Artes

Fundamentos estéticos da Pintura tradicional chinesa

Li Guan Din*

Não se pode discorrer sobre as características da pintura tradicional chinesa sem o prévio esclarecimento dos conceitos de "forma" e "espírito" e de "regras" e "ideias" substantes às diversas pinturas, e que constituem a sua polaridade profunda, essencial.

Todas as tradições artísticas nacionais pressupõem concepções estéticas próprias, isto é, princípios de apreciação e valorização do Belo, e bem assim da sua busca e criação. As artes e a realização do Belo reflectem necessariamente um determinado conceito estético. Elas manifestam--se e evoluem sob a orientação desse conceito que, por sua vez, é enriquecido e aperfeiçoado, complemen-tarmente, pelo próprio progresso das artes, como se comprova no decorrer da sua evolução na história.

Às pinturas tradicionais chine-sas subjaz um conjunto riquíssimo de princípios estéticos. Já antes da Dinastia Qin (221-206 A. C.) havia referências teóricas, directas e indi-rectas, à pintura das principais obras de todas as escolas. Embora assumam carácter fragmentário, e por isso sem unidade sistemática, são de referir como pensamentos académi-cos clássicos. Por exemplo, Confúcio propunha "Huishihousu" (Só o tecido de seda acabado pode ser pintado); Han Feizi defendia que era mais fácil pintar demónios do que cavalos e cães; Zhuanzi preconizava "Jieyi-paugbo" (sentar-se descontraído com as pernas abertas) e os seus pontos de vista sobre a pintura, que punham a tónica no conteúdo, no naturalismo, na expressão dos sentimentos delicados, exerceram uma influência positiva no universo estético da pintura tradicional chinesa.

Da Dinastia Qin à Dinastia Tang, período de grande explosão das artes, institucionalizou-se a compilação dos textos referentes à arte pictórica, objecto de discussão e de análise em colóquios, e daí foram surgindo na China inúmeras obras de estética da pintura, tais como "Lunhua" (Sobre a Pintura); "Wei Jin Sheng Liu Hua Zan" (Críticas das Melhores Pinturas das Dinastias Wei, 220-265 - e Jin do Leste, 317-420); "Hua Yun Tan Shan Ji" (Apontamentos da Pintura da Montanha Yun Tan, de autoria da Gu Kai, da dinastia Jin do Oeste); "Xu Hua" (Análises de Pinturas, de Song Wang Wu, da Dinastia do Sul e Norte-420-586); "Gu Hua Pin Lu" (Críticas das Pinturas Antigas, de Qi Xiehe, da Dinastia do Sul e Norte); "Hou Hua Lu" (Comentário de Pinturas, de Yan Zong, do início da Dinastia Tang); "Zhen Guan Gong Si Huan Lu" (Análise das Teorias de Pintura, de Pei Xaioyuan); "Tang Chao Ming Hua Lu" (Retratos Famosos da Dinastia Tang, de Zhu Jing Xuan, de meados desta Dinastia) e "Li Dai Ming Hua Ji" (Pinturas Ilustres das Dinastias Anteriores, de Zhang Ya-nyuan, dos finais da Dinastia Tang) -isto entre outras obras escritas.

Na Dinastia Song, os letrados foram-se iniciando gradualmente nas questões teóricas da Pintura, concentrando-se nas especulações sobre a forma e o espírito da representação da figura humana, e na perquirição geral do mistério da Natureza, em ordem à densificação das pinturas com flores, pássaros, montanhas e rios. Assim, os trabalhos dos letrados corriam em paralelo com os do Tribunal de Pintura da Corte, conjugando-se para a criação de ambiências propícias ao cultivo dessa arte. Surgiu um grande número de pinturas de alta qualidade, algumas julgadas incomparáveis.

"Lótus", de Badashanren, da Dinastia Qing.

Esta explosão artística deu, re-flexamente, impulso ao aprofundamento estético da Pintura.

Vem a propósito citar algumas das mais importantes obras, entre as mais de duas dezenas de livros que surgiram naquela Dinastia: "Hua Long Ji Yi" (Análise Teórica de Pintura) de Tongyu; "Yi Zhon Ming Hua Lu" (Retratos Ilustres de Yizhou) de Huang Xufu; "Tu Hua Jian We Zhi" (Registo das Pinturas Conhecidas), de Guo Ru-oxu; "Hua Shi" (História de Pintura) de Mi Shi; "Lin Quan Gao Shi" (Maravilhas da Natureza de Guo Xi (pai) e Guo Si (filho); "Xuan He Hua Pu" (Compêndio de Regras para Pintura), compilado na Corte, no governo do imperador Zhao Ji e "Shan Shui Chun Ji" (Colecção Completa das Pinturas de Montanhas e Rios). Nesta altura, era já muito rico o acervo teórico--estético sobre a Pintura chinesa.

Deste progresso estético resultou, nas Dinastias Yang, Ming e Qing, um conjunto de teorias já sistematizadas, acompanhadas de um número sem conta de obras valiosas, que conduziram a arte pictórica chinesa a um patamar de desenvolvimento mais largo e elevado. Depois de uma evolução milenar e de experiências longamente acumuladas, a Pintura tradicional chinesa atingiu a maturidade e a perfeição de um conceito estético próprio, com as suas características específicas.

Quando se discutem as características estéticas da Pintura chinesa é impossível não se falar de dois pares de contradições, que são os das formas e do espírito e os das regras e ideias.

As formas e o espírito. Em princípio, nas melhores pinturas devem harmonizar-se formas e espírito. No que diz respeito à criação, há muito apareceram na China vários preciosos exemplos caracterizados pela combinação desses dois elementos indispensáveis à arte da Pintura.

Mas existiam várias divergências sobre a ordem de prioridade a atribuir às formas e ao espírito.

Han Feizi propugnava a prevalência das formas na pintura. Através do relato de um diálogo entre o rei Qi e um pintor, ele afirmava que era mais fácil pintar demónios do que cavalos ou cães, pela razão de que estes tinham formas conhecidas, mas demónios ninguém os viu. Não era da mesma opinião Gu Kaizi, alegando que era a expressão do espírito o fundamental na pintura.

Quando pintava, inspirado num verso de Ji Kang - "Tocando o instrumento, observa-se o voar do cisne" -comentava com emoção que observar o voar do cisne era mais difícil do que tocar o instrumento.

A discordância manifesta entre estes dois pintores era o reflexo das tendências divergentes entre os artistas. O Tribunal de Pintura da Corte da Dinastia Song, que legara o estilo de Huang Quan, natural de Sichuan, nas Cinco Dinastias (907-923), privilegiava as formas na pintura. Certa vez, o Imperador Zhao Ji convocou os mestres da Corte para pintarem um pavão prestes a voar. Todos o representaram com a pata direita erguida. O soberano criticou-os: "Estão todos errados". Ficaram os mestres boquiabertos, sem saberem o porquê. "O pavão levanta a pata esquerda antes de subir" -explicou o Imperador. Isto é suficiente para demonstrar como no Tribunal de Pintura da Corte imperava o formalismo rígido, como padrão estético.

Todavia, a partir do momento em que os eruditos começaram a pensar a pintura, a expressão do espírito transformou-se no critério principal de apreciação e orientação.

A evolução das artes indica-nos que, na fase primitiva, a pintura se caracterizava pela imitação das formas naturais, segundo o processo "delineamento primeiro, cor depois".

Anteriormente à Dinastia Tang, os pintores abandonavam-se à busca das formas, visando representar fielmente certas expressões das coisas e das pessoas. Indiscutivelmente, a preponderância do espírito, que encaminha as artes a graus superiores, era ainda difícil naquele estádio da pintura.

Nas Dinastias Tang e Song, quando a insatisfação do pintores buscava aprofundamentos e descobertas, a crescente intervenção do espírito abria-se como tendência irrecusável, e isto se foi traduzindo nos trabalhos de todos os mestres da Dinastia Yan, progressivamente libertos do jugo imitativo.

Libertas, curiosas, magníficas ou melancólicas, as pinturas de montanhas e rios das chamadas "Quatro Famílias" (Huang Gongwang, Wu Meng, Ni Zan e Wu Zheu) marcaram um surto inovador. A história da pintura tradicional chinesa atingiu o cume nas Dinastias Ming e Qing. Durante centenas de anos, "linhas" e "pontos" foram transformando-se em "sinais" artisticamente mais aperfeiçoados, caminho de libertação dos pintores do formalismo monótono e permissor da expressão individual das emoções e sentimentos.

Para o comprovar, basta "ler" os "Wash paintings" de flores, de Xu Wei, donde ressalta o seu carácter extravagante e rigoroso, e assim também os peixes, as aves e as estranhas rochas erguidas sobre montes escalvados, de Badashanren, reflexo do seu espírito soberbo e indiferente.

Convém acautelar que a prioridade cometida à intervenção do espírito na pintura não excluía a atenção aos detalhes formais. Su Shi, grande pintor e calígrafo da Dinastia Song do Norte, tinha como fundamental a expressão psicológico-intimista nos retratos. Mas é sintomático que tenha escrito num comentário sobre pintura: "Huang Quan pintou um pássaro voando com o pescoço e as pernas estiradas. Dizem, entretanto, outros, que é impossível um pássaro voar dessa maneira. A observação confirma que ele está errado quando despreza o pormenor. O que não pode acontecer com qualquer pintor que seja, quanto mais tratando-se de um mestre! Os letrados devem fazer perguntas para aprenderem". A severa posição de Su Shi sobre a necessidade de respeitar a conjugação dos detalhes formais com o espírito -constitui a tradição imperante nas pinturas chinesas.

"Regras" e "Convenções": selecção de objectos, leis da composição e das cores etc., tudo obedece a orientações e regras muito concretas.

Por exemplo, "generais com pescoço curto e forte e mulheres de ombros pequenos e delicados", referem-se ao modelo ou arquétipo da figura humana; "dimensões diferentes", previnem da proporção; "ver-melho-amarelo", cor de Outono, "vermelho-verde", cor de flores, "preto-púrpura", cor de morte, "corde-rosa-dourado", brilho dos objectos - prescrevem a aplicação das cores; "o pico da montanha principal deve ser mais alto, ós montes distantes ao fundo mais baixos e as árvores próximas rectas e robustas, mas desiguais", são condicionantes da composição.

Por outro lado, também em relação às técnicas de execução havia muitas regras a observar. Assim, antes de começar a cobrir a seda devia prestar-se atenção particular ao tipo de pincel e às tintas, para conseguir a melhor harmonia entre o movimento da pincelada e a quantidade da tinta. A obtenção de certas tonalidades e matizes, para exprimir correcta e sugestivamente as ideias pretendidas, requeria muito cuidado no embeber do pincel.

Os grandes artistas nunca ficam prisioneiros das normas. Mas sempre, antes de aplicar o pincel, têm que partir com a completa e clara concepção, que se vai manifestando ao ritmo das suas passagens na seda. Segundo Zhang Yan Yuan, da dinastia Tang, por "ideias" deve entender-se pensamentos, sentimentos, espírito e emoções que predeterminam as regras e condicionam a aplicação das pinceladas. Não basta, pois, estar apenas possuído de ideias maduras. É necessária uma enorme concentração no trabalho, que tem que desenvolver-se em fluxo ininterrupto, porque dos vazios espirituais e indecisões do pintor não resultam bons efeitos artísticos.

Há quem opine que a primazia das ideias na pintura chinesa é interdependente com a peculiaridade das suas técnicas e instrumentos. E com alguma razão, porque não há para as pinturas tradicionais chinesas a "regalia" dos óleos, que podem ser corrigidos à vontade pelos autores.

Mas convém não perder de vista que, acima de tudo, o motivo mais predominante na tradição das artes da China é a expressão dos sentimentos. Assim, não há grande pintura tradicional onde se não conjuguem ideias e sentimentos, tal como na poesia lírica.

"Montanha Huangshan (pormenor), de DaoJi, da Dinastia Qing.

"retiro na Montanha Fu Chun", de huang Gongwang, da dinastia Yuan.

O que se acaba de dizer neste primeiro texto, diz respeito ao conceito estético nuclear das pinturas

*Professor de Arte da Universidade de Pequim.

(Traduzido do original chinês, publicado no n°l de Revista de Cultura em Língua chinesa)

desde a p. 98
até a p.