Ethnos

Gente do Mar, Gente de Terra
Aspectos da organização social das diferenças culturais no Sul da China**

Rui Brito Peixoto *

"Macau tem uma população flutuante que, contrariamente à das nossas cidades, flutua no sentido literal do termo. Tradicionalmente, esta gente "nasce, cresce, casa-se e morre em barcos". A maioria só se fixa em terra depois de morta. As suas embarcações são mundialmente famosas e os juncos chineses têm sido continuamente explorados como emblema de um certo romantismo exótico, associado à imagem turística do Sul da China. Não obstante, os habitantes-tripulantes dos barcos chineses têm uma condição menos brilhante. De facto, o fascínio nostálgico que esta tecnologia marítima parece exercer, tem sido acompanhado de um patente desinteresse pela humanidade de que é expressão. "

O antropólogo, ou sociólogo, que se ocupe de Macau vê-se, de imediato, confrontado com a necessidade de delimitar os contornos do seu campo de pesquisa. A realidade social de Macau é profundamente heterogénea. As exíguas dimen-sões geográficas do Território (1) não traduzem, de modo algum, a sua imensa complexidade so-ciológica, e o obervador depara com uma socieda-de em que proliferou um pluralismo de grupos jus-tapostos, mutuamente demarcados através de elementos primordiais como raça, língua e passado étnico(2). Daí que seja possível formular, à partida, as seguintes interrogações: o que é que faz com que, após séculos de coexistência, num espaço físico extremamente reduzido, os grupos em presença mantenham a respectiva identidade sem terem sido homogeneizados através de um processo de aculturação? E, reciprocamente, não obstante esta diversidade e aparente carência de elementos aglutinadores, o que é que faz com que os diferentes grupos se agreguem numa sociedade comum?

Está para além do âmbito deste texto tentar equacionar a multiplicidade de variáveis intervenientes neste fenómeno; pretende-se aqui, muito simplesmente, olhar para um dos seus aspectos, à luz de algumas reflexões suscitadas pelo domínio empírico, circunscrito, que de momento nos ocupa-a comunidade piscatória de Macau. Os pesca-dores do Sul da China eram os habitantes originais da área que é hoje conhecida por Macau, e das re-giões vizinhas das actuais cidades de Hong Kong e de Cantão, sendo referidos em textos chineses há mais de um milénio. A existência desta população como grupo claramente demarcado, no presente e ao longo deste período considerável, constitui, desde logo, um problema que passamos a abordar.

Macau tem uma população flutuante que, contrariamente à das nossas cidades, flutua no sentido literal do termo. Tradicionalmente, esta gente "nasce, cresce, casa-se e morre em barcos". A maioria só se fixa em terra depois de morta. As suas embarcações são mundialmente famosas e os juncos chineses têm sido continuamente explorados como emblema de um certo romantismo exótico, associado à imagem turística do Sul da China. Não obstante, os habitantes-tripulantes dos barcos chineses têm uma condição menos brilhante. De facto, o fascínio nostálgico que esta tecnologia marítima parece exercer, tem sido acompanhado de um patente desinteresse pela humanidade de que é expressão. Assim, segregada pela gente de terra, votada ao ostracismo pelas entidades governamentais, esta população permanece praticamente desconhecida em termos de dados concretos, a que o domínio sociológico não constitui excepção.

Os censos demográficos são meras aproximações: poderão viver aqui cerca de 10 000 pessoas, que habitam permanentemente em barcos e os utilizam em modos de vida baseados na água; na totalidade da província de Cantão calcula-se que haja cerca de (3) milhões; muitas mais haverá ao longo da faixa costeira que vai da Ásia do Sudeste ao Japão. Uma elevada percentagem da população marítima local é composta por pescadores, ocupando-se os restantes de diversos tipos de transportes; uma minoria trabalhará em terra, utilizando os barcos apenas como residência. O sector das pescas é a principal indústria extractiva de Macau, se bem que a ausência de dados não permita avaliar com exactidão o seu significado económico.

A população flutuante do Sul da China representa um caso extremo de adaptação ao meio ambiente. Esta é, também, uma das razões por que é pouco conhecida: um grupo nómada, que vive em barcos, levanta dificuldades particulares ao seu estudo. A recolha de dados estatísticos, de qualquer natureza, torna-se extremamente difícil; as técnicas mais convencionais de inquérito e amostragem parecem desajustadas tace à fluiuez i mobilidade do objecto; a informação económic obtida junto de intermediários de venda do pes cado é duvidosa, porque os implicados receiam interferência do governo; finalmente, a biblio-grafia especializada no domínio das ciência sociais conta-se pelos dedos (em Macau nunca foi feito um estudo sistemático neste âmbito), e agora que o nosso conhecimento da civilização chinesa já se encontra amplamente documentado, a lacuna da nossa informação, nesta área, parece aind, mais profunda. A caracterização sociológica d; comunidade piscatória de Macau deveria cons tituir um elemento integrante da fundamentação científica das acções que a administração do Ter ritório desenvolve, ou planeia vir a desenvolver junto deste sector. Em última instância, o conhe-cimento desta realidade sócio-cultural é o primei ro passo no sentido de ultrapassar preconceitos i atitudes baseadas na ignorância, ou em mal-enten-didos, e de contribuir para uma mais digna per-cepção humana dos elementos desta população..

Os pescadores chineses do Sul da China estão divididos em dois grandes grupos que, em cantonense, são designados por Tanká (蛋家) eHoklou (鶴佬).

Os Hoklou falam uma variante, pouco descrita, do dialecto de Fuquien (Min do sul), que se assemelha a Tiuchew (em cantonense Chio Chao 潮洲 ) mas que os nativos desta língua têm uma certa dificuldade em compreender. O seu centro de irradiação parece ter-se deslocado da província de Fuquien para as áreas de Swatow e de Swamei, na costa norte da província de Cantão. Daqui, distribuem-se para nordeste, ao longo da costa de Fuquien, e para sudeste, até Hong Kong, onde constituem uma escassa minoria da população flutuante local, concentrando-se predominantemente na área de Tai Po. Até ao momento, ainda não detectámos núcleos de Hok-lou baseados na área de Macau, mas não é de excluir que possam estar aqui representados. O termo cantonense Hoklou ( 鶴佬) literalmente, "Homem-grou", que é um termo depreciativo, parece derivar do facto de a primeira sílaba da palavra Fuquien - isto é, 福建 Hók-Kien, naquele dialecto, ser dita no mesmo tom que a palavra 鶴 hók, 'grou' (Grus chinensis, da Zoologia), em cantonense. Isolados pela sua língua difícil, os Hoklou são um dos grupos menos descritos da literatura antropológica e, à parte refe-rências esporádicas, desconhece-se qualquer texto que se ocupe deles em exclusivo. Para além da lín-gua, que a distingue da população marítima canto-nense, esta subcultura é detectável por outros atributos externos, de entre os quais referiremos certos pormenores na construção das embarcações; estas, tendem a apresentar amuradas que se prolongam para além da proa e motivos em forma de olhos, pintados nas amuras, referidos por tái ngán kâi, ( 大眼雞)literalmente 'galinhas de olhos grandes', pelos pescadores cantonenses, que não praticam este costume e nele encontram motivo de troça. É curioso que a miniatura que se encontra no templo chinês da Barra, em Macau, apresenta justamente estas características, o que parece sugerir que, no passado, a presença dos pescadores de Fuquien nesta área deveria ser significativa (3).

Aspecto do Porto Interior de Macau.

A maioria dos pescadores da província de Cantão - e. certamente, a quase totalidade dos pescadores de Macau - pertencem à categoria Tanká, que é o termo cantonense aplicado à po-pulação que vive em barcos e que fala cantonen-se. Esta designação, que tem uma conotação der-rogatória. é usualmente representada na escrita pelos carácteres 蛋家 o que é interpretado como 'casa(s) do(s) ovo(s)' ou 'família(s) do(s) ovo(s)'; isto, é às vezes explicado por recurso à configuração de um certo tipo de embarcação, utilizada pelos marítimos. Temos ouvido esta explicação da boca de gente de terra, tal como é recolhida no Glossário do Dialecto Macaense:

"(...) O tancá é barco de pesca ou de transporte a pequenas distâncias e serve também de habitação. É parcialmente coberto com um toldo em forma de túnel e daí lhe veio o nome (v. étimo) (...) Étimo - Ch. tán ká 蛋家, literalmente 'ovo-ca- sa', isto é, casa em forma de ovo, talvez porque o pequeno barco, com seu toldo, faz lembrar um ovo boiando. A palavrasignifica também 'fa-mília', donde tancá aplicado à gente do mar. (...)"

(Batalha 1977:277-8)

Contudo, existe outra versão aparentemente bastante difundida em Hong Kong:

"(...) diz-se que esta gente costumava pagar os impostos em ovos (...) os pobres pescadores não tinham dinheiro, não tinham moedas de prata a tilintar nos bolsos. Provavelmente, trocavam o peixe, no mercado, por outros bens que só existem em terra. Criavam galinhas a bordo e entregavam os ovos aos cobradores de impostos (...) É por isso que esta gente tem sido chamada Tan-ká - um termo simultaneamente oficial c coloquial, lógico e pitoresco (...)"

(Kani 1967:6, nossa tradução)

Embora interessantes em si mesmas - enquanto reveladoras do modo como a gente de terra encara a gente do mar - estas explicações são contudo pouco satisfatórias, visto que, à parte outras razões, a população flutuante é por vezes designada, nos textos chineses mais antigos, pelo carácter 蜑. Ora, apesar de a sua pronúncia de 蜑 ser a mesma que 蛋 Tán, 'ovo', o seu significado é bastante diferente (Kani 1967:6). Por conseguinte, tudo leva a crer que o carácter 'ovo' tenha sido utilizado, entre outros, para representar, na escrita, a fonética do termo Tán que etimo-logicamente teria outro sentido. Uma derivação deste raciocínio assume a forma de uma hipótese que defende que a palavra se refere, originariamente, a uma tribo aborígene do Sul da China, e teria sido aplicada, por extensão, à população marítima (Lo 1963; Ho 1965; Eberhard 1968). Voltaremos a esta questão, mas de momento re-tenhamos apenas que, à falta de dados, estas suposições não ultrapassam o nível conjectural - a origem do termo permanece obscura e aguarda a clarificação do filólogo. Seja como for, a designação Tanká tem um estigma pejorativo e, embora empregue entre os próprios pescadores, é considerada ofensiva quando usada por estranhos, de forma algo idêntica ao modo como, um pouco por toda a parte, as minorias étnicas se ressentem de formas de linguagem que as denigrem, ou que lhes negam um estatuto de humanidade. Em contrapartida, os assim referidos reservam para si mesmos a designação de 水上人 Sôi seong iân, literalmente 'gente sobre água'. O facto é que a gente do mar se ressente de ter vindo a ser discriminada como minoria socialmente desprezada que, tradicionalmente, tem vindo a ocupar o escalão mais baixo da estratificação social do Sul da China. A gente de terra aponta-os como exemplos de promiscuidade sexual e de outras características indesejáveis, e é sempre referido que, antigamente, lhes era proibido fixar-se em solo firme, lhes estava interdito o casamento com gente de terra, assim como lhes estava vedada a autorização a candidatarem-se aos Exames Imperiais.

Como se sabe, o sistema de recrutamento da burocracia, na China, processava-se através de exames escritos, públicos, organizados pelo Estado. Por um lado, os burocratas tinham, efectivamente, acesso ao poder e, por outro, a estrutura administrativa requeria pelo menos um burocrata em cada distrito. Simultaneamente, os exames eram abertos a todas as classes; isto implicava que, finalmente, os Exames Imperiais assumissem um papel crucial como factor de mobilidade social. Contudo como referíamos acima,

"(...)nem todos os chineses podiam concorrer a esses títulos literários, sendo os exames do Estado vedados, até à terceira geração, a todos os indivíduos que desempenhassem profissões desonrosas, como sejam: os curandeiros, os adivinhos, os astrólogos, os fisionomistas, os actores, os descendentes de meretrizes, os carrascos, os serventes das repartições do Estado, os carcereiros e os mendigos. Em 1733, o imperador lông-Tchêng incluiu no número dos proscritos os Tán-ká, raça autóctone hoje dedicada às lides do mar e que era e é considerada de uma descendência inferior à dos chineses (...)"

(Gonzaga Gomes 1952:15)

Porém, o Professor Chen Hsu - ching, que levou a cabo uma pesquisa documental neste domínio, embora estando de acordo que poucos pescadores pudessem ter alcançado mesmo os escalões inferiores da burocracia, constatou a ausência de decretos imperiais, ou de qualquer outra legislação, visando a exclusão dos Tanká, pelo que foi forçado a concluir que esta atitude seria fruto de preconceitos locais, e não de qualquer política oficial (Chen 1949:109). Ora, tal como é dito acima, tudo isto é justificado como se os pescadores pertencessem a uma "raça de descendência inferior à dos chineses", ou seja, como se a população em questão não fosse de facto chinesa.

De facto, a gente de terra conta histórias acerca das suas alegadas disformidades físicas - uma delas, recolhida por Barbara Ward (1965: 115), é de que os pescadores nascem com seis dedos em cada pé - e é frequente ouvir chineses educados atribuir-lhes distinções somato-anatómi-cas especiais. A natureza confabulatória de muitas destas suposições pode ser imediatamente detectada por observação directa, visto que os pescadores, que andam muitas vezes descalços, não revelam quaisquer anomalias morfológicas. Por outro lado, é um facto que há certos traços físicos que permitem detectar facilmente a gente do mar:

"(...) Com a musculatura bem desenvolvida, forte arcabouço e a pele tisnada pelo Sol, os pescadores formam a classe mais sadia da população chinesa. (...) O seu aspecto físico é atarracado, com os membros inferiores sensivelmente mais curtos, decerto devido ao facto de serem obrigados a passar a maior parte da sua vida agachados dentro dos baixos. e estreitos cubículos das suas embarcações, isto através de gerações e gerações. Este facto deforma também o seu andar sendo, por isso, facilmente reconhecíveis, quando aparecem nas ruas da cidade (...)"

(Gonzaga Gomes 1949:34)

Porém, estes traços físicos que permitem identificar os pescadores (tez mais escura, andar bamboleante, relativa hipertrofia muscular do tronco e dos membros superiores, em assimetria com relativa hipotrofia muscular dos membros inferiores), poderão mais prontamente ser explicados em função da respectiva adaptação a um meio aquático, do que através do recurso a hipotéticas diferenças raciais. De facto, esta é a conclusão a que chegam Chen (1935), Balfour (1941), Ward (1965) e Anderson (1970), e de resto esta parece ser também a posição oficial da República Popular da China, que não inclui os Tanká na lista das 65 minorias nacionais daquele país (Fei 1981). O critério de observação directa parece também válido no plano linguístico, visto que toda a gente pode ouvir que os Tanká falam cantonense, embora com sotaque e vocabulário próprios do seu modo de vida especializado. O linguista John Mc-Coy da Universidade de Cornell, que se ocupou do falar dos pescadores de Kau Sai (Novos Territórios, Hong Kong) observa que a utilização de termos relacionados com a pesca e com a vida a bordo - mesmo que em número reduzido no léxico total - pode induzir uma impressão de estranheza no nativo da mesma língua que não esteja familiarizado com este contexto, devido à alta frequência da sua ocorrência; este facto, aliado às diferenças fonológicas ("sotaque") pode levar o observador a exagerar variações que são mínimas em termos de relação linguística (McCoy 1965:50). Assim, o linguista não detecta no falar dos pescadores a presença de quaisquer elementos gramaticais ou fonológicos de origem não-chinesa, que pudessem apoiar a hipótese da origem tribal da população (McCoy 1965:60). Convém frisar que, contrariamente à opinião popular, a gente do mar não tem uma língua própria, ou seja, os pescadores do Sul da China falam diversas línguas - os chamados dialectos da China - que são referenciáveis, tal como as suas variações subdialectais, aos falares próprios das regiões costeiras da sua proveniência (McCoy 1965). Em contrapartida, não deixa de ser verdade que a esmagadora maioria da população flutuante permanece analfabeta; que o casamento com gente de terra é pouco frequente (endogamia étnica) e, "quando ocorre, verifica-se na forma de alianças de mulheres do mar com homens de terra (hipergamia), desconhecendo-se a existência de reciprocidade de trocas matrimoniais em sentido inverso (hipogamia); e que, finalmente, o grupo tem sido alvo de preconceitos que ele próprio interiorizou, e que fazem parte da sua configuração psicológica, que se projecta em atitudes de grande reserva e desconfiança face aos estranhos e às autoridades.

Várias teorias têm sido propostas para explicar a origem da população flutuante do Sul da China. Embora não seja nossa preocupação averiguar a origem física ou cultural dos Tanká, as diversas teorias a este respeito devem ser alvo da nossa atenção, visto que, como acabamos de ver, a opinião popular e alguma da escassa literatura acerca da comunidade piscatória, tenta dar conta das suas diferenças culturais através do recurso ao argumento de que a população não é chinesa, ou seja, como se não fosse de ascendência Han (漢)- origem reivindicada pelos outros cantonenses. Deixada por examinar, esta premissa funciona como um mito -isto é, assume o papel de uma explicação que, independentemente da sua validade, é invocada para justificar atitudes e interpretar comportamentos.

Não nos ocuparemos aqui das narrativas dos enciclopedistas chineses, que explicam a origem da gente do mar, e de outros 'bárbaros', a partir de animais. Estas são compiladas por Cheng (1935) e não voltaremos a referi-las. Do mesmo modo, os ocidentais têm especulado sobre hipotéticas migrações das Filipinas, da Malásia ou da Índia (Menard 1965), mas estas conjecturas não se têm apoiado sobre factos, e os dados históricos, linguísticos e etnográficos, vão no sentido de a população flutuante do Sul da China ter aqui vivido desde que há referência à sua existência como grupo demarcado.

Uma das teorias que tem recebido mais credibilidade é a da origem da população a partir das tribos aborígenes da região. A nossa exposição segue a de Wiens (1954) que baseia o seu trabalho em Eberhard. Segundo estes autores, a população marítima seria descendente dos Yueh (粤); estes, que corresponderiam aos 'Viet' do Vietname, eram os habitantes do Sul da China quando os chineses Han (em cantonense Hón), vindos do norte, se instalaram nesta região há cerca. de 2000 anos. A designação Yueh englobaria várias tribos, que foram assimiladas pelos chineses, ou que estes pressionaram a deslocar-se para sul; um desses grupos - os Tán, de onde seria derivada a designação Tanká — teria resistido ao processo de assimilação, preservando a sua identidade, e estaria na origem da população marítima. Porém, segundo Eberhard, a cultura Yueh não tinha um carácter distinto, mas era fruto do entre-cruzamento de várias culturas, que precedeu o aparecimento da designação Yueh como conceito político, no século VII A. C.. Este processo de fusão - que integraria, pelo menos, elementos Yao, Tán e T'ai (ou Chuang) - foi interrompido pelo avanço dos Han, e absorvido no caudal da sua cultura (Wiens 1954:41-43). Ora, se a cultura Yueh continha elementos Tán, então, ou estes já faziam parte do complexo cultural do Sul da China, ou pelo menos integravam-no parcialmente,ou, em ultima instancia, estas culturas não poderiam ser estranhas entre si. Mais ainda, nada parece obstar a que o processo de assimilação não tivesse continuado a fazer-se sentir depois do século VII A. C., e, de facto, há dados comprovativos da maneira como, nos últimos séculos, o avanço da cultura Han foi absorvendo aquilo que no passado fora Yueh - ou expelindo para além das suas fronteiras aqueles que resistiram a esta assimilação. Por conseguinte, parece plausível que, nos 2500 anos que se seguiram desde a emergência da cultura Yueh como conceito político, tenha havido ampla oportunidade para que os Tán - que estariam bem mais acessíveis do que as remotas tribos das montanhas - tenham sido assimilados pelos povos que os rodeavam. Finalmente, na falta de dados biológicos, linguísticos e culturais que fundamentem a ideia de que os Tanká representam uma sobrevivência das protoculturas do Sul da China, parece difícil rebater a posição de que a população flutuante não seja nem mais nem menos de ascendência Han que os outros cantonen-sesíWard 1965:118).

Outra teoria defende que a população flutuante é composta de descendentes de gente de terra, que se refugiou no mar durante períodos de guerra e de crise política. Um inspector da alfândega marítima de Xangai recolhe a seguinte versão:

"(...) durante a dinastia Sung havia um Imperador que andava em guerra com os seus inimigos. Tendo de partir em campanha, deixou o destino da nação nas mãos de dois dos seus ministros, que lhe mereciam a maior confiança. E triste ter de relatar que estes ministros esqueceram o seu dever. ao ponto de conspirarem com o inimigo. Quando o Imperador regressou triunfante, ficou de tal modo furioso que mandou emitir um decreto, segundo o qual, de ali em diante, os dois ministros conjuntamente com as respectivas famílias e parentes, as suas mulheres e os seus filhos, a sua criadagem e os seus descendentes, os seus animais domésticos e as suas aves de criação, seriam mandados viver em barcos e nunca mais poderiam residir em terra. Mais ainda, ficavam interditos de se candidatarem aos Exames Imperiais, assim como não poderiam assumir quaisquer cargos oficiais ou possuir terras (...)"

(Worcester 1959:94-95, nossa tradução)

Do mesmo modo, também é relatado que a população flutuante do rio Min,

"(...) se supõe ser descendente de certos grupos que organizaram uma revolta, no início da dinastia Manchú, contra a opressão dos conquistadores vindos do norte, e que, devido a este crime, foram privados do direito de possuir terras - que é tão querido ao coração de todos os chineses - sendo condenados a viver, para sempre, em barcos (...)"

(Sowerby 1929:26, nossa tradução)

Por seu turno, o Professor Chen Hsu-ching, nas suas pesquisas em Shannan, na província de Cantão, encontrou um registo genealógico da família Liang que diz que os seus antepassados tinham escolhido este modo de vida para evitar hostilidades durante a dinastia Sung (Chen 1946: 18-19). Mais recentemente, em Castle Peak, Hong Kong, foram recolhidos depoimentos análogos:

"(...) Chau Wing-yin, filho de pescadores, educado na Universidade de Hong Kong e em Londres, pensa que a população flutuante é descendente de chineses do norte, leais à dinastia Sung, que se refugiaram no mar para escapar aos Mongóis (...) muitos pescadores são descendentes directos de gente de terra que aqui se refugiou durante os tempos incertos da Rebelião Taiping, ou em períodos de pobreza, no século XIX. Muitos ainda se recordam de histórias destes tempos, que lhes foram contadas pelos seus avós (...)"

(Anderson 1970:14-15, nossa tradução)

Aspecto do Porto Interior de Macau.

Assim, parece haver motivos para crer que, no decurso da história, se tenham verificado movimentos demográficos, no sentido de terra para o mar, o que mais sugere que a população flutuante não seja racialmente distinta. Presen-temente, constata-se um refluxo no sentido con-trário - as inovações tecnológicas introduzidas nos últimos 20 ou 30 anos (navegação a motor, téc-nicas de refrigeração, técnicas de pesca de arrasto, novos tipos de embarcações adaptadas à pesca de alto mar, etc.) têm sido acompanhadas de um movimento demográfico no sentido da fi-xação em terra, onde os pescadores podem vir a "passar dissimulados" entre a população local. As nossas observações em Macau confirmam que os pescadores que se sedentarizam em terra, adqui-rindo por vezes outras profissões e vendo-lhes facultado o acesso à educação, tendem a ser pro-gressivamente menos 'detectáveis'; este facto po-de ter passado despercebido, ao longo dos tem-pos, dado que a população tem o cuidado de ocul-tar as suas origens.

Como se pode ver pelo exame sucinto das di-versas teorias que tentam dar conta do problema das origens das populações flutuantes, nenhuma delas parece dispor de argumentos muito sólidos sobre que se apoiar. De tal modo que parece ainda actual a seguinte conclusão:

"(...)a que tribo, ou raça, possam um dia ter per-tencido, ou com que possam ter estado relaciona-das, permanece desconhecido (...)"

(Chen 1935:272, nossa tradução)

Assim, embora não seja de. excluir a possibilidade da influência de elementos tribais na gente do mar, há dados que sugerem que não se trate de um grupo homogéneo, enquanto que, reciprocamente, tudo parece indicar que a gente de terra não esteja, ela própria, isenta desta influência.

Sân U-'Peixes Sagrados'no Templo da Barra (Ma Kok Miu).

À primeira vista, os pescadores chine-ses do Sul da China, com o seu modo de vida altamente especiali-zado, apresentam-se como um caso extremo de adaptação ao meio que os teria diferenciado den-tro da cultura chinesa - que evoluiu a partir de uma sociedade de raízes agrárias; o seu nomadis-mo, ajustado a um meio aquático, ter-lhes-ia difi-cultado o acesso à escolarização, distanciando-os do curso de uma civilização oue se desenrolou de-baixo da influência de uma poderosa tradição es-crita. Logo, não seria de estranhar que daqui de-corresse um conjunto de aspectos de natureza sócio-cultural, próprios da comunidade piscatória, cuja caracterização restaria efectuar. Dito de ou-tro modo, para voltar a uma questão já abordada, se os Tanká, não obstante próximos fisicamente, tivessem permanecido remotos socialmente, po-deria dar-se o caso. da atitude de a gente de terra, que não os considera 'chineses', se revelar válida -não no sentido racial, mas sim na acepção cultural do termo.

Assim, como já tivemos oportunidade de ver, os argumentos tradicionais para o isolamento social dos Tanká seriam: a proibição de residir em terra, a exclusão dos Exames Imperiais e a prática da endogamia.

Sabemos que, desde o século XVIII, a população fora autorizada por decreto imperial a instalar-se em solo firme (Tien 1985: VIII), e vimos que aqueles que o fizessem estariam em posição de se vir a miscigenar com os seus congéneres de terra, mas para os restantes que permanecessem no mar, o acesso à educação seria praticamente impossível. Este facto, como constatámos, teria resultados particularmente graves para o grupo durante o antigo regime mas, de momento, inte-ressa-nos encarar as suas consequências sob outro ângulo. Assim, algumas das razões que são fre-quentemente apontadas para dar conta da notável uniformidade e continuidade da civilização chine-sa, ao longo da sua considerável extensão no es- paço e no tempo, estão relacionadas com a pre-sença de um sistema de escrita flexível, aliado a certas circunstâncias históricas que possibilitaram a ascensão de uma burocracia que, através de um sistema de exames públicos, se manteve permeá-vel ao talento. Recorde-se que um dos aspectos dignos de reparo nestes exames, através dos quais se processava o acesso aos escalões da burocracia, era a sua natureza - e, consequentemente, da edu-cação que para eles preparava, e que por vezes se arrastava por períodos de mais de 20 anos - cen-trada sobre os textos clássicos, com particular ên-fase na doutrina social de Confúcio. Logo, os bu-rocratas eram os elementos que mais se distin-guiam no seio da classe mais vasta da população que, por toda a nação e em todas as épocas, parti-lhava esta educação, ou seja as mesmas normas, valores e ideais confucianos, através dos quais mo-delava a sua conduta social - a classe dos letrados, a gentry. Simultaneamente, dado o prestígio dos letrados, não é de surpreender que estes padrões ideais fossem admirados, mesmo que nem sempre pudessem ser imitados na prática, e utilizados co-mo índices de estratificação social pelas outras classes que a eles aspiravam. Mais ainda, as san-ções de ordem social eram impostas pelos buro-cratas, eles próprios letrados, o que assegurava a vasta influência destas normas (Fei 1946, 1953; Ch'u 1957; Kracke 1957). Assumindo a validade destes pressupostos, poderíamos daqui inferir que o sistema social tenderia a verificar maior unifor-midade naquelas áreas que estavam sob a esfera de influência dos letrados e, reciprocamente, seria de esperar maior diversidade, quer no espaço quer no tempo, nos sectores onde estas normas fossem irrelevantes. Ora o facto de, até há poucas dé-cadas, muito poucos Tanká terem tido acesso a qualquer forma de educação, mais tornaria plau-sível a hipótese de a sua organização social apre -sentar desvios significativos dos padrões ideais da cultura chinesa. E, no entanto, a observação dos factos parece não confirmar esta hipótese - a lín-gua, a estrutura social, a personalidade e outros aspectos da cultura da gente do mar, apresentam variações que, de um modo geral, se enquadram nos limites da diversidade encontrada na cultura chinesa.

A imagem tradicional do isolamento social dos Tanká parece ter subestimado o facto de que, independentemente das suas origens étnicas, ou de certos traços culturais que os diferenciam, a gente do mar e a gente de terra têm estado es-treitamente relacionadas, ao longo dos tempos, no plano económico. O sector das pescas não está economicamente isolado, constituindo um subsis-tema da economia dos aglomerados urbanos junto dos quais os pescadores operam. Essencialmente, trata-se de um ramo de actividade onde o capital escasseia e que depende da extracção de um recurso natural incerto - o peixe. Esta indústria re-quer um investimento de capital relativamente elevado em embarcações e equipamento, exercen-do-se no contexto de uma cultura onde certas des-pesas socialmente necessárias - por exemplo, no casamento - são também elevadas. O financia-mento pode processar-se de várias maneiras, mas a prática mais usual é o negociante de peixe (魚欄 ü lán), que pertence à gente de terra, adiantar o capital sob a forma de empréstimos. Em contra-partida, o pescador compromete-se a vender o peixe ao credor, que o adquire com uma redução, e que posteriormente o transacciona para os mer-cados. O pescador recebe o valor de venda do pei-xe, depois de deduzidas a comissão do negoci-ante e a comissão de venda do mercado. A comis-são do negociante não é fixa e pode variar com o montante do débito. Entretanto, por outro lado, o pescador adquire equipamento e bens de consu-mo, muitas vezes a crédito, junto de comerciantes retalhistas, que também são gente de terra; o de-vedor paga o que pode, quando pode; segundo a tradição, a conta deve ser saldada durante o Ano Novo Chinês. Quer dizer, a relação de emprésti-mo com o negociante de peixe tem como reverso, digamos assim, uma relação de crédito com o comerciante retalhista. Este sistema de crédito e empréstimo, possui dois aspectos que parecem de reter: por um lado, na sua ausência a produção não seria viável - a existência de relações de cré-dito a longo prazo, que actuam como lubrificantes de sistemas económicos que delas dependem, não são apanágio exclusivo do Sul da China; por outro lado, trata-se de um sistema eminentemente loca-lizado - quer dizer, as transacções processam-se através de relações interpessoais, de modo que os empréstimos e o crédito são conferidos, não me-diante a garantia de uma entidade bancária ou de outro fiador, mas com base na confiança, e sem outras formalidades que não sejam as de um acor-do verbal. Finalmente, este sistema parece estar associado à emergência de uma multiplicidade de pequenas firmas de negociantes de peixe: um dos factores reside na contingência de o próprio cre-dor dispor de um pequeno capital; outro factor é que o número de devedores que ele pode conhe-cer suficientemente para neles depositar confian-ça, e aceitar o risco do investimento, é neces-sariamente limitado. Temos assim que este tipo de mercado não é governado pela política do gover-no, nem pela livre concorrência, mas sim por re-lações interpessoais - laços sociais criam laços económicos e as relações económicas, por sua vez, dependem de relações pessoais. Este é um dos motivos responsáveis pela relativa estabilidade das comunidades piscatórias, que é muito superior àquela que lhes é atribuída, sobretudo pelas ca-ricaturas grosseiras que as representam como nó-madas errantes; sem uma base fixa, os pescadores seriam incapazes de obter os empréstimos e o crédito que lhes são essenciais. Estas relações in-terpessoais entre a gente do mar e a gente de terra, de que depende a economia das pescas, estão alicerçadas num conhecimento mútuo de longa data e requerem contactos regulares e fre-quentes, muitas vezes acompanhados de entreteni-mento em casas de chá e restaurantes, etc.. Quer dizer, em face desta contínua interacção com gen-te cujo estilo de vida sabem que devem adoptar, caso aspirem a alcançar algum prestígio na sua sociedade, os Tanká só poderiam ter mantido uma cultura diferente caso tivessem rejeitado firme-mente este processo de assimilação, tal como sucedeu com certas tribos das regiões montanho-sas do interior da província de Cantão - por exemplo, os Yao e os Li. Porém, o que se tem vindo a verificar tem sido justamente o contrário, sendo de prever que o processo de modernização em curso venha a acelerar o movimento de acul-turação no sentido de terra.

Postas estas reservas, parece ter chegado o momento de referir que, contudo, a gente do mar parece ter retido certos aspectos que a distinguem da cultura Han ou, pelo menos, do padrão social-dos letrados. Estes traços distintivos serão apro-fundados pontualmente no âmbito de outros tra-balhos a apresentar oportunamente; para os pre-sentes fins, a enumeração destas diferenças terá de ficar a nível de esboço, como se segue:

• os pescadores não têm linhagens nem clãs, e não consideram definições alargadas de parentesco para além da família extensa; curiosamente, a li-teratura da especialidade atribui à linhagem uma posição central na organização social das comuni-dades rurais do Sul da China (Freedman 1958, 1966; Baker 1968);

• certas particularidades dos seus rituais de casa-mento não se verificam entre a gente de terra;

• utilizam estatuetas de madeira, em vez de ins-crições nas placas ancestrais (神主牌 sân chu pai) para representarem e venerarem a alma dos seus familiares mortos;

• consideram certos peixes sagrados (神魚 sân ü) e, se os capturam, oferecem-nos às divindades nos templos;

Uma 'tancareira' - mulher que se ocupa do transporte de passageiros no Porto Interior de Macau.

• dizem-se pouco afectados pela geomancia (風水 fong sôi, literalmente vento-água) que, na acepção que lhe é atribuída pela gente de terra, é "o efeito que a organização espacial dos edifícios, das ár-vores, dos túmulos e de outros acidentes no solo,se acredita ter no destino e na sorte dos indivíduos e dos grupos" (Topley 1964: 171, nossa tradução);

• têm canções folclóricas próprias, sem equivalentes em terra;

• usam um certo tipo de chapéu que os distingue,. as mulheres têm uma maneira de se adornar com brincos e pulseiras que é característica.

Já referimos outras particularidades que agora recordamos, em jeito de sumário:

• residem principalmente em barcos e, secundariamente, em habitações construídas sobre estacas junto à margem;

especializam-se em modos de vida baseados na água: pesca, transportes de carga e de passageiros, etc.;

a maioria dominante relega-os para o escalão mais baixo da estratificação social do Sul da China;

a gente de terra considera-os um grupo à parte: as fronteiras desta demarcação são impostas pelos limites do casamento - praticam a endogamia, embora a hipergamia seja possível e a hipogamia se desconheça;

falam cantonense com ligeiras variações dialectais; a esmagadora maioria permanece analfabeta.

1 Estatuetas utilizadas pelos pescadores para representar os familiares mortos, expostas para venda num 'santeiro', em Macau.

2 Miniatura alusiva à fundação do Templo da Barra (Ma Kok Miu).

Sob outros aspectos, a comunidade piscatória parece oferecer um panorama cultural e social que, de um modo geral, encontra paralelo noutras comunidades chinesas noutros contextos. Por outro lado, as particularidades referidas são pouco acentuadas, fazendo parte de um conjunto de variações superficiais que se inscrevem num pano de fundo de características inconfundivelmente chinesas. Apesar disto, a gente do mar permanece um grupo distinto e tudo indica que o estigma que a demarca tenha vindo a manter-se constante, facto que torna este problema ainda mais intrigante: não que sejam segregados por serem física ou culturalmente diferentes - quando, como vimos, não o são tanto quanto se pensa - mas justamente pelo motivo contrário, por apesar de semelhantes serem demarcados como se fossem distintos. Tudo se passaria como se a gente de terra visse nos pescadores algo que não é 'chinês': pessoas que residem em barcos e que vivem da pesca - e que, portanto, não reúnem atributos de respeitabilidade agrária - ou que ganham a vida a transportar carga ou, 'pior ainda', passageiros. Esta última ocupação, que corresponde à visão do cais, que a gente de terra tem mais frequentemente do mundo flutuante - e, por conseguinte, aos seus olhos a mais 'típica' - é um dos modos de vida dos Tanká, que conta com um elevado número de mulheres que são patrões de embarcação, o que parece um 'grave' desvio do papel tradicional da mulher na sociedade chinesa. De facto, entre os pescadores é raro encontrarem-se casos em que o patrão da embarcação seja uma mulher - razões de ordem social (obtenção de relações de crédito) e mesmo de ordem física, tornam a pesca em mar aberto pouco adequada às mulheres. Porém, em águas abrigadas, é possível para mulheres cujos maridos trabalham em terra, ou para as suas filhas solteiras, por exemplo, organizarem por si mes-mas o transporte de passageiros em pequenas em-barcações, que normalmente operam nas áreas dos portos ou dos ancoradouros. É curioso que o dialecto macaense tem um termo próprio para de-notar esta ocupação - as tancareiras - termo este que, no masculino, é extensivo a toda a população flutuante - a designação tancareiro é aplicada ge-nericamente aos pescadores, embora como se pode ver pelas razões apontadas, se trate de um estereotipo derivado de um alvo fácil, que parece ter o poder de cativar a imaginação da gente de terra (cf. Batalha 1977: 277-8; Senna Fernandes 1950).

Seja como for, se muitas das pseudo-carac-terísticas impugnadas à gente do mar, de mais não resultam que das projecções etnocêntricas da gente de terra, continua de pé a questão de dar conta da persistência de certas diferenças culturais acima referidas. A dificuldade em chegar a posi-ções concludentes a este respeito, parece trans-parecer, de imediato, na maneira como o proble-ma tem sido tratado pelos analistas. Assim, por exemplo, foi sugerido que o culto do 'peixe sagra-do' poderia indicar a origem tribal da populacão, por estar relacionado com o culto de dragões e de serpentes dos Yueh (Eberhard 1968); mas tam-bém foi admitido que pode tratar-se apenas de outra forma de adaptação ao meio aquático, re-conhecendo a natureza misteriosa de certos ani-mais marinhos (Anderson 1972); ou ainda, suge-rido que estes e outros elementos, tais como as pulseiras e os brincos, apresentam muitas varia-ções regionais noutras partes da China, e podem não representar mais do que marcas de diferen-ciação e de orgulho local (Ward 1965). Esta úl-tima ideia afigura-se-nos terreno mais sólido, e, pessoalmente, ocorre-nos desenvolvê-la sob a for-ma de uma hipótese - não contraditória, mas su-plementar - que iria no sentido da leitura destes traços culturais como 'símbolos sociais': quer di-zer, em vez de tentar entender esta cultura em abstracto, parece necessário observá-la 'em ac-ção', ou seja, no contexto de um determinado sis-tema social. Esta posição poderá ficar mais clarifi-cada através do recurso a um caso ilustrativo. To-memos, por exemplo, as variações de trajo étnico, e consideremos em particular a diversidade de chapéus de bambú, que são tão característicos do folclore do Sul da China. Um pouco por toda a parte é sublinhada a necessidade de proteger a ca-beça do sol: as pessoas mais importantes usam sombrinhas, a classe trabalhadora cobre-se com chapéus. Existem vários tipos de chapéus de bam-bú, e estes são, geralmente, identificados com de-terminados grupos étnicos que revelam tendência para os preferir. Estas diferenças são pouco per-ceptíveis no contexto urbano, mas ainda hoje se apresentam de modo flagrante, por exemplo, nas áreas rurais dos Novos Territórios de Hong Kong. Assim, os pescadores usam um tipo de chapéu de bambú que:

"(...) tem a forma de uma tigela. É um chapéu barato, mas robusto, que assenta na cabeça como uma tigela invertida. Não é tão vulnerável às raja-das de vento como os chapéus de abas largas e, por conseguinte, é preferido pela gente do mar. A gente de terra chama-lhe 'chapéu Tanká', enquan-to aqueles lhe chamam 'chapéu de bambú'. É raro ver gente de terra com estes chapéus (...)"

(Blake 1981:111, nossa tradução)

Em contrapartida, os agricultores Hakka (客家) usam outro tipo de chapéu que é, pre-cisamente, conhecido por este nome:

"(...) Este tipo de chapéu consiste num disco de bambú entrelaçado, de cerca de 40 cm de diâmetro. Tem um orifício no centro que assenta sobre a cabeça. Por cima do orifício é dobrado um pano que é atado com uma faixa que passa sobre a aba e por debaixo do queixo (...) Na orla do disco é cosida uma franja de pano de algodão, com uma largura de cerca de 4 cm. Esta franja dá um toque feminino ao chapéu e possui um valor simultanea-mente prático e expressivo. Oculta a cara do sol e protege a pele do rosto. Também funciona como um véu que dá ênfase à modéstia feminina. Este chapéu é usado exclusivamente por mulheres (...)"

(Blake 1981: 109, nossa tradução)

Ora é curioso que, noutras regiões, os mes-mos chapéus podem distinguir outros grupos sociais:

"(...) observei em filmes sobre uma comuna na re- gião sul de Paoan [ província de Cantão ] que as mulheres usavam 'chapéus Hakka' e que os ho-mens usavam chapéus em forma de tigela (...)"

(Blake 1981: 117, nossa tradução)

Quer dizer, o chapéu com franja, que é geralmente associado ao grupo de língua 'Hakka', tem um carácter regional, capaz de variações que podem mesmo excluir outros grupos Hakka noutras áreas geográficas. O que se pretende sugerir com tudo isto, é o sentido de posição de certos elementos da identidade de uma comunidade que, por vezes, se supôs estarem profundamente enraizados no seu substracto racial ou cultural. Talvez aqui estejamos a aflorar algo que nos pode fornecer uma pista para uma melhor compreensão do problema que vínhamos a abordar: um grupo étnico parece não retirar a sua identidade, em toda a parte, dos mesmos traços culturais, mas sim do sentido de posição derivado do papel que desempenha num determinado sistema social. No presente caso, a polaridade cultural entre a gente do mar e a gente de terra esconde uma relação de complementaridade social, consistente com um padrão de exploração de certos recursos do meio segundo uma base de organização de determinados papéis - pescadores vs. agricultores, mão-de-obra vs. capital, etc. Já tínhamos constatado que a persistência de certas diferenças culturais parece não fazer sentido em termos de persistência tribal - visto que, como referimos, a contínua interacção teria dado lugar a um processo de aculturação. Agora, pretendíamos ir mais longe, e sugerir que os grupos reconhecem e mantêm essas diferenças através — e não apesar - dessa interacção. Quer dizer, embora a interacção conduza a um processo de aculturação, não só não elimina necessariamente as demarcações entre as comunidades, como pode, pelo contrário, conduzir à sua ossificação -na medida em que consagra as distinções de cada grupo, em função da posição que cada um deles assume dentro de um processo de organização social das suas diferenças culturais. Daí que a identidade da gente do mar pareça não tanto fruto do seu isolamento racial ou cultural, mas sim do seu relacionamento social com a gente de terra. Esta relação de alteridade exprime-se de forma dramática num dos seus ditados, em que se auto-retra-tam assim: sôi seong yat t'iu long; lôk seong yat t'iuch'ong 水上一條龍;陸上一條蟲.

(Verdadeiros dragões no mar; vermes miseráveis em terra).

1 Uma associação clânica, em Macau.

2 Uma associação de naturais, em Macau.

3 'Lanes' - negociantes de peixe, em Macau.

Embora as tradições locais e as influências externas ofereçam um contraste flagrante no panorama social de Macau, convém ter presente que as primeiras são, elas próprias, marcadamente diversas. A administração portuguesa adoptou uma atitude laissez--faire de não interferência nos costumes locais,que permite uma expressão relativamente livre da organização social tradicional, desde que esta não interfira com o status quo. Estas diferenças culturais entre as comunidades locais, embora geralmente sem clivagens ao nível da estrutura social e de valores fundamentais, assumem por vezes a forma de nichos étnicos, que são pretexto para uma retórica segundo a qual uns são mais 'chineses' ou mais 'civilizados' do que os outros - sendo as duas categorias empregues como sinónimos.

Entre os chineses, o nome de família e as conexões genealógicas, a língua e o dialecto, o local de nascimento e a especialização profissional, constituem critérios tradicionais segundo os quais os indivíduos e os grupos são classificados e a interacção é estruturada. A aplicação destes critérios coloca, por vezes, a comunidade piscatória para além das fronteiras da 'civilização', não obstante quem quer que tenha contactado com a gente do mar, conheça a sua insistência em reivindicar origem chinesa, independentemente de a sua cultura poder estar modificada por um processo de adaptação a um meio que a maior parte da gente de terra não tem de enfrentar. A análise da polaridade entre a gente do mar e a gente de terra revela, contudo, um complexo de laços sociais que garantem um certo tipo de ordem, num contexto onde uma apreciação mais superficial poderia ver os germes da anomia. Este processo de organização social das diferenças culturais em Macau, e no Sul da China, parece requerer mais análise e pesquisa.

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NOTAS

(1) A superfície total do Território de Macau é de 15,5 km2, dos quais 5.4 km2 correspondem à área da cidade, 3,5 km2 à ilha da Taipa e 6,6 km2 à ilha de Coloane.

(2) De acordo com a estimativa demográfica, a partir do último censo de 1981 população de Macau é de 426,400 habitantes dos quais 6,500 residem na Taipa e 3,700 em Coloane. A densidade populacional é de 25,200 habitantes por km2 no total do Território, e de 68,800 por km2 na península de Macau. Porém estes números são pouco rigorosos visto que é difícil estimar o número de imigrantes ilegais que, desde a abertura política da China em 1979, continuam a afluir diariamente ao Território. Do valor global apontado, apenas cerca de 3 por cento são de origem portuguesa, a maioria dos quais são euro-asiáticos (hetero-descendentes de vários cruzamentos) que muitas vezes mostram preferência pela utilização do chinês como língua de comunicação entre si. A maioria chinesa divide-se em grupos falando línguas ('dialectos') diferentes. com o cantonense em posição prevalecente e a funcionar como língua franca entre os diversos grupos. Por sua vez. os cantonenses subdividem-se em grupos que apresentam pequenas variações dialectais e, àparte estes, existem ainda núcleos de Tiuchew (Chio Chao), provenientes da região de Swatow na província de Cantão, e de Hakka, que é um grupo cuja origem não está determinada. As variações linguísticas supõem-se associadas a pequenas variações culturais, e este pressuposto condiciona, também, a interacção. Para completar o quadro, o Território tem sido alvo de migrações de grupos provenientes de diversas áreas de tensão política e económica da Ásia do Sudeste (Vietname, Filipinas, etc.). Núcleos de europeus de várias proveniências, a residir temporariamente, juntam ainda mais colorido a esta cena.

(3) O templo chinês da Barra, Má Kók Miu (媽閣廟) consagrado à deusa A-Má (亜媽) literalmente 'Mãe', referido à divindade protectora dos marítimos, Tin Hau (天后), é o ponto de referência mais significativo da população flutuante de Macau, ficando situado à entrada do Porto Interior, que serve de abrigo à maior parte dos pescadores do Território. O Pagode da Barra, de onde deriva o nome de Macau, é anterior à chegada dos navegadores portugueses que o teriam tomado, também, como referência nesta área. Graciete Batalha afirma, sem citar fontes, que "(...) ao tempo, a escassa população desta península era formada principalmente por pescadores originários da província de Fuquien e que foram eles quem erigiu o já mencionado templo da Barra, estabelecendo aí o culto da deusa A-Má (...)" (Batalha 1987:12)

*Dipl. Psicologiainica (ISPA), Lie. Ciências Etnológicas e Antropológicas (ISCSP), Mestrado em Antropologia Social (King's Coliege, Cambridge), bolseiro do 1CM.

**A pesquisa subjacente a este texto foi realizada com apoio de uma bolsa do Instituto Cultural de Macau, a quem estamos muito gratos. As considerações que aqui se tecem são apresentadas com grandes reservas: o presente artigo, elaborado a fim de satisfazer um requisito acordado com o ICM, corresponde à primeira etapa de um projecto de investigação em Antropologia Social e Cultural sobre a comunidade piscatória de Macau, de tal modo que o curto período de redacção surgiu apenas como uma breve pausa de reflexão no decorrer do trabalho de campo presentemente em curso. De momento, limitar-nos-emos a esboçar o problema em analise, recorrendo-nos de. observações de carácter preliminar e provisório. Para os presentes fins. foi adoptado um estilo de comunicação dirigido a um público informado, mas não necessariamente especializado em Antropologia, ou na área etnográfica que o texto versa.

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