Artes

Carlos Marreiros
SEBASTIÃO RESENDE OS SILÊNCIOS EM CLEPSÍDRICA MOVÊNCIA

A essência pictórica da obra de Sebastião Resende está num único princípio: a vida.

Avida que, emanada lá do alto do cosmos, o homem vulgarizou à sua escala rasteira, à mistura com a poeira da Terra.

"Espaço-empo de goometrias dependentes(instalaçõ--acrílico em tela e objectos;130×390×20cms)
Sem rítulo(serigrafia e parcialmente colorida à mã;80×110cms)

Sebastião procura o retorno pelo túnel umbilical das origens, após uma paragem no purgatório uterino da sua condição humana. É a certeza de uma nostalgia do Eden, uma fixação nos espaços primaciais da geometria perfeita e eterna, movendo-se naquele lugar onde formas proto-humanas convivem em infinito silêncio. Os grandes espaços de silêncio organizam sistemas axiais onde orbitam vários tipos de (co)existências.

(Co)existências tridimensionais também, onde oceanos de outrora inundam as quimeras do presente.

Um apontamento constante, uma permanência ainda nas telas de Sebastião, é o mar. Sempre o mar. No seu adriático azul, penteia-se com alguns fios de verde turquesa. Outrora os deuses da mitopoesia habitavam essas transparências. Hoje, descendentes de sereias navegam aqui os seus búzios, à procura de praias de marfim. Porém, quando menos se espera aparecem borbulhas bolhas de ar na seda aquática. O mar parece entrar em ebulição. E num ápice todo o céu está no mar e todo o mar no céu. As espumas branquíssimas tornam-se nuvens, e os cirros conchas moles. Botticelli e Miguel Ângelo tornam-se um, e em sobreposta transparência são congruentes.

Naquele mesmo instante, uma vertigem apodera-se de nós, impelindo-nos para um ponto muito distante, reduzido e urânico, que já se tornou perto... ah, já estamos dentro dele, e afinal apercebemo-nos que é um túnel, já era, já foi, pois nadamos agora num fluido, vagamente leitoso, quase estagnado. Éramos agora os argonautas do nada. Atravessámos a barreira da distinção. Miniaturizámos, sem saber, as nossas dimensões, que aqui são nada. Sebastião goza a microscopia do nosso diedro existencial.

Gigantescos protozoários, em movência clepsídrica, navegam o silêncio, silenciosamente. O fluido muda de cor, de tom, de temperatura. Outros animálculos conglomeram-se em estruturas moleculares, outros passeiam em alamedas líquidas, outros ainda ocupam-se da criação. Elementos Yin caminham em direcção aos Yang, anunciando uma dinastia genética.

Sem título(acr; ilico em tela;100×140cms)
Sem título(acrílico em tela;70×100cms)

Pulsantes úteros-feijões, milhares, são fecundados com supremo sucesso. Nada está parado. Tudo está em movência, embora em silêncio. Não há parasitas. Não existe nem um hematozoário da seiva alheia. Tudo é vida. O princípio da origem.

NOTAS À MARGEM

• A pinturade Sebastião é modelada por fluidos que criam grandes espaços, grandes vazios. Curiosamente esses vazios não envolvem outros acontecimentos, antes são o centro, e os acontecimentos a moldura.

• Enormes vazios de eloquente silêncio são atravessados por elementos de inspiração micrológica, arredondados e translúcidos. À mistura, elementos marinhos, estruturas tubulares e atómicas, orgãos genitais subtilizados, referências aerodinâmicas, micrologias e às vezes temas sobre mitos e fragmentos filosóficos extremo-orientais.

• Esporadicamente a pintura de Sebastião parece formalmente revisitada por Yves Tanguy, mas é puro engano. A microscopia é apenas o pretexto para uma viagem cósmica, pois, a organização sistémico-estrutural do cosmos e do micro--mundo são semelhantes.

PSICOGRAFIA DO TIPO PASSE, FOTO DA DA. AV. HORTA COSTA, 38 MACAU

Perseverante, analítico e nervoso. Aparentemente calmo (tipo maré-baixa) como todo o europeu nervoso com tendências orientalistas. As espumas brancas das suas ondas interiores não se quebram junto à costa, antes chegam em forma de espelho d'água, aura suave e quase silenciosa do seu mimetismo.

Coloca o sorriso na vitrina do quotidiano e nos olhos que as lentes redondas emolduram. Coloca na mesa a sua boa disposição e alimenta-se e faz alimentar o sentido de humor dos outros. Incentiva a tertúlia se o tema o envolve, e termina cada frase com um sorriso simpático de tartaruga. De quando em vez, acena niponicamente a cabeça, contraindo as narinas e elevando em abano as sobrancelhas. O bigode farfalhudo e retorcido, a mosca ligeiramente assimétrica e o maxilar inferior com desenho bastante denunciado amplificam a expressão bocal, facilitando o entendimento do seu discurso directo, porque fala muito baixinho. Baixinho também em altura; não obstante, robusto como um bonzaide carvalho. Pós-moderno no vestir e no corte de cabelo, preferindo às vezes referenciar certos folclorismos inofensivos e comoventes como por exemplo as botas--Kaguemuchas que dividem o pé em dois bandós, barlavento o dedo grande e sotavento os outros quatro.

Exemplarmente impontual, pelo menos em Macau. Mas sempre profundamente educado e cedente do próprio pescoço à guilhotina dos protestos pelo seu atraso.

Lúcido no seu discurso de arte, adere às teorias da Trans- avangard que criticam o carácter absolutista que as vanguardas reclamam para si, citando Archille B. Oliver, e promove com frequência a desmontagem do binómio dialéctico entre o Ocidente e o Oriente, as suas geométricas confusões, contradições e riquezas espirituais, que a dicotomia mental contemporânea subtiliza e complexifica.

Na sua sacola, ainda inundada de Sol Nascente, traz sempre duas caixinhas cilíndricas que contêm um truque de ilusionismo cada uma. Exibe; com amadadorística insegurança, o seu número, sempre o mesmo. Perante uma plateia inconvencida, safa-se. dizendo que adquiriu os ditos invólucros mágicos não numa tenda qualquer de um qualquer místico nippon, mas numa eclética sexshop, algures no Ginza, como pretexto preambular para uma qualquer iniciação amorosa.

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até a p.