Linguística

Cesário Verde num relâmpago

António Manuel Couto Viana*

Foi ali, há cem anos. Estou em frente da casa do Largo da Ermida, n° 13, no velho e aristocrático Paço do Lumiar lisboeta. A casa não é pequena, como nos afirma o principal biógrafo de Cesário, João Pinto de Figueiredo. É certo que tem apenas um andar e o facto de estar paredes meias com um imponente palacete pode, de certa forma, ames-quinhá-la. Mas a frontaria rosa, cor tão comum às moradias do nosso século XVIII, mostra-se-nos larga e nobre. Sobre a porta central de boa dimensão, um nicho airoso alberga (firmo a vista, para melhor a distinguir) uma imagem incaracterística de S. José, num aparato de flores pálidas. Agrada, o conjunto. E foi ali, há cem anos. O poeta ocupara o prédio, então pertença de Manuel Cabaço, viticultor, que com ele, tempos atrás (precisamente três anos antes, em 1883), se associara num negócio de vinhos, permitindo a Cesário visitar Paris e Bordéus, levando, na bagagem, algumas garrafas de amostras, e no bolso, possivelmente, um bloc-notes, para recolher impressões da estada, um ou outro verso que fixasse a vida fremente da grande metrópole tão amada dos portugueses, tão propícia à inspiração citadina do autor de O Sentimento de um Ocidental. Mas os resultados comerciais da digressão foram nulos e, ao que parece, o bloc-notes regressou em branco. Aliás, em pleno Quartier Latin, Cesário procuraria convencer Mariano Pina que o "poeta tinha morrido" e que, então, "só pensava numa vida laboriosa e activa do negociante, conhecendo a fundo a sua especialidade, sabendo como qualquer fabricante onde se fabricava o melhor ferro, onde se vendiam as melhores ferramentas, as limas e as plainas do mais puro aço."

É Setembro no meu calendário. Começa a flutuar, sobre tudo, uma vaga melancolia outoniça; a luz adoça-se; vibra menos a chapada do Sol, de encontro à frontaria desbotada da casa que observo. Não, não foi assim o dia de há cem anos agora evocado. O Verão entrava, então, rompante de canícula, o ar abafava, seco, emoliente. Rodavam, vagarosas, as carruagens da fidalgaria que tinha aqui suas mansões soberbas, com jardins de frescura. Os cavalos garbosos, manchados de suor, ("negros corcéis que a espuma veste") erguiam uma poeira grossa e vermelha, com os cascos chispantes. Iam a caminho da "triste cidade", de "construções rectas, iguais, crescidas", para que as "elegantes" que transportavam, de vestidos claros, leque palpitante, guarda-solinho rendado, "se curvem, sorrindo, às montras dos ourives"; entrem nas "lojas tépidas", "casas de confecções e modas resplandecentes", onde "plantas ornamentais secam nos mostradores" e onde "em nuvens de cetins", se "requebram" os caixeiros, espalhando, elas, (e talvez eles!) "flocos de pós-de--arroz" que "pairam sufocadores". Para que os cavalheiros que se recostavam, enfadados, nas almofadas lânguidas das carruagens, vão ler, com um charuto caro, o seu jornal da política pachorrenta, no clube penumbroso; bebam uma orchata nas mesas de mármore do Martinho, na preguiça das cavaqueiras; lancem um olhar de gula de lion insaciável ao vaivém feminino do Chiado; olhar que não se apaga durante os "almoços magníficos do Mata".

Pela madrugada, ao rés da capela de S. Sebastião que tenho à minha esquerda, com a sua bela e rendilhada porta manuelina, também passaram as pesadas galeras saloias, pejadas de frutos, de leguminosas, lembrando "retalhos da horta aglomerados", a abastecer o mercado urbano de farturas, de aromas honestos e saudáveis, de viço.

Eram a cidade e o campo que transitavam, naquele dia 19 de Julho de 1886, sob as varandas da moradia onde agonizava um poeta que fora seu genial cantor.

Cesário (José Joaquim Cesário) Verde, era natural de Lisboa, onde nascera aos 25 de Fevereiro de 1855. Afirma Pinto de Figueiredo que no n° 16 da rua da Padaria, propriedade do pai; mas Pedro da Silveira, sempre cuidadoso na investigação, recusa esta morada e, com razões dificilmente contestáveis, aponta, para berço do poeta, o n° 9 da rua dos Fanqueiros, onde residia a família. Ao certo, sabemos que na freguesia de Santa Maria Madalena, em cuja igreja paroquial foi baptizado. (Na verdade, a pergunta do bardo ultra-romântico Tomaz Ribeiro, feita à sua Judia, tão plangentemente festejada ao piano, nos salões finis-seculares: "Onde nasceste, onde brincaste?", raro tem resposta exacta, em Portugal, se o interrogado é vulto cimeiro da nossa cultura.)

O pai de Cesário, o senhor José Anastácio Verde, tinha loja em frente ao domicílio, onde se vendiam, à mistura, ferragens, chitas e algodões. Era um comerciante abastado, de família talvez sem pergaminhos fidalgos, mas não de todo ignorada na alta sociedade lisboeta, pois uma sua parente, Maria Benedita Vitória, casara com o nosso grande artista plástico Domingos António de Sequeira, "primeiro pintor de Câmara e Cortes".

Os Verdes eram oriundos de Génova e o trisavô do poeta emigrara para Lisboa nos começos do século XVIII, tendo já em Portugal alguns parentes estabelecidos no comércio e de fartos cabedais.

Em 1856, a capital do Reino via-se assolada por uma epidemia: a cólera-morbo, a que se seguiu, um ano depois, outra, não menos terrível e mortífera: a febre-amarela. Mais de 15% dos habitantes da "cidade maldita" (como, no poema Nós, Cesário a classifica, ao remembrar o flagelo) pereceram durante as pestes, em que o jovem e grave D. Pedro V deu exemplos admiráveis de abnegação, visitando os hospitais, animando os enfermos, sem receio aos contágios, ante a debandada aterrada da população lisboeta, da nobreza e até do clero, na pessoa do Patriarca. José Anastácio Verde possuía, em Linda-a-Velha, uma quinta adquirida por seu bisavô. Para aí fugiu com a mulher e os três filhos do casal. Anos depois, o poeta narrava, em verso, este êxodo precipitado, mas salvador. Narrava-o no seu estilo "natural", pessoalíssimo, sobriamente, como uma reportagem dos nossos dias, flagrante, exacta, sem apelos lamechas e, por isso, mais pungente, mais emocionante. É com este trecho que inicia o seu longo poema Nós, o último que publicou em vida:

    "Foi quando em dois Verões, seguidamente, a
                                            Febre 
    E o Cólera também andaram na cidade
    Que esta população, com um terror de lebre, 
    Fugiu da capital como da tempestade. 
    
    Ora meu pai, depois das nossas vidas salvas
    (Até então nós só tivéramos sarampo), 
    Tanto nos viu crescer entre uns montões de
                                          malvas
    Que ele ganhou por isso um grande amor ao
                                       campo! 
    Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga: 
    O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos; 
    Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos
    Morreram todos. Nós salvámo-nos na fuga. 
    
    Na parte mercantil, foco da epidemia, 
    Um pânico! Nem um navio entrava a barra, 
    A alfândega parou, nenhuma loja abria, 
    E os turbulentos cais cessaram a algazarra. 
    
    Pela manhã, em vez dos trens dos baptizados, 
    Rodavam sem cessar as seges dos enterros. 
    Que triste a sucessão dos armazéns fechados! 
    Como um domingo inglês na "City", que
                                 desterros! 
    
    Sem canalização, em muitos burgos ermos, 
    Secavam dejecções cobertas de mosqueiros. 
    E os médicos ao pé dos padres e coveiros, 
    Os últimos fiéis, temiam dos enfermos! 
    
    Uma iluminação a azeite da purgueira, 
    De noite, amarelava os prédios macilentos. 
    Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
    Que tinham tons do inferno outros arruamen
                                        tos. "

Não esqueço que Cesário, quando das pestes, tinha, apenas um, dois anos de idade. E, no entanto, a descrição é vivíssima, como se os seus olhos infantis tivessem retido, durante 27 anos, a imagem pavorosa da uma cidade moribunda, pois o poema Nós foi publicado, pela primeira vez, em 1884, na Ilustração, revista universitária impressa em Paris.

"V ersos, vão lá fazê-los sem cabala. Pegar-se numa pena e escrever de Maneira igual àquela em que se fala... Dizem que é imitar Cesário Verde."

Isto desabafava Augusto Gil, em 1901, no seu segundo volume de poesia, ainda flutuando no ambiente literário português, intensamente, o aroma sortílego que se evolava das perturbantes caçoilas simbolistas, esquecidos já os versos "naturais" cesarianos, tão imitados por alguns contemporâneos do autor de O Sentimento de um Ocidental, como os poetas menores Coelho de Carvalho, Agostinho de Campos ou Xavier de Carvalho. Da fase campesina de Cesário apenas conheço um epígono, João Verde, pseudónimo revelador da funda admiração pelo mestre de Nós, pois o verdadeiro nome do escritor é José Rodrigues do Vale, natural de Monção. O seu livro, N'Aldeia, revela-nos um apreciável Cesário minhoto. Mas, em boa verdade, não podemos considerar João Verde como um imitador, mas sim um discípulo; aliás, como Augusto Gil e alguns mais. E, já que divago sobre imitadores e discípulos, vem-me à memória, súbito, um hábil pasticheur, que se divertia a compor poemas onde, com arte, arremedava o estilo daqueles a quem atribuía a autoria dos seus pas-tiches. Era vimaranense, nascido no passado século, e chamava-se João de Meira. Em 1946, ainda uma dessas suas "brincadeiras" foi levada a sério pela perspicácia crítica de Jorge de Sena. Recordo-a com malícia:

No n° 29 do semanário Mundo Literário, de 25 de Novembro de 1946, apresentava-se, com destaque, aquilo a que se chamava Um "inédito" de Cesário Verde. Tinha-o "descoberto" o autor de As Evidências, num velho Almanaque de Lembranças, "ao folhear (garante) paciente e cuidadosamente umas dúzias desses almanaques". Transcrita de um "álbum de uma senhora, cujo nome não pode revelar", a poesia, intitulada "Loira" e datada de 1878, fora "encontrada por um senhor de Guimarães", que a fizera publicar no Dia, de 19 de Setembro de 1910. Sena, satisfeito e convicto, tece os seguintes comentários: "Os leitores do Mundo Literário, se a considerarem com outras poesias célebres de Cesário Verde, concordarão que valeu a pena.

"Pela data de "Loira", Cesário tinha vinte e três anos quando a escreveu (continua Sena). E havia cinco anos que no "Diário da Tarde", do Porto, Silva Pinto perpetrara a estreia do seu amigo. Pouco se tem chamado a atenção para a precocidade de Cesário Verde - e mesmo os seus primeiros versos publicados são nitidamente já do autor de "Contrariedades". É certo que, após a morte, toda a obra de um poeta se unifica: mas a crítica esquece, muitas vezes, como são importantes as relações da cronologia com a obra, desde que a crítica se destine ao enriquecimento da experiência humana, e não apenas ao abastecimento do arsenal das ideias feitas. »

É deste modo a poesia:

    "Eu descia o Chiado lentamente
    Parando junto às "montras" dos livreiros, 
    Quando passaste irónica e insolente, 
    Mal poisando no chão os pés ligeiros. 
    
    O céu nublado ameaçava chuva, 
    Saía gente fina de uma igreja; 
    Destacavam no traje de viúva
    Teus cabelos de um loiro de cerveja. 
    E a mim, um desgraçado a quem seduzem
    Comparações estranhas, sem razão, 
    Lembrou-me esse contraste o que produzem
    Os galões sobre o pano de um caixão. 
    
    Eu buscava uma rima bem intensa
    Para findar uns versos com amor; 
    Olhaste-me com cega indiferença
    Através do "lorgnon" provocador. 
    
    Detinham-se a medir tua elegância
    Os "dandies " com aprumo e galhardia; 
    Segui-te humildemente e à distância, 
    Não fosses suspeitar que te seguia. 
    
    E pensava de longe, triste e pobre, 
    (Desciam pela rua umas varinas)
    Como podias conservar-te sobre
    O salto exagerado das botinas. 
    
    Havia pela rua uns charcos de água
    E tu, sempre febril, sempre inquieta, 
    Ergueste um pouco a saia sobre a anágua
    De um tecido ligeiro e violeta. 
    
    Adorável! Na ideia de que agora
    A branda anágua a levantasse o vento
    Descobrindo uma curva sedutora, 
    Cada vez caminhava mais atento. 
    
    Mas súbito parei, sentindo bem 
    Ser loucura seguir-te com empenho, 
    A ti que és nobre e rica, que és alguém, 
    Eu que nada valho e nada tenho. 
    
    Correu-me pelo corpo um calafrio, 
    E tive para o teu perfil ligeiro
    Esse olhar resignado do vadio
    Que fita a exposição de um confeiteiro. 
    
    Vi perder-se na turba que passava
    O teu cabelo d'oiro que faz mal; 
    Não achei essas rimas que buscava, 
    Mas c4ompus este quadro natural."

Ah, João de Meira era um mestre na falsificação! Simplesmente, se Jorge de Sena atentasse com mais pormenor, logo iria verificar que a poesia tem, como uma caricatura, a deformação dos traços mais característicos da inspiração citadina do poeta; é mesmo um Cesário excessivo, misturando (aliás com beleza), num único quadro, outros 5 quadros da sua autoria: A Débil, Frígida, Cristalizações, Deslumbramentos, Em Petiz... Abandono o episódio sorridente que deve ter deixado bastante amuado o autor de O Reino da Estupidez, tão cioso da sua autoridade de crítico.

Mas, a propósito das mulheres altivas, esfingéticas, que atravessam estas poesias agora recordadas, pergunto-me: Onde, os amores de Cesário? Tão vagos! Diz-se que namorou uma actrizita medíocre, Tomásia Veloso, morta ainda muito jovem, talvez de pneumonia ou tísica galopante, por ter assistido de uma varanda, em camisa, na noite fria e húmida do Porto, ao trágico incêndio do Teatro Baquet. Realmente, Cesário, na poesia Cristalizações, faz alusão a uma actriz: "A actriz que tanto cumprimento/E a quem à noite, na plateia, atraio/Os olhos lisos como polimento." E é conhecido que o escritor frequentava os Teatros, como em Humilhações está patente. O mais, de amores, devaneios de poeta!... "Escrever de/Maneira igual àquela em que se fala..." Sim, de facto, escreveu sempre Cesário Verde "de maneira igual àquela em que se fala", sem, todavia, deixar de envolver de sortilégio os temas dos seus versos, mesmo quando a linguagem que neles se utiliza está "próximo (como analisa Vitorino Nemésio) da linguagem comezinha." É o mistério da poesia, impenetrável!

Volto ao relâmpago da sua biografia: Depois do regresso à Baixa pombalina; de ter feito os primeiros estudos (a aprovação na instrução primária; aprendido o seu francês e inglês e alguns rudimentos de comércio) Cesário ingressa, com 17 anos feitos, no estabelecimento paterno, a ocupar-se da correspondência comercial e, uma vez ou outra, a ajudar o austero José Anastácio Verde nas lides do balcão, já conhecedor do valor e eficiência da mercadoria transaccionada. Mas a veia poética latejava-lhe na sensibilidade e, no ano seguinte, coincidindo com a sua matrícula no Curso Superior de Letras, que aliás não chegaria a concluir, surgem os primeiros versos em caracteres de imprensa. Decerto esta divulgação, primeiro no Diário de Notícias, de Lisboa, logo depois no Diário da Tarde portuense, deve-se ao empenho do seu condiscípulo Silva Pinto, alguns anos mais velho que Cesário, já famoso entre as jovens tertúlias literárias pelo seu romance de violência anticlerical, então na moda, O Padre Maldito, e que travaria com o autor de O Sentimento de um Ocidental uma "amizade amorosa", tão afim com aquela que foi partilhada por António Nobre e Alberto de Oliveira; amizade a que devemos a publicação, um ano após a morte do autor, de O Livro de Cesário Verde, comovidamente deposto, por Silva Pinto, nas mãos e debaixo dos lábios do irmão mais novo do poeta, o Jorge. Dificilmente escapa a influências quem se inicia nas lides literárias. Os primeiros versos de Cesário não fogem à regra: nascem crepitantes de chamas baudelairianas; de rugidos de um Gomes Leal panfletário e jacobino; de facécias do mestre d'A Folha coimbrã, o João Penha dos sonetos de remate imprevisível, quase sempre celebrante dos nédios presuntos de Lamego, a recordarem-lhe redondas carnações da mulher finissecular. Ocorre--me uma dessas produções cesarianas, bem filiada na escola realista do poeta bracarense; das primeiras que viram a luz da publicidade:

PROH PUDOR

    "Todas as noites ela me cingia
    Nos braços, com brandura gasalhosa; 
    Todas as noites eu adormecia, 
    Sentindo-a desleixada e langorosa. 
    
    Todas as noites uma fantasia
    Lhe emanava da fronte imaginosa; 
    Todas as noites tinha uma mania
    Aquela concepção vertiginosa. 
    
    Agora, há quase um mês, modernamente, 
    Ela tinha um furor dos mais soturnos, 
    Furor original, impertinente... 

    Todas as noites ela, ó sordidez! 
    Descalçava-me as botas, os coturnos, 
    E fazia-me cócegas nos pés..."

Depressa, porém, esta poesia satírica, a roçar o anedótico, de um cinismo muito apreciado pelos boémios do café Martinho, com mais pendor para o prato de iscas e o jarro de carrascão do que para a "bebida verde" (como o dandismo de Anto apoda o venenoso absinto parisiense); depressa desaparece da inspiração de Cesário que começa, com olhos de um deslumbramento objectivo, a percorrer bairros modernos, pelas horas salutares das manhãs luminosas, adivinhando "quartos estucados", um reluzir de porcelanas nas mesas do almoço, "uma vida fácil" e farta na cidade burguesa, em contraste com os andrajos da jovem regateira aldeã que, todavia, "alegre e prazenteira", exibe a riqueza e a "graça vegetal" das "suas couves repolhudas, largas"; inspiração que começa a assomar, decidida e não enfadada, à porta da loja próspera do pai; a fitar, interessada, o fervilhar de quem passa; a apreciar, sensual, "os querubins do lar" que "flutuam nas varandas", cingidos de cassas estivais; a atentar no ritmo apressado dos carros de aluguer; a seguir, enérgica, o magote dos calafates; a enervar-se ao acender do gás nas ruas e "hotéis da moda"; a revoltar-se ante o falso esplendor e a miséria da capital pelintra de um Reino antigo e nobre. Inspiração esta que nos legou uma das obras-primas da Poesia portuguesa: o poema-epopeico O Sentimento dum Ocidental, escrito em 1880, para participar num número extraordinário do portuense Jornal de Viagens que se propôs celebrar, deste modo, o tricentenário de Camões, ocorrido em tal data, com a pretensa grandiosidade de um cortejo cívico e com pomposas e cabeceantes discursatas "patriotinheiras". É certo que os versos de Cesário só de raspão aludem ao cantor de Os Lusíadas ("Luta Camões no Sul salvando um livro a nado"; "Um épico de outrora ascende num pilar"...), mas são-lhe adequada homenagem, no valor da poesia de frémito poderosamente português, onde a "apagada e vil tristeza" se encontra de mão dada com a evocação de glórias idas: "E evoco, então, as crónicas navais:/ Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado/(...)/Singram soberbas naus"...; e a exaltação de uma raça forte, varonil, como nesta quadra que legitimamente Pinto de Figueiredo considera "Camões e do melhor":

    "Vêm sacudindo as ancas opulentas! 
    Seus troncos varonis recordam-me pilastras; 
    E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
    Os filhos que depois naufragam nas tormentas."

E o mesmo biógrafo avisa, certeiro: "Além de recordarem Camões, estes versos lembram também Fernando Pessoa, melhor, Álvaro de Campos, pois foi neles e no "singram soberbas naus que eu não verei jamais" que se inspirou a Ode Marítima." Tento recordar todas as cadências de O Sentimento de um Ocidental que, rigorosamente e com inexcedível beleza, ilustram o Cesário Verde citadino, o cronista, quase sempre amargo, da Lisboa "quase linda e quase feia", como a entendeu a melhor discípula do poeta nos nossos dias: Fernanda de Castro. É claro que, como é hábito acontecer às obras excepcionais, novas e renovadoras, O Sentimento de um Ocidental passou despercebido, ignorado do leitor comum e dos amigos de Cesário. Esta indiferença magoou profundamente o poeta que tinha a plena consciência de haver criado um texto singular.E, a propósito do silêncio que pesou sobre o mais perfeito retrato da Lisboa do século XIX, lamentava--se, em carta, ao seu amigo fraterno António de Macedo Papança, mais tarde agraciado pela estima e camaradagem do rei D. Luís I com o título de Visconde e, depois, de Conde de Monsaraz: "Uma poesia minha, recente, publicada numa folha bem impressa não obteve um olhar, um sorriso, um desdém, uma observação. Ninguém escreveu, ninguém falou nem num noticiário, nem numa conversa comigo; ninguém disse bem, ninguém disse mal."

Cesário decerto preferia, a esta injusta indiferença, a troça (vinda, até, da inteligência crítica de Ramalho Ortigão), que envolveu, hilariante, os seus primeiros versos dados à estampa, sobretudo Esplêndida, Num Bairro Moderno e Em Petiz, grotescamente dissecados por algumas penas vulgares como a da "cidadã" Angelina Vidal, republicana e versejadora a um tempo, que, a coberto do pseudónimo de Juvenal Pigmeu, publica uma saraivada de insultos ao poeta. Este, ignorando tratar-se de uma mulher, dispõe-se a tirar um desforço pelas armas. Caída a máscara usada pela professora e publicista, tão impiedosamente caricaturada por Rafael Bordalo Pinheiro no seu António Maria, Cesário não tem mais remédio se não engolir a afronta. Recordo-me que o autor de Humilhações estava longe de ser um cobarde e, em tempo de bengaladas vigorosas nas "lamas de bom tom" do Chiado, ou de cruzamentos de ferros vibrantes e tiros secos de pistola, nos arrabaldes solitários, para lavagens de honra ofendida, fosse ela do foro familiar ou literário, o poeta enfrentava virilmente o difamador e o injurioso, com a debilidade da sua figura frágil e a firmeza arrogante da sua pena ou a contundência da sua resposta pronta. Vem à baila remembrar aquela cena graciosa que exemplifica o espírito brilhante do poeta, a sua capacidade de réplica imediata e mordaz. Foi o caso que Dantas Baracho (parece que Dantas Baracho) um belo dia, em plena rua, e querendo zombar do apelido de Cesário, lhe atirou esta saudação: - "Adeus, ó Cesário Azul!". E, logo, o retorquir do poeta, emudecendo o "engraçado": - "Adeus, ó troca-tin-tas".

Sim: Cesário sofria com a indiferença pela sua obra que sentia original e de subido valor. Não deixou de o confessar em verso, no poema Contrariedades, admitindo, no entanto, que tais desprezos e injustiças lhe estimulavam o estro, ainda que o pervertessem ao epigrama e ao "desdém solene":

    "O obstáculo estimula, torna-nos perversos: 
    Agora sinto-me eu cheio de raivas frias, 
    Por causa dum jornal me rejeitar, há dias, 
    Um folhetim de versos. 
    
    Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
    No fundo da gaveta. O que produz o estudo? 
    Mais duma redacção, das que elogiam tudo, 
    Me tem fechado aporta. 
    
    A crítica segundo o método de Taine 
    Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa 
    Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
    Vale um desdém solene."

Enfim, ressoa nos meus ouvidos, nítido, O Sentimento de um Ocidental que, felizmente, escapou à "fogueira imensa" da destruição mal humorada:

    «Nas nossas ruas, ao anoitecer, 
    Há tal soturnidade, há tal melancolia, 
    Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
    Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. »
    ……………………………………………

Quando escreveu O Sentimento de um Ocidental, residia Cesário Verde, há dois anos já, em Linda-a-Pastora, na hoje Casa de S. Domingos, que fora de seu tio João Baptista, tão primorosamente retratado por Sequeira; "casa rústica, tipo casal estremenho", mas a que não falta elegância e mesmo imponência no corpo central elevado em dois andares estreitos, escorreitamente delineados. Sob uma das nove janelas que lhe alegram o rosto bem conservado, apagados os traços de pavor do incêndio que a ia destruindo, e onde fora reduzido a cinzas todo o espólio literário do poeta, lá está assinalado, numa lápida, o nome de Cesário Verde, lembrando que ele ali morou, ali compôs versos, ali trabalhou a terra. Porque, na verdade, Cesário viveu nesta propriedade meses e meses de faina agrícola, dedicado a orientar, com entusiasmo e conhecimento, uma nova actividade comercial encetada pela família Verde, alicerçada na exportação para o estrangeiro, Inglaterra e Brasil, de uvas, maçãs, tomate e cebola que o húmus fértil da vasta Quinta produziam em abundância e de excelente qualidade. Perto da propriedade, dera-se o milagroso aparecimento da imagem da Senhora da Rocha, na manhã de domingo de 28 de Maio de 1822, por um grupo de sete rapazinhos entretidos a perseguir um coelhito esperto. O culto da chamada Senhora da Conceição da Rocha célere se espalhou até à Corte, tendo entre os principais e fervorosos devotos a própria Família Real. Recolhida a imagem na Sé lisboeta, é por iniciativa do poeta Tomaz Ribeiro, com casa em Carnaxide, que ela torna ao local da aparição, onde imediatamente se construirá um Santuário. Este regresso triunfal dá-se em 1883, com a criação da Real Irmandade de Nossa Senhora da Conceição da Rocha. Ora entre os primeiros irmãos, os fundadores, figura (leio-o na obra do Padre Francisco dos Santos Costa, sobre o Santuário da Rocha) o nome de José Anastácio Verde. A que propósito me ocorre esta referência? Pois para pôr em dúvida a afirmativa escrita por João Pinto de Figueiredo de que o pai de Cesário era um livre-pensador, um ateu ferrenho, impenitente. De facto, não vejo que esta intransigência em matéria de religião se coadune com a de irmão de Confraria, naturalmente envergando com unção a opa da praxe em dia de Sagrado Lausperene, ou de procissão piedosa. (Igualmente me ocorre que Cesário, embora apontando "a nódoa negra e fúnebre do clero", louva "o edificante e doce amor cristão".) Mas, adiante.

Pouco tempo depois do poeta se mudar para Linda-a-Pastora, começou ele a frequentar, nas suas idas à Capital, uma talentosa e inovadora tertúlia de artistas plásticos que periodicamente se reuniam na cervejaria Leão de Ouro, sita à rua do Princípe, hoje rua 1°. de Dezembro, ao rés da grande Praça do Rossio. Tutelava o cenáculo, por assim dizer, uma personalidade entusiástica de organizador, de agitador cultural: Alberto de Oliveira. (Eu, pelo menos, não o confundo com o poeta portuense do mesmo nome, o amigo extremoso de Anto, que ainda conheci de visita ao bucólico Convento de Cabanas, da família Homem de Mello, na ridente Afife minhota). É ele figura destacada no quadro de Columbano que fixou para a posteridade o grupo naturalista; é ele, com o dandismo do chapéu alto lustroso, folheando uma revista estrangeira com que elucidava os seus amigos pintores sobre a Nova Estética. É ele quem precedeu, pouco depois de posar para a tela célebre, a indignada marcha patriótica de protesto contra o Ultimatum inglês. Ora em torno do Grupo do Leão, a que a paleta de Silva Porto, serena e cérula a reproduzir paisagens acaloradas, impunha a presidência, abancavam, também, alguns literatos mais atentos à arte dos pincéis menos académicos: Fialho, Abel Botelho, Ramalho, Mariano Pina, Gualdino, D. João da Câmara. E Cesário. Mas este (aliás, como, em prosa, Fialho de Almeida) era igualmente um portentoso colorista, ainda que em verso. Confessou-o, consciente, embora afiançando só saber "desenho de compasso e esquadro":"Pinto quadros por letras, por sinais." E pintava. Quase toda a sua poesia é um imenso, amplo painel, onde o desenho é rigoroso e flagrante, a cor ora de uma leveza manchada de aguarela, ora de uma violência de óleo espatulado, gritante de tons alegres, surda nos sombrios; sempre, aqui e além, as subtilezas das nuanças, os impressionismos, já expressionismos avant-la-lettre e, até, surrealismos, na visão antropomórfica daquela giga da regateira de Num Bairro Moderno:

    "Subitamente, - que visão de artista!-
    Se eu transformasse os simples vegetais, 
    A luz do Sol, o intenso colorista, 
    Num ser humano que se mova e exista
    Cheio de belas proporções carnais?!
    ………………………………

    E eu recompunha, por anatomia, 
    Um novo corpo orgânico, aos bocados, 
    Achava os tons e as formas. Descobria
    Uma cabeça numa melancia, 
    E nuns repolhos seios injectados. 

    As azeitonas, que nos dão o azeite, 
    Negras e unidas, entre verdes folhas, 
    São tranças dum cabelo que se ajeite; 
    E os nabos-ossos nus, da cor do leite, 
    E os cachos d'uvas-os rosários d'olhos. 

    Há colos, ombros, bocas, um semblante
    Nas posições de certos frutos. E entre
    As hortaliças, túmido, fragrante, 
    Como alguém que tudo aquilo jante, 
    Surge um melão, que me lembrou um ven-
    tre. 

    E, como um feto, enfim, que se dilate, 
    Vi, nos legumes, carnes tentadoras, 
    Sangue na ginja vívida, escarlate, 
    Bons corações pulsando no tomate
    E dedos hirtos, rubros, nas cenouras."

Este quadro, de traços e imagens quase brutais, agressivas, como é diferente daquela delicada aguarela esboçada por Cesário, que se chama De Tarde, nome a sugerir o de tela de pintor naturalista, para a experiência de uma luz a perder o fulgor das manhãs e a a meigar-se sobre as coisas, marcando-as de leves penumbras, liricaizando-as. A impressão é toda azul e vermelho: o frio e o calor defrontando-se no risonho do episódio galante e burguês finissecu-lar. Vejo-a com os olhos que a intensidade do Sol não fere já:

    "Naquele "pic-nic" de burguesas, 
    Houve uma coisa simplesmente bela, 
    E que, sem ter histórias nem grandezas, 
    Em todo o caso dava uma aguarela. 
    
    Foi quando tu, descendo do burrico, 
    Foste colher, sem imposturas tolas, 
    A um granzoal azul de grão de bico
    Um ramalhete rubro de papoulas. 
    
    Pouco depois, em cima de uns penhascos, 
    Nós acampámos, inda o sol se via; 
    E houve talhadas de melão, damascos, 
    E pão de ló molhado em malvasia. 
    
    Mas, todo púrpuro, a sair das rendas
    Dos teus dois seios como duas rolas, 
    Era o supremo encanto da merenda
    O ramalhete rubro das papoulas!"

O quadro reporta-me à sensualidade de um recreio campesino, na região saloia onde se alargava a Quinta dos Verdes. E torno, pois, a Linda-a-Pastora, para imaginar o poeta no afã, no apuro do seu negócio frutal. E, igualmente, a compor os seus versos. Cito, do poema De Verão: "No campo, eu acho nele a musa que me anima; a claridade, a robustez, a acção." Portanto: poesia e trabalho. Excelente! E daqui brota, túmido de seiva, o seu grande poema Nós que, a dado momento, como a agudeza crítica da Afonso Lopes Vieira revela, é todo uma écloga moderna que o leitor saboreia, sobretudo na seguinte quadra:

    "Jack, marujo inglês, tu tens razão
    Quando, ancorando em portos como os
                                 nossos, 
    As laranjas com cascas e caroços
    Comes com bestial sofreguidão."

As estrofes mais belas da peça extensa afloram--me ao pensamento. São, sobretudo, os punhados de versos que com mais elevada inspiração louvam a paisagem campestre e a vida rural, em oposição à rudeza mecânica, fabril e suja dos grandes centros industriais do Norte europeu:

    ……………………………………
    «Entretanto, não há maior prazer
    Do que, na placidez das duas horas, 
    Ouvir e ver, entre o chiar da noras, 
    No largo tanque as bicas a correr! 
    
    Muito ao fundo, entre olmeiros seculares, 
    Seca o rio! Em três meses de estiagem, 
    O seu leito é um atalho de passagem, 
    Pedregosíssimo, entre dois lugares. 
    
    Como lhe luzem seixos e burgaus
    Roliços! E marinham nas ladeiras
    Os renques africanos das piteiras, 
    Que como aloés espigam altos paus! 
    
    Montanhas inda mais longinquamente, 
    Com restevas, e combros como boças, 
    Lembram cabeças estupendas, grossas, 
    De cabelo grisalho, muito rente. 
    
    E, a contrastar, nos vales, em geral, 
    Como 4em vidraça duma enorme estufa, 
    Tudo se atrai, se impõe, alarga e entufa, 
    Duma vitalidade equatorial! 
    ……………………………………
    
    Anglo Saxónicos, tendes que invejar! 
    Ricos suicidas, comparai convosco! 
    Aqui, tudo espontâneo, alegre, tosco, 
    Facílimo, evidente, salutar! 
    
    Oponde às regiões que dão os vinhos
    Vossos montes de escórias inda quentes! 
    E as febris oficinas estridentes
    Às nossas tecelagens e moinhos! 
    
    E ó condados mineiros! Extensões
    Carboníferas! Fundas galerias! 
    Fábricas a vapor! Cutelarias! 
    E mecânicas, tristes fiações! 
    
    Bem sei que preparais correctamente
    O aço e a seda, as lâminas e o estofo; 
    Tudo o que há de mais dúctil, de mais fofo, 
    Tudo o que há de mais rijo e resistente! 
    
    Mas isso tudo é falso, é maquinal, 
    Sem vida, como um círculo ou um qua
                                   drado, 
    Com essa perfeição do fabricado, 
    Sem o ritmo do vivo e do real! »
    ……………………………………

Mas, apesar da exibição que o poeta faz do seu vigor físico, alardeada em vários versos de Nós:

    "Oh! Que brava alegria eu tenho quando
    Sou tal qual como os mais! E, sem talento, 
    Faço um trabalho técnico, violento, 
    Cantando, praguejando, batalhando"; 

apesar disto (ou quem sabe se por culpa disto!) Cesário está doente. A tuberculose roubara-lhe o amor e o convívio de uma irmã e de um irmão. É o mal de família que o afecta a ele, agora. Surgem os primeiros cansaços, a primeira tosse importuna. Em dada ocasião, consulta a eminência do Dr. Sousa Martins, apresentando-se como um simples "senhor Verde, empregado no comércio". Mas, depois, com o legítimo orgulho do seu talento, roga a um amigo que faça saber ao ilustre médico que o tal "empregado no comércio" era, mais do que isto, o poeta Cesário Verde. Todavia, Sousa Martins, homem culto, habituado a conviver com literatos, reconhece perfeitamente a identidade do doente (um caso perdido!) que o consultava. Em busca de lenitivo para o seu mal de peito, Cesário refugia-se numa casinha rústica, para as bandas de Caneças, onde sorverá bons ares e boas águas, evitando a humidade de Linda-a-Pastora, quase às audições marítimas. Na última carta que envia a Macedo Papança, o amigo fiel e mestre, descreve assim a singela moradia: "A minha pequena casa é tudo o que há de mais rústico e de mais pitoresco; da janela do meu quarto, estendo o braço, toco a rama dum pinheiro balsâmico e bravo. De roda tudo pinhais espessos e rumore-jantes". Eis o local excelente para o tratamento de doenças pulmonares. No entanto, os padecimentos do poeta não se vão minorando, antes o abatem, o empurram, rápidos, para o fim próximo. Cesário, apesar de se sentir enfraquecer, ainda acusa relâmpagos de esperança na cura, embora ciente que ela o há-de deixar um triste farrapo sem valia. A carta a Monsaraz conclui deste jeito: "Curo-me? Sim, talvez. Mas como fico eu? Um cangalho, um canastrão, um grande cesto roto, entra-me a chuva no corpo escangalhado."

Naquele frenesi deambulatório que assalta os tísicos, em demanda da saúde perdida, Cesário abandona Caneças; procuram-lhe, agora, mais próximo da Capital, nova morada onde expulse os seus males e convalesça. E aqui vem parar, a esta casa rósea que enfrento, emocionado. Os últimos momentos de Cesário foram calmos, num dormitar quase contínuo. No dia 19 de Julho, o irmão Jorge, que lhe velava a agonia, surpreende-lhe uma vaga agitação. Indaga-lhe: - "Queres alguma coisa?" O poeta balbucia: - "Não quero nada. Deixa-me dormir." E ficou a dormir para sempre. A grande imprensa dedicou apenas meia-dúzia de linhas secas, banais, à morte de Cesário. Choraram-no, além da família, dois ou três amigos que lhe prezavam o espírito; lhe liam, com devoção, a poesia. Entre eles, as lágrimas de Silva Pinto foram as mais fecundas: logo no ano seguinte, em 1887, a expensas suas, era editado O Livro de Cesário Verde, que recolhia as principais produções do poeta e um prefácio de um sentimento ultra-romântico, camiliano, é certo, mas que, todavia, ainda nos dilacera a alma na sua sinceridade e desespero. Oiço-lhe o coração amargurado e esqueço-lhe delírios funéreos da prosa cediça:

"A morada nova do Cesário é de pedra e tem uma porta de ferro, com um respiradouro em cruz; rua n° 7 do cemitério dos Prazeres. À porta está um arbusto da família dos ciprestes - um brinde ao meu querido morto. Eu oferecera uma palmeira que o vento esgarçou ao terceiro dia, e tive de escolher uma espécie resistente, cá da minha raça - fúnebre e resistente. Está verdejante e vigorosa a pequenina árvore, e de longe é uma sentinela perdida da minha doce amizade religiosa. De longe vou já perguntando à nossa árvore: - Está bom o nosso amigo?... E ela inclina os pequeninos troncos, com a gravidade do cipreste: - Bem; não houve novidade em toda a noite... (...) E numa dessas tardes, alguns dias depois da sua morte, eu aproximei da porta de ferro a minha pobre cabeça esbraseada e olhei para dentro do jazigo, involuntariamente; e então, como quer que eu visse lá dentro do jazigo alguns caixões arrumados, e como eu acertasse em descobrir o caixão de Cesário, os soluços despedaçaram-se contra minha garganta, numa aflição imensa e cruel. E foi então que a voz rouca e enfraquecida do Cesário-lembram-se da voz dele? - pronunciou distintamente lá adentro do caixão: - "Sê natural, meu amigo; sê natural!"

"Era a voz de Cesário; era a sua voz tremente e doce, ó meu sagrado horror inconsciente! Debrucei-me contra a porta do jazigo e supliquei numa angústia: - "Fala! Dize! Fala, outra vez, meu amigo!" Não se reproduziu o doloroso encanto. Apenas uma espécie de marulho brando, um arrastar de folhagem ressequida - e o morto na paz da Morte!"

Mas, pouco a pouco, Cesário Verde ressurge do esquecimento. A sua voz pessoal (aquela que Silva Pinto julgou escutar do imo do jazigo dos Prazeres) cada vez mais e melhor se impõe, afirmando-o um dos grandes poetas da língua portuguesa. A autoridade crítica de Fernando Pessoa, que o momento actual tem já por sagrada, é categórica quanto à missão de Cesário na evolução da nossa poesia: "Houve em Portugal, no século dezanove, três poetas, e três somente, a quem legitimamente compete a designação de mestres. São eles, por ordem de idades, Antero de Quental, Cesário Verde e Camilo Pessanha. Com a excepção de Antero, todavia dubitativamente aceite e extremamente combatido, coube a todos três a sorte normal dos mestres a incompreensão em vida, nos mesmos (como em Byron, derivando em Wordsworth e combatendo-o) sobre quem exerceram influência.

"A celebridade raras vezes acolheu os génios especiais, em que o dom da criação se junta ao da novidade. (...)

"Com Cesário Verde se fundou entre nós a poesia objectiva, igualmente ignorada entre nós."

Entardece. Esfria um pouco. Há quanto tempo estou eu neste largo de sabor provinciano do Paço do Lumiar, assombrado pelo relâmpago que a lembrança de Cesário Verde fez brilhar no meu espírito? A casa esmorece de sombras, torna-se mais íntima, como um coração aberto a confidências. A presença de Cesário é quase visível num tremular ténue de cortina branca, além, numa das janelas com varanda debruçada para mim. E, de repente, a poesia! A poesia que se exalta da minha sensibilidade grata. É o discípulo de Cesário, decerto o mais humilde, o mais canhestro e apagado que, vencido o pudor, toma a palavra num balbucio de reza, diante daquele vulto adivinhado, glorioso e ascencional. Eu, aqui, no chão que mereço; ele, ali, à altura dos meus olhos erguidos. Cada pessoa dá, de seu, no êxtase da gratidão, quanto pode, ainda que pouco possa. A minha homenagem a Cesário Verde é, ai de mim!, esta mão-cheia de rimas pobres:

    O verso natural
    Que, de repente, fixa, outras vezes se perde
    Na busca exacta das imagens
    De um sentimentalismo ocidental, 
    Foi ele quem mo deu, o Senhor Verde, 
    Empregado no comércio de ferragens
    E poeta maior de Portugal. 
    
    Ei-lo, o verso, na angústia da cidade
    Que o cerca, o envolve e o descora, 
    Nocturna, sepulcral, de obscura fome, 
    Sedento de beber a claridade 
    Dos sumos acres dos pomares de outrora, 
    Na cor sadia e fresca do seu nome. 
    
    Verso verde, viril! Eu imagino-o
    Capaz de celebrar, com perfeição, 
    Uma terra de esperança, 
    A confinar o mar, como destino; 
    A semear, honesto, o pão; 
    A erguer do solo ao Sol uma criança. 
    
    Assim o sei, sábio de ser subtil, 
    Por isso o elegi coloquial, 
    No verbo que, sem névoa, me renova. 
    Verso verde, viril, 
    Que o punhado final, cruel, de cal
    Não secará na minha cova. 
    Macau 
    (7.12.1986) 

Palestra proferida em Macau a 15 de Dezembro de 1986, no Centro de Difusão Cultural, a convite do Instituto Cultural de Macau, para comemorar o I Centenário da Morte de Cesário Verde, e que teve a colaboração do actor Amílcar Martins que leu O Sentimento de um Ocidental na íntegra e os dois trechos do poema Nós.

Não é por preferência subjectiva que é dado neste número de RC lugar de destaque às artes-apenas procuramos corresponder à notável colecção de iniciativas do foro artístico, acontecidas em Macau durante os últimos meses. Ao menos das principais, aqui damos merecida notícia. • Pela mão do ICM, do Governo e da Academia de Música S. Pio X, já agora se concentra no Território um conjunto de exibições das artes musiciais e do canto, num programa que reúne um elenco de intérpretes portugueses e estrangeiros da melhor qualificação internacional, o que legitima a afirmação de que Macau é, numa estação, a "capital da música". • Semelhantemente, poderia dizer-se que Macau foi, à sua escala, uma pequena "capital das artes". • A descoberta e primeira exibição mundial de uma pintura do grande mestre do impressionismo Edouard Manet, constante do inventário da sua obra de projecção universal, e no entretanto tresmalhada no comércio anónimo de proprietários vários, lançou Macau no enfoque dos meios e coleccionadores de todo o mundo pictórico - artístico. • Em sucessão de seis mostras, integrando os seus mais significativos e marcantes expoentes, foi patenteada em Macau a principal produção pictórica portuguesa dos últimos cem anos, dos Naturalistas aos Abstractos e Neo-Figurativos, e onde Columbano e Almada Negreiros tiveram justo privilégio de exposições individuais. • Neste entre-tempo e a convite do I. C. M, enquanto Macau se honrava com as visitas de Miguel Torga e de Ai Qing, considerados os mais representativos poetas vivos de Portugal e da China, era também apresentada no Oriente essa grande figura do modernismo português, Júlio/Saúl Dias, poeta e pintor como Almada - em boa literatura, em diaporamas e na exibição de alguns originais inéditos. • Entretanto, iam desfilando em exposições os já consagrados pintores portugueses Sebastião Resende e António Carmo, a ceramista Maria João Oliveira, o talentoso pintor macaense Novikoff e a pintora chinesa, residente em Hong Kong, lrene Chou. • Excluindo tantas outras iniciativas, mostras e exposições, que não podem aqui ter lugar de desenvolvimento, RC cumpre assim a sua função, complementando esse conjunto de manifestações da Pintura com a bastante divulgação. • Daí o motivo inspirador da nossa capa - Almada Negreiros, na recriação do retrato que fez de Fernando Pessoa (Orpheu 2), por Carlos Marreiros. Participação simbólica de RC nesta exibição pujante, elegemos em Almada afigura central de um grande trânsito da arte portuguesa, pelo que ele reúne de desenhador e de investigador, de decifrador e de executante, de clássico e de moderno, de renascentista do século XX e de alquimista das formas, que sempre aspirou subtrair à curva do tempo, numa vocação de perenidade que é também nossa. •

*Poeta, dramaturgo, ensaista e historiador de Literatura portuguesa.

desde a p. 71
até a p.