em caracteres simplificados e antigos, consoante o público leitor a que se destinem.

A actividade editorial do Instituto Cultural de Macau tem centrado a sua atenção na publicação de autores chineses em português e de autores portugueses em chinês, sempre que possível, em edições bilingues.

Para além disso, estamos empenhados em lançar uma Bilioteca Básica da Cultura Chinesa, em português, e uma Biblioteca Básica da Cultura Portuguesa, em chinês.

Também na área editorial lançámos em Abril passado a Revista de Cultura que em cada trimestre produz uma edição em português outra em chinês e, outra ainda, em inglês. Tivemos ensejo de dirigir convite a intelectuais, investigadores e escritores da R. P. da China no sentido de escreverem para a Revista de Cultura, por pretendermos que ela constitua o ponto de encontro e uma antena para difusão mundial, lado a lado, das culturas portuguesa e chinesa.

- No domínio da música, do bailado e do teatro, o intercâmbio entre o interior e Macau tem-se esgotado praticamente na vinda de companhias de alto nível artístico.

Pode dizer-se que o intercâmbio se tem confinado à realização de espectáculos por embaixadas culturais provenientes do interior, isto é, só num dos sentidos. Penso que se deve alargar o intercâmbio de modo a compreender também a ida ao interior de manifestações culturais de Macau. Por outro lado, do nosso ponto de vista, é importante que se introduza uma mudança qualitativa, de tal modo que, para além da simples realização de espectáculos, possamos avançar em esquemas de cooperação, que se traduzam na permuta de especialistas destas áreas - músicos, bailarinos, professores - que se integrem em orquestras e grupos de bailado e leccionem as diversas matérias.

Do nosso lado, em Macau, temos o maior interesse em receber este tipo de cooperação,com base em contratos anuais renováveis, para melhorar a nossa orquestra de câmara e o nosso grupo de bailado e para a construção do nosso futuro Conservatório

- Uma outra área onde o intercâmbio e a cooperação cultural estão praticamente no zero é a que respeita ao património cultural no conceito de "relíquias históricas" usado no interior.

Existem em Coloane alguns vestígios arqueológicos cuja identificação carece da intervenção de especialistas do interior.

Em sentido inverso, existem no interior várias relíquias históricas de matriz cultural ocidental cuja preservação, restauro e reutilização certamente beneficiariam com a cooperação dos técnicos de património de que dispomos em Macau. Sem preocupação de as enumerar de modo exaustivo, refiro as ilhas de Neilingding, na foz do Rio das Pérolas, a ilha de Lambeikou, a ilha de Shangchuan, os fortes de Liampó e Chinchéo, a ilha de Sha Mian, a Missão de Zhaoging, 82 quilómetros a oeste de Cantão, na margem esquerda do Rio Xijang, as igrejas de Dongtang, Nantang, e Beitang, em Beijing, o Observatório de Beijing, junto da porta de Jianguomen, e o cemitério de Chala, também em Beijing.

Para além da cooperação técnica através dos nossos especialistas em Património Arquitectónico, podemos fornecer documentação e elaborar estudos monográficos sobre esses monumentos para a sua compreensão e divulgação às novas gerações e aos estrangeiros que visitem a R. P. China.

Parece-me ser isto um ponto, tão completo quando o permite o resumo, da situação actual e das perspectivas de futuro no que se refere às questões ligadas à Cultura, no Território de Macau.

Como atrás referi, dispomos agora de um precioso instrumento que constitui a base para a construção do futuro de Macau: a Declaração Conjunta assinada pelos Primeiros-Ministros da R. P. China e de Portugal.

Indiscutivelmente relevante nas relações bilaterais entre os Estados Chinês e Português como a arrumação de uma questão herdada da História, o Acordo é mais importante para Macau por significar o seu próprio renascimento rumo ao futuro.

É um novo ciclo da História de Macau que vai começar, reposta sem ambiguidades a plena soberania da R. P. China sobre o Território e salvaguardada solenemente a livre convivência e cooperação local entre chineses e portugueses.

Abre-se assim à nossa frente todo um conjunto de trabalhos de preparação do futuro que importa iniciar. •

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