Linguística

Saudações a Torga e a Ai Qing

Benvindo, poeta!

Vieste até aqui, através de milhares de anos de história, arrebatado a uma aldeia perdida na vastidão da China, entre o brusco rumor dos arvoredos e o fluir remansado de um rio: a grossa cabeça do búfalo serviçal a emergir das águas, os camponeses humildes e sofredores sobraçando, na névoa, o feixe de lenha, o solo cinzento-amarelado na desolação nevada dos Invernos ou no esplendor fértil das colheitas, sob um Sol de bonança. Vieste até aqui, arrebatado ao carinho dos braços vigorosos e laboriosos da tua ama de leite, esse rio ubérrimo que te alimentou a sensibilidade, que te ajudou a descobrir o amor fecundo às coisas simples, aos gestos rituais do quotidiano: o acender do lume familiar, o remendar das roupas esfiadas, a mesa posta para a comunidade da refeição, o primeiro ovo do dia branqueando entre palhas secas...

Pelo longo caminho por onde vieste, pudeste ver, claramente visto, a dor dos homens e as suas vitórias; os mundos flagelados e ávidos de paz e esperança. Pudeste ver, claramente visto, o coração da tua pátria antiga, sábia e contemplativa, a pulsar ora convulso ora sereno. Para trás, deixaste o aceno tentador de Paris, que se te abriu com a garridice de uma paleta polícroma de alegria; deixaste distantes países e amizades que te acolheram generosos e te brindaram reverentes, oferecendo-te poesia, poesia, poesia, que logo soltavas no espaço livre como asas vibráteis de uma ave canora. Mas deixaste, também, para trás, revoltas e desesperos, ao experimentares, entre os teus, na terra do teu amor, o horror do silêncio amordaçado, a garra ensanguentada da opressão sobre a garganta túmida de versos, os ferros vis dos cárceres sombrios, o insulto, a calúnia, o desprezo.

Com que resignação e coragem soubeste resistir à tirania e à ambição; com que grandeza de alma podes, hoje, receber a justa consagração de quem te folheia a obra e te decora os poemas!

Poeta, benvindo!

Aqui, à tua espera, há quase cinco séculos, ergue-se o vulto excelso de outro poeta. Este veio de uma pequena pátria aventureira e missionária. Trouxe-o o impulso das velas, sagradas de fé, depois de terem sulcado "mares nunca dantes navegados", com o povo marinheiro que as desfraldava a poisar o pé nas areias sem nome, alargando o mundo de novos mundos, estreitando, num abraço fraterno, os homens e as raças, sem ódio, sem cobiça, sem rancor.

Aqui, entre a eternidade da pedra e a eternidade do mar, escreveu ele a eternidade da epopeia, uma das mais sublimes do espírito universal, onde o louvor da pátria e dos seus heróis corre em torrentes de glória.

Também ele, como tu, sofreu os rigores da miséria e da opressão; conheceu a indignidade das prisões, o insulto, a calúnia, o desprezo.

Mas também ele, como tu, recebe hoje, de quem o lê, o esplendor do apreço e dos lauréis.

Árvore com cerca de quinhentos anos de vida, espera aqui, firme e robusta e pujante de "pomos odoríferos e belos", a árvore milenária que tu és.

Ambas frente a frente, como naquele teu poema admirável que te recordo na minha língua de oito séculos:

    "Uma árvore, outra árvore... 
    Separadas umas das outras, de pé, solitárias e
    erectas; 
    O vento e o ar
    Indicam-lhes a distância que medeia entre elas. 
    Mas debaixo do solo
    As suas raízes penetram pelas entranhas da
    Terra dentro... 
    Na profundidade insondável
    As suas raízes entrelaçam-se e unem-se entre
    si."

É aqui, neste "campo aberto", neste húmus sulcado e semeado pelo Oriente e o Ocidente, que as tuas raízes, poeta, encontram as nossas raízes; raízes de que Camões é o mais alto símbolo cultural, e as entrelaçam com força, numa união que se quer indestrutível, para que os ramos floresçam e cresçam mais ainda e mais além.

Benvindo, poeta, a este encontro!

Poeta, benvindo!

Macau, 7 de Maio de 1987

Ainda há poucos dias, estas paredes presenciaram um dos mais celebrados poetas da China, a assistir emocionado ao lançamento de um volume de poemas seus, vertidos em português. Coube-me, então, a honra de ser o primeiro a saudar Ai Qing, de o dizer benvindo a Macau, lembrando-lhe a poesia em que ele ergue, frente a frente, duas árvores robustas, separadas à superfície pelo vento e pelo ar, mas cujas raízes, no interior da terra fértil, se estreitam e unem, num encontro fraterno. E comparei Ai Qing à árvore milenária que simboliza a cultura chinesa, a deparar-se-lhe, súbito, outra árvore com cerca de quinhentos anos de idade, plantada como um padrão armoriado de quinas e castelos, que é expoente sublime da nossa cultura: Camões. E desejei que as raízes dessas duas árvores se entrelaçassem, com vigor, para a eternidade, neste solo fecundo, ponto de encontro feliz do Oriente e do Ocidente, fazendo que os troncos lhes vão cada vez mais "aos céus subindo/ com pomos odoríferos e belos", para primor da cultura universal.

Hoje, cabe-me uma honra mais, igualmente imerecida: saudar a presença entre nós do grande poeta Miguel Torga, vulto cimeiro da Literatura Portuguesa. E imediatamente no meu espírito se desenha uma imagem bela e sugestiva: o altaneiro e agreste negrilho de S. Martinho de Anta dosselando o "jardim exíguo" de Camilo Pessanha. As bravias torgas montanhesas à mistura com os "folhedos tenros" das suaves colinas, e os requintados girassóis e o "aroma de jasmim" da plácida planície. O verbo austero e descarnado com breves e flébeis arroubos líricos de flauta pastoril, sinfonicamente harmonizados com a música ciciada, dolente e langue, da voluptuosa viola chinesa. De novo, nestas paragens, o Ocidente e o Oriente na prisão do abraço português, amoroso e criador.

Ditosa Macau que vem recebendo e cativando, através dos tempos, poetas como Camões, Bocage, Pessanha, Osório de Castro e Patrício, todos eles um reverdecente e contínuo germinar de sementeiras poéticas,. a enriquecer-lhe o húmus singular. Faltava um, ao apelo e à sedução: o maior cantor vivo da nossa pátria. Faltava Miguel Torga. Ei-lo. Trouxe-o, como a Camões, tal o afirma o épico dos Poemas Ibéricos, "o vento lusitano", esse "sopro humano/Universal/que enfuna a inquietação de Portugal". Ei-lo a ser, agora, tal o Camões por ele interpretado, "ainda a única certeza/de Portugal."

Curvemo-nos ante a sua grandeza: "Passa um Rei- é o Poeta".

Respeitemo-lo, "como se faz às pedras das montanhas", que assim justamente o exigiu.

E, com ele, na companhia dos seus "versos de ferro" (e também "de cimento", coetâneos da hora), bebamos o "doce vinho da amizade e da paz", que sempre aqueceu o coração português, "pelo mundo em pedaços repartido".

Com ele.

Ajudando-o, poeta da Libertação, a libertar-se das solidões de si próprio, na festa fraternal de que saberemos envolvê-lo, na sua estada histórica para a nossa sensibilidade e inteligência e para o futuro lusíada nestes confins de sortilégio asiático.

Entendendo-lhe a órfica rebeldia que em nossas veias também é chama e chamada.

Confessando-lhe o nosso orgulho e a nossa gratidão de o fitar e de o ler.

Rogando-lhe, enfim, que, repetindo um poema seu, nos diga diante de Macau, que não o esquecerá, enquanto a alma e a língua portuguesas, como "asas sonoras", aqui vibrem e adejem:

    "Hoje, 
    Sei apenas gostar
    Duma nesga de terra
    Debruada de mar". 

Pois que mais pedir-lhe, se tudo nos tem prodigamente dado de valor social, de perfeição estética e de ansiedade mística, na plenitude da sua obra "orvalhada de seiva" e à dimensão do Homem total; na inteireza do seu pensamento e acção; na limpidez lapidar da sua inspiração sem pressa, num constante recomeço?

Meus amigos:

Termino, possuído de dois versos de Miguel Torga:

"Já tenho a missão cumprida.

Já disse para que vim ".

Macau, 7 de Junho de 1987

desde a p. 64
até a p.