Centenário

Reflexões sobre um Ciclo de Exposições Reflexões sobre um Ciclo de Exposi Reflexões sobre um Ciclo de Exposições

António Conceição Júnior *

"Homenagem a Luca Signorelli", José de Almada Negreiros
"Retrato de Femando Pessoa", José de Almada Negreiros,1964(Óleo/Tela,225×226 cms)

"Uma mesa cheia de feijões.

O gesto de os juntar num montão único. E o gesto de os separar, um por um, do dito montão.

O primeiro gesto é bem mais simples e pede menos tempo do que o segundo.

Se em vez da mesa fosse um território, em lugar de feijões estariam pessoas. Juntar todas as pessoas num montão único é trabalho menos complicado do que o de personalizar cada uma delas.

O primeiro gesto, o de reunir, aunar, tornar uno, todas as pessoas de um mesmo território, é o processo da CIVILIZAÇÃO.

É mais difícil a passagem de civilização para cultura do que a formação da civilização.

A civilização é um fenómeno colectivo.

A cultura é um fenómeno individual.

Não há cultura sem civilização, nem civilização que perdure sem cultura..."

José de Almada-Negreiros

A capacidade de concretização que a viabilidade económica permite, esteve na origem da apresentação em Macau, entre Novembro de 1986 e Março de 1987, da nata da pintura Naturalista Portuguesa, dos momentos mais significativos da obra de Colum-bano, onde se destacam, naturalmente Um Concerto de Amadores, o Grupo do Leão, A Luva Cinzenta e dois dos melhores momentos da pintura intimista portuguesa, que Columbano singelamente apelidou de naturezas mortas. Seguiu-se, no desfile do pensamento artístico português, a obra de Amadeo, de Vieira da Silva, de Almada Negreiros e de sua mulher Sarah Afonso, Bernardo Marques, Carlos Botelho, Eduardo Viana, Mário Eloy, e Abel Manta, entre outros.

A exposição que se lhe seguiu, dedicada inteiramente à obra e à personalidade de Almada permitiu apresentar o seu Duplo-Retrato, as pinturas decorativas, os desenhos e as cari-caturas, o Retrato de Fernando Pessoa ORPHEU 2, e as tapeçarias representando as pinturas das Gares Marítimas e alguns dos seus esboços preliminares.

Seguiu-se-lhe o período compreendido entre os anos 40 e 60, por onde alguns artistas da 1å Geração Modernista se prolongaram, e onde também despontaram e se afirmaram nomes importantes como Júlio Pomar, António Pedro, Joaquim Rodrigo, Fernando de Azevedo, Costa Pinto, Hogan, Cruzeiro Seixas, Vespeira, Fernando Lanhas, Menez, Nikias, Eurico Gonçalves e outros.

Finalmente, e encerrando esse vasto panorama, patenteou-se perante o público maioritariamente chinês, o resultado das experiências do período precedente e o seu consequente prosseguimento com o despontar de novos nomes como os de Graça Morais, Lurdes Castro, Gracinda Candeias, Guilherme Parente, Rocha de Sousa, e a sua natural consolidação de que não devem estar dissociados alguns como António Sena, Teresa Magalhães, Pedro Chorão, Palolo, Fátima Vaz, Calhau e tantos outros.

Mas gostaria de resistir à tentação de relatar este panorama da Pintura Portuguesa dos últimos cem anos porque a sua história ficou escrita no conjunto de catálogos, onde, pela primeira vez foi possível editá-la em chinês.

Não seria correcto omitir todo o empenhamento dos Comissários, Margarida Mathias, Maria de Lourdes Bár-tholo, Rui-Mário Gonçalves, Sommer Ribeiro, a quem se, f icou a dever toda a coordenação em Portugal, Fernando de Azevedo e Sílvia Chicó.

Embora tenha sido afirmado publicamente - com benevolência decerto - que este panorama foi o acontecimento cultural mais importante da história de Macau, cumpre referir que, se porventura o foi, não teve esse objectivo, ainda que legítimo.

Tratou-se de um gesto que se pretendeu civilizado, no seguimento de e antecedendo também outros, mais despercebidos no sentido de aunar, tomar uno, todas as pessoas de um território (curioso se torna verificar como é oportuno e quase profético este texto de Almada).

Estou, ainda que distante no tempo e nas circunstâncias, identificado com o que Mestre Almada escreveu sobre civilização e cultura. É que, de facto, trazer a Macau o mais completo panorama do último século de Pintura Portuguesa explanado em etapas sucessivas, se tratou de um acto de apresentar a uma civilização antiquíssima, portadora de pesadas cargas culturais pouco mutáveis, uma outra que sofreu um processo de mutação sintonizado com todo o movimento ocidental de renovação que nos trouxe ao pensamento contemporâneo.

Pintura, José Mouga,1981(acrílico sobre tela,146×97 cms)

Aunar, tornar uno, afinar identificar, é principalmente propôr um conjunto de actos e gestos culturais que diluam o que as civilizações têm de inerte para que do individual se chegue ao colectivo, organizado em torno do sentido e da consciência de Cidade.

Trazer a terreiro, como que com-petitivamente, considerações quer históricas quer estéticas sobre os principais movimentos e correntes que desfilaram durante 5 meses em Macau, seria não só importuno da minha parte como desajustado, pelo magnífico trabalho, quer de selecção quer de historiografia, desenvolvido pelos Comissários, todos eles credenciados especialistas nas áreas em que intervieram.

O que o Ciclo dos Cem Anos de Pintura Portuguesa deixa antever é a possibilidade de, dando e colhendo, Portugal se afirmar em Macau como potência criadora e criativa de sentidos e vocações urbanas que possam fazer da Universalidade o grande projecto do século XXI.

Esta última afirmação não exclui as outras componentes da teia social, económica e cultural que é Macau, antes as potencia, organizando-as em diversos níveis unidireccionais. Contudo, desta relação devem ser excluídos à partida, quer sentimentos de culpabilidade que desencadeiam por vezes atitudes demagógicas pouco di gnificantes, quer, por outro lado, meras importações de produtos culturais, desenquadradas de um tecido social ainda em busca de uma definição a que "as especificidades do Território" não conseguem de todo dar cobertura.

Alguém disse que o exercício cultural era o instinto da razão, máxima que ganha mais vigor em sociedades cujos comportamentos e manifestações semiológicas colectivas e individuais são, para o ocidental, detentor do poder de decisão, ocultas.

Daí que, mais uma vez, aunar, tornar uno, seja um acto cívico (do latim civicus) nesta Cidade (do latim civitas) a carecer urgentemente de uma afirmação de civilidade (do latim civilitas).

Como o latim pode fazer, realmente, sentido.

Nas naturais e inevitáveis reflexões de quem exerce funções nesta área, com os meios de que dispõe e as condicionantes existentes, Portugal assume sempre o papel de matriz referencial, entidade fecundante e administrante, à qual tem de caber, dinamicamente, o gesto civilizado e actuante num momento da história do Mundo em que, cada vez mais, os per gaminhos específicos das civilizações coexistem com o teor universalizante das culturas.

Tão importante é-porque civilizado - repensar o acto de viver qualitativamente a e na Cidade, como é importante implementar as estruturas e acções visando o florescimento da apetência cultural dos cidadãos.

Estas duas vertentes, implementadas a vários níveis, assumem o perfil da faceta humanista de quinhentos, em perspectiva realista e sensata, adequada à realidade de Macau.

Depois dos Cem Anos de Pintura Portuguesa, que também serviu em Pequim de pano de fundo ao Acordo Luso--Chinês, importaria proceder a uma movimentação nos dois sentidos, servindo igualmente Macau, afinal cerne e trampolim para esse movimento.

Faria sentido continuar a apresentar exposições, pelo seu teor univer-salista, enquanto racionalmente valeria a pena formar o público nas mais diversas fontes através do fomento da sua própria participação. Trata-se pois, e sobretudo, conforme é patente nos estudos comportamentais, de criar clima e ambiências indutivas que nascerão através da dotação de infraestruturas que possibilitem - enquanto instrumentos de trabalho - a institucionalização de actividades e acções altamente profis-sionalizadas.

Portugal é uma civilização do século XX e importa, em Macau, não só assumir essa característica que - fruto das circunstâncias - é também qualidade, como afirmá-la de forma cabal e descomplexada.

A qualidade intrínseca e significativa dos Cem Anos de Pintura Portuguesa precedeu outros projectos já em carteira, a maior parte em fase de laboração, e que visam implementar qualitativamente a vivência cultural de Macau a vários níveis e áreas, ordenadas de forma explanatória, aguardando apenas definições orgânicas e conjunturais para serem implementadas. Urge. •

"Milho ao Sol", José Maihoa, (óleo sobre madeira,34×41 cms)

*Chefe dos Serviços Recreativos do Leal Senado; Conservador do Museu Luís de Camões.

desde a p. 92
até a p.