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A Declaração Conjunta e o renascimento cultural de Macau

Jorge Morbey

"A Região Administrativa Especial de Macau definirá, por si própria, as políticas de cultura, educação, ciência e tecnologia e protegerá, em conformidade com a lei, o património cultural em Macau.

Além da língua chinesa, poder-se-á usar também a língua portuguesa nos organismos do Governo, no órgão legislativo e nos Tribunais da Região Administrativa Especial de Macau."

(Parágrafo 5, artigo 2åmp; o, da Declaração Conjunta)

"A Região Administrativa Especial de Macau definirá, por si própria, as suas políticas de cultura, educação, ciência e tecnologia, designadamente sobre as línguas de ensino, incluindo a língua portuguesa, o sistema de qualificação académica e a equiparação de graus académicos. Todos os estabelecimentos de ensino poderão continuar a funcionar, mantendo a sua autonomia e poderão continuar a recrutar pessoal docente fora de Macau e obter e usar materiais de ensino provenientes do exterior. Os estudantes gozarão da liberdade de prosseguir os estudos fora da Região Administrativa Especial de Macau. A Região Administrativa Especial de Macau protegerá, em conformidade com a lei, o património cultural de Macau."

(Esclarecimento do Governo da República Popular da China sobre as políticas fundamentais respeitantes a Macau — Anexo In Declaração Conjunta, Capítulo V).

Os dois textos que acima se transcrevem, contêm os princípios básicos que vão nortear a Cultura em Macau, no futuro. Enquanto o primeiro resulta do acordo de vontades dos Governos da República Popular da China e de Portugal, expresso na própria Declaração Conjunta, assinada pelos Primeiros Ministros dos dois Estados, o segundo constitui uma declaração conjunta nesta matéria e assume publicamente, perante a população de Macau, o povo da República Popular da China e o Mundo, o propósito de respeitar a plena autonomia cultural da futura Região Administrativa Especial de Macau.

Esta sábia atitude das autoridades da República Popular da China tem a ver com "o pano de fundo histórico e as circunstâncias actuais de Macau" (expressão utilizada no Memorandum contendo a declaração do Governo da República Popular da China sobre a questão da nacionalidade dos habitantes de Macau).

Não apresentando Macau uma sociedade culturalmente homogénea, o alcance da autonomia cultural que a República Popular da China se compromete a respeitar tem naturalmente que ver com a preservação da heterogeneidade actual, herdada da História, e permite o desenvolvimento de criações culturalmente híbridas em resultado da confluência dos valores das culturas em presença: a chinesa e a portuguesa.

São praticamente inexistentes estudos de investigação sobre Macau no domínio das Ciências Sociais, designadamente nas áreas da Antropologia Cultural e da Psicologia Social. Não existem, portanto, dados cientificamente investigados sobre a população de Macau no que se refere à situação actual, em matéria da inter-influência de culturas, nem sequer sobre a transformação cultural operada dentro de cada um dos dois grupos sócio-culturais aqui presentes.

Tão pouco Macau, dispondo de condições excelentes para o efeito, aliciou até agora os especialistas a abalançarem-se na investigação da história comparada das civilizações aqui em contacto e sobre as inter-relações que se operaram entre elas e a partir daqui.

Por último, o mais rico património sócio-cultural comum Luso-Chinês — a Comunidade Macaense — só em alguns poucos segmentos tem sido estudada e, ainda assim, de modo incompleto.

Deparamos, portanto, com três universos de estudo extremamente relevantes para a compreensão da importância de Macau como ponto de encontro, fronteira de contacto e local de interpenetração de culturas, cuja investigação tarda a ser feita. Não se pode deixar de afastar liminarmente a atitude simplista e redutora de qualificar Macau como área cultural portuguesa ou como excrescência estranha incrustada na face da civilização chinesa.

Esse tipo de enunciados pode servir projectos políticos radicais de índole colonial ou anti--colonialista, mas despreza, e mal, os fenómenos sócio-culturais que se sedimentaram ao longo de um processo histórico que se vem desenvolvendo, por mais de quatro séculos, em Macau.

O Mundo que a Humanidade contemporânea herdou é, numa boa parte cujo balanço ainda está por fazer, o produto das trocas culturais que se verificaram entre as diferentes cul-turas e civilizações, repartidas pelos cinco continentes, principalmente e por causa das viagens marítimas dos portugueses, no séculos XV e XVI. Uma leitura inteligente da história da expansão portuguesa no Mundo tem necessariamente de ser esbatida das contingências bélicas, dos episódios de força e de domínio, para que se decante todo o valioso substracto pacífico do encontro e da troca de culturas e do contributo de Portugal para a aproximação universal e para o progresso dos povos.

O anticolonialismo do século XIX, que esteve na origem da independência das colónias estabelecidas pelos europeus no continente americano, foi um fenómeno de conflito estric-tamente político. A ruptura com as antigas metrópoles manteve incólumes os padrões europeus de cultura dos Estados independentes que ali emergiram, porque as populações originárias desses territórios foram mantidas à margem do conflito entre os colonos europeus que lideraram o processo e os governos das suas potências coloniais de origem.

Diferentemente, o anticolonialismo do século XX, que teve em Bandung o seu ponto cul-minante e que está na origem da independência das colónias que os Estados europeus detinham na Ásia e em África, foi, para além de um fenómeno político, principalmente um conflito que opôs as culturas dos povos dominados às culturas dos povos dominadores.

Desde o termo da II Guerra Mundial até à década de 70, o Mundo assistiu às independên-cias de dezenas de territórios coloniais, marcadas por forte pendor nacionalista de profundo con-teúdo cultural e com sinais evidentes de racismo anti-europeu. Passada a agonia dos últimos anos de luta contra a dominação colonial e a euforia racista anti-europeia que, afinal, consistiu na retribuição das práticas sociais vexatórias aos antigos dominadores, as culturas dos povos ex--coloniais reencontram, progressiva e serenamente, a dignidade dos seus próprios valores, e, assente a poeira levantada durante a luta, encetam o caminho do diálogo e da cooperação universal, privilegiando, em regra, as relações com as antigas potências colonizadoras.

O século em que vivemos ficará assinalado como o do termo dos conflitos coloniais e do florescimento dos renascimentos culturais.

Macau, desde que no Território se estabeleceram os portugueses até aos nossos dias, nunca ofereceu os elementos caracterizadores de uma situação colonial típica. Recordo, aliás, que na Organização das Nações Unidas, a delegação da República Popular da China, pela boca do Embaixador e depois Ministro, Huang Hua, sempre rejeitou as provocações dirigidas pela delegação da União Soviética no sentido de incluir Macau e Hong Kong na lista dos territórios a descolonizar, alegando tratarem-se de territórios chineses com estatuto especial.

O estatuto político preconizado para Macau na Declaração Conjunta assemelha-se com aquele que vigorou no Território desde a chegada dos portugueses até ao Governo de Ferreira do Amaral, em meados do século XIX: a sede do poder político residia nas autoridades chinesas que ditavam as regras reguladoras dos interesses em presença, designadamente os dos portugueses. Esse ciclo representa cerca de três quartos da História de Macau e nele se encontra o que de mais fecundo aqui se passou, quer do ponto de vista económico, quer cultural. É nesse ciclo histórico que se situa a criação em Macau da primeira Universidade de todo o Oriente, obra excelente dos Jesuítas, centro vital de difusão da cultura ocidental na China e polo de irradiação da cultura chinesa para o Ocidente. O retorno de Macau à plena soberania da República Popular da China, nos termos constantes da Declaração Conjunta, constitui a reposição da sua mais antiga, fecunda e duradoura tradição histórica. Estão, pois, criadas as condições objectivas para o Renascimento Cultural de Macau.

Jorge Morbey

Presidente do Concelho Directivo

do Instituto Cultural de Macau

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