Centenário

DO QUTIDIANO EUGÉNIO SALES NOVIKO

São labaredas, flechas de fogo que ele o artista, para as não lançar da boca, faz pelo gesto pictórico ou desenhístico, como que espalhando cinzas geomânticas, apaziguadoras, à terra do dia-a-dia, que ele sofregamente mastiga.

Os rostos que o artista pinta, são dele próprio radiografias psíquicas, resultantes da sua labiríntica personalidade. São esses rostos que ele não pode exibir no quotidiano, porque a sociedade de consumo não quer, não autoriza, e só aceita autorizar as máscaras de polido alabastro ou de pó-d'arroz-base-e-rimel-com-shadow-baton-e-sorrizo-dentrífico-tipo-video-clip. Por isso, só lhe resta ser ele próprio ao se ver no espelho da tela ou do papel.

No átrio do catálogo, António Andrade descreve de forma viva e concisa, como Novikoff mistura "no labirinto de uma vida interior (...) substâncias tão diversas como símbolos icónico-literários convocados sem propósitos de erudição" que são a máscara, o"elemento que em si resume uma ligação afectiva com raízes a uma vivência de tal modo imperativa que se torna omnipresente".

A proposta plástica que Sales Novikoff faz é brutalmente perturbadora. Perante ela ninguém poderá ficar indiferente. E é autêntica. Porque o artista não se esconde por detrás das cortinas da erudição, que não a tem, nem talha - ismos artístico-filosóficos por não ser, nem querer ser aprendiz de alfaiate de crítica d'arte. Nesse estrito sentido é até um puro pintor naїf.

Não vejo porque não deva transcrever aqui, o que escrevi há 3 anos, sobre este artista e a sua obra, pois estes continuam coerentemente na mesma, não obstante esse texto ser menos africano que a presente introdução. Assim:

«Mais do que procurar predicados, possivelmente conotáveis a correntes artísticas, promover analogias estilísticas, catalogar com definições o trabalho de Eugénio Sales Novikoff, ou ver nele pesquisas expressionistas em Edward Much, ensaios cromáticos às vezes fauvistas, "distorções" picassianas, psicadelismos, ou interjeições afro-latino-americanas autóctones, parece-me importante, procurar na plástica desse artista, os pontos acupuncturais que estabelecem, nos meredianos da sua existência quotidiana, as feitorias do seu imenso império do Subconsciente, que ele Novikoff, não consegue dominar, tiranizar. Sim, tiranizar o exército de dia-binhos do seu território ocupado, banindo a violência. Violência, palavra-chave no discurso de Novikoff: "as minhas obras são muito violentas, por isso, não quero arranjar títulos muito violentos"/" a violência é importante na vida" Violência que ele procura expulsar. Pacificamente. A violência não dum delinquente ou dum possesso. Tão-só a violência necessariamente (??) inerente à condição humana, enquanto usufruária, pela his-toriogenética, da pesada herança do pecado-original-primeiro. Mas como expulsá-la se o mundo que rodeia o homem é violência, e da violência? Precisamente pelo pincel, eremita nos seus gestos de exorcista. Essa violência, é liberta pelo desespero do artista que não a consegue sufocar em si. Ela esbarra com a violência exterior vigente, tece algumas relações imediatas e, como que repelindo--se, é devolvida à superfície "branca" onde o artista a encarcera para sempre nas texturas dos seus traços.

Depois de se percorrerem muitos corredores em penumbra, muitas íngremes escadarias, atinge-se o território ocupado de Novikoff - o seu subconsciente -ferreamente guardado, por um adamastoresco carrasco de machado em punho. Uma espessa porta dá acesso às celas. Talvez até a salas de tortura. Terrores, traumas, vitórias, frustações, experiências, fantasmas, memórias, impulsos primários, bichos pré-históricos, vida, morte, nascimento e alegrias passeiam neste grande fórum de forças incontroláveis. O carrasco aí continua, sério, intransigente.

desde a p. 103
até a p.