Crónica Macaense

Lilau, Oitenta e Sete

João Manuel Amorim Ilustrações de Carlos Marreiros

Conheci-A numa morna e húmida noite de Maio.

Apareceu-me cintilante de luzes e néons animados e multicores. Jogadora desde logo, às primeiras.

Vinha de vestido negro e efeitos dourados. Na ponte, as fieiras de pérolas das luzes dos candeeiros eram os botões do manto de água que, unindo as margens, lhe acompanhava as curvas do corpo, onde logo se pressentia a presença do mar nos reflexos alvilunares.

Foi-me apresentada por um amigo, conhecedor das suas magias, ilusões e (des)enganos.

No sofisticado hotel da outra margem, com prolongamento adivinhado em finas garras de verniz vermelho, encontrei o primeiro e desejado conforto de quem chega na frescura condicionada de um postiço convidativo e amortecedor.

O corpo cansado pedia mais o repouso do que o amor à primeira vista, mas a ilusão inicial reforçou-se nos sentidos desbotados pela embriaguez da primeira noite: cálida, despida dos acridoces odores só mais tarde conhecidos. Junto ao ângulo de Nam Van, com os namorados pendendo pés e sorrisos para o lado do mar, a baía assemelhou--se a outras baías de outros trópicos.

Afundei-me, morto de sono e de cansaço, após um duche e o inevitável teste às opções disponíveis no teclado televisivo, nos indefiníveis colchões do hotel, cobertos de pesadas colchas res-sumando humidade.

Não vi nessa noite o espectáculo relampejante que, por duas semanas a fio, me iluminou o quarto nas noites seguintes.

Estava ainda aturdido e longe de tudo.

Na primeira manhã apareceu-me esbaforidamente quente. Fui cilindrado pelo asfixiante tapete de humidade, que me orlou a face visível do corpo de bagas de suor alternadamente gélidas e ardentes.

Atravessei um rio e várias cortinas de água como cataratas munido de um guarda-chuva platónico, como uma couve murcha. Subi um quarteirão de andares numa jaula de alumínio para atingir o meu novo posto de trabalho onde me iniciaram na teoria e prática da prosperidade, bem-estar, progresso e estabilidade.

As especificidades vieram logo no dia seguinte com não sei quês a propósito de arrogantes nadas.

Comecei a percorrer-lhe o corpo como formiga nos carreiros, em expedições desde a toca, trazendo e levando as pequenas fomes e miúdos prazeres de um reinício de qualquer coisa indefinida.

Ela ia-me sorrindo um sorriso de quem mede a ternura de um olhar, ou de uma cadela a quem se fazem cócegas na barriga, aberta, confiante, à espera.

Os caracteres vermelhos e de todas as cores, os letreiros e dizeres sobre as portas das lojas, por todo o lado, eram como que um arame farpado guardando as portas da rotina, e convidando ao sorriso e à tolerância da imposição burocrato-jurídica.

Só mais tarde aprendi a olhar para os primeiros andares e me atrevi a devassar, curioso-guloso, para lá das portas entreabertas, as intimidades que Ela consentidamente expunha a cada passo.

Perdi-me repetidamente nos dédalos do bazar, como um glóbulo num delta de capilares ou um parasita numa floresta de cabelos. De cada vez que mergulhava trazia sacos de plástico repletos das exótico-insignificantes quinquilharias da dispersão, pertences úteis, electrodomésticos de recurso, fake lacostes, molhos de T-shirts e enigmáticos talões de serviços prestados.

Doces tempos de inocência ten-dinheira e curiosidade indolor.

Macau é uma velha senhora constantemente renovada de caprichos e tentações num new look permanente que deixa para trás apenas o q. b. de rugas e pequenos sinais necessários à demonstrada evidência da sua maturidade.

Não sei se alguém a conhece ao ponto de lhe tomar o coração. Talvez, quanto muito, o pulso. Para o que muito importa despir os lixos do banal e sobrevoar com indiferença as sequelas da estupidez dos que julgam poder conquistá-la na base da esperteza ou de flirts de conveniência.

Há nela algo de profundo, talvez enigmático ou afinal simples, que a defende a seu modo das arremetidas dos novos bárbaros.

A medida da integração começou a chegar a mim nos movimentos circulares sem sentido aparente e nas calmas monotonias das tardes de Cheoc Van em domingos barrigudos e transpirados. Comecei, claramente, a sentir as picadas dos mosquitos e o fim do estado de graça.

Ela olhava-me com um sorriso irónico, sem desdém, mais como amiga zelosa do que outra coisa qualquer.

Foi aí que a nossa relação começou verdadeiramente a estreitar-se, na medida da revolta pela lassidão sem nome da cidade do Santo Nome, das suas auto-benevolências, da sua incapacidade de fazer mal ou responder às ofensas dos seus próprios inimigos.

Ela simplesmente espera, sempre, que o tempo faça o seu trabalho de delapidação, com uma paciência infinita. Menos paciente, foi aí que julguei ver o espaço a preencher pela nossa amizade.

Fiz todos os itinerários, vi os templos, o outro lado das coisas por todos vistas. Depois de ver, olhei-A.

E revi-A no olhar dos outros, guiado por mãos e palavras sábias, nas fotografias amarelecidos, nas histórias de missionários e piratas, comerciantes e capitães-de-viagem, linguajares de velhas chachas e netos metropolitanos, primas, chácaras viscosas, donzelas piedosas, tunas carnavalescas, procissões de fé e horas mortas, tutelares monsenhores, governadores de barbas.

Fui-me apercebendo do seu verdadeiro rosto, diferente da actual e aparente cicatriz de progresso que hoje A marca em direcção ao futuro.

E à medida que avancei no conhecimento do que nela já não existe senão como memória, A fui chegando a mim e daí fui retirando a força profunda do abraço que lhe dei.

Viajei pelo interior do tempo, conheci Luís Gonzaga, Camilo Pessanha, Silva Mendes, o eco dos mandarinatos, a balbúrdia da guerra, o contrabando, as noites de boémia, as felicidades, as récitas culturais da minoria das minorias. Passeei pelas velhas mansões senhoriais, entrevi bustos de patriarcas, perdi-me demoradamente na saga de Chico Pé-Fêde, visitei tias-avós vitorianas torrando o português, ouvi os ecos longínquos de Xangai quando apreçava as fazendas dos mouros na Rua Central.

Revi o passado nas fendas do presente, as badaladas das seis às trindades, ainda os centros comerciais regorgitavam de consumo e de luz. Levaram-me a ver gordas viscondessas russas amamentando viscosos gatos de chapéu alto, à hora em que o tambor clama pela degola das inocentes e os teares continuam a tecer, ininterruptamente, a interminável teia dos interesses e, sob estes, a pesada pata da clandestinidade, da cidade subterrânea e de toda a verdade adormecida.

E foi assim que Ela se me revelou, sincréticamente mista de tudo, no som sinuoso das pei-pá, no batuque do disco hi-fi em carros abertos, nas escadas de S. Paulo, nos jardins, nas torres de marfim-cimento, nos velhos antiquários e louceiros, no barulho das mil luzes em ânsias de jackpot, em bólides correndo na mira do pano de xadrez, em hotéis de cinco estrelas (oh ironia!), nos pivetes de A-Má e Kun Yam, na lama do rio, nas pérolas das noites de lua cheia, nos velhos que ficam, nos que chegam e nos que partem deixando saudades.

Penetrei-A, vivi-A, assim, fora de qualquer sombra épica. Eram exactamente umas tantas da madrugada.

Até hoje não voltei a adormecer. •

Ilustração de Carlos Marreiros © Copyright 1987

desde a p. 109
até a p.