Linguística

Li Bai o píncipe da poesia chiesa

António Graça de Abreu*

Pormenor de pintura retratando o poeta Li Bai, de Su Liupeng, Dinastia Qing

Li Bai (Li Po ou Li Tai-pé) nasceu no ano de 701 em Tokmak, a noroeste do lago Issik-kul, no actual Turquestão russo, na Ásia Central. Seu bisavô, ou avô, provavelmente por delitos na classe do man-darinato a que pertenciam, terão sido expatriados, condenados ao exílio nas regiões excêntricas da China. Mas, aos cinco anos de idade, Li Bai já se encontra no Império do Meio, na província de Si-chuan que o poeta sempre considerará o seu torrão natal.

Educado pelo pai nos moldes clássicos da velha China, Li Bai mostra-se um aluno excepcional, irreverente, imaginativo, ávido de ver e conhecer.

Aos 19 anos inicia as suas peregrinações pelo grande império chinês. Visita monges tauistas e budistas que habitavam em ermitérios no alto das montanhas, longe das vilanias e artimanhas dos homens, em contacto com os livros e com o deus supremo, a Natureza. Espadachim e mestre em artes marciais, o jovem Li Bai não hesita em desembainhar a espada ou utilizar os punhos em defesa dos mais fracos ou de uma dama. Ele próprio confessa haver morto alguns homens, na sua juventude. Anda de terra em terra, cavaleiro andante e trovador errante, em busca de amigos e poetas, da serenidade das montanhas, de paz interior, dos puros prazeres da vida. Escreve e improvisa versos com inacreditável facilidade. Toldado pelo vinho - um dos seus grandes amores e tema frequente na sua poesia -, pode compor dezenas de poemas. É, de resto, imensa a galeria dos grandes poetas bêbados: Horácio, Omar Khayyan, Charles Baudelaire, o nosso Fernando Pessoa.

No ano de 725, Li Bai parte para uma longa viagem que o levará a Xiangyang, ao lago Dongting, às montanhas Lushan, à fascinante e boémia cidade de Yangzhou. Dos lugares por onde passa nos deixa poemas, fiéis pinturas da paisagem, fantásticas combinações de palavras, um mundo maravilhoso cinzelado a caracteres. Casa aos vinte e seis anos e nascem os dois primeiros filhos. Mas Li Bai é um homem em permanente alvoroço - casará mais três vezes - e aos trinta anos encontramo-lo em Chang'an (a actual Xi'an na província de Shaanxi), então a capital do império e o centro cultural da China da dinastia Tang (618-908). Continua a viajar pelo império. Alguns dos maiores poetas da época, homens como Du Fu, Meng Haoran, Gao Shi, são seus amigos. Sobre Li Bai escreveria Du Fu, o sábio dos poetas da velha China:"Suas palavras correm como o vento,/escreve poemas capazes de comover os deuses."

Entre 742 e 744 está de novo Chang'an. Já famoso, deixa-se tentar pela vida da corte e, a convite do imperador Xuangzong, entra na academia Hanlin onde se agrupam os grandes letrados da época.

A irreverência de Li Bai acabará em breve por lhe provocar nova e radical mudança de vida. Meio bêbado, durante uma festa no palácio, exige a vinda do intocável eunuco Gao Lishi e, em presença do imperador, pede ao eficiente zelador do serralho imperial, e de alguns dos mais momentosos negócios do Estado, que lhe descalce as botas. O imperador acha muita graça ao desacato, anui com a cabeça e, perante o gáudio geral, Li Bai é descalçado por um dos mais poderosos homens da China. Gao Lishi, nos complexos jogos de palácio, não tarda em manobrar e Li Bai é obrigado a sair de Chang'an. Na hora da partida, o imperador entrega-lhe um saco com moedas de ouro.

Aí o temos, uma vez mais, jornadeando pela China, ao encontro de velhos e novos amigos, embebedando-se em tabernas e hospedarias de boa e má fama, amando as mulheres que soube amar, subindo às montanhas, passeando os olhos pela paisagem, escrevendo poemas.

Em 755 rebenta a rebelião de An Lushan, um general tártaro que pretende substituir-se ao imperador Xuangzong e fundar uma nova dinastia. Chang'an é conquistada e saqueada, a corte foge e refugia-se em Sichuan. Li Bai que havia entretanto encontrado um protector no príncipe Li Ling, décimo sexto filho do imperador, é preso, condenado à morte, depois agraciado, sendo no entanto exilado para Hunan. Escreve: "Olho a rota do exílio que conduz a Chang'an/e procuro em vão os meus e o meu lar."

Em 759, vencida a rebelião de Anlushan e as revoltas locais, é decretada uma amnistia e o poeta pode regressar ao lar. Empreende então nova longa viagem, não sem se quedar demoradamente em casa de velhos amigos. É a fase final da vida do poeta.

Uma lenda muito conhecida diz-nos que Li Bai, por uma fantástica noite de luar, decidiu dar um passeio de barco. Completamente bêbado, tentou abraçar a lua reflectida nas águas e morreu afogado. Na realidade, Li Bai, que amava quase tanto a lua como o vinho, morreu em 762 em casa do seu primo Li Yangping, seu testamenteiro e a quem devemos a grande recolha dos versos do poeta.

Li Bai é, ao lado de Du Fu, em trinta séculos de poesia chinesa, um dos nomes mais eminentes. E é seguramente, o maior poeta da dinastia Tang, Idade de Ouro na poesia chinesa. Há mil e duzentos anos que exerce uma influência magnética sobre os seus compatriotas e, hoje, qualquer chinês minimamente instruído conhece de cor meia dúzia dos seus poemas. Amigo do imperador ou de prostitutas, de letrados ou taberneiros, de ministros ou monges, Li Bai atravessou a vida como uma estrela fugaz cintilando pelos espaços imensos da magia e do sonho.

Descoberto em 1866 por Eça de Queirós que, aos vinte e um anos, lia avidamente as traduções de poesia chinesa de Hervey de Saint-Denys, Li Bai mereceu do nosso maior romancista as seguintes palavras:

"Mas o que é o sonho? O que são visões? São as atitudes fantásticas e desmanchadas que a sombra dá às verdades. Já pensava assim o poeta Li Tai-pé que escrevia sobre as coisas santas da China, entre porcelanas e lacas, ao aroma dos nenúfares, vestido de sedas amarelas, perfumado de sândalo - dôce, contemplativo, branco, diante de um vaso de margaridas. » (in Prosas Bárbaras, Misticismo Humorístico.)

A melhor homenagem a Li Bai é publicar os seus poemas na língua de Camões, mesmo considerando todas as impossibilidades de se traduzir poesia, mais ainda quando estamos em presença de uma língua como o chinês, com uma escrita ideográfica e não alfabética, uma língua monossilábica acentuada em tons, com uma sintaxe impessoal e passiva que faz economias ou deliberadamente ignora género e número (ele ou ela, eu ou nós?), com vocábulos que podem ser, com a mesma representação gráfica e sonora, substantivos, verbos ou adjectivos. Temos ainda a acrescentar as regras de prosódia tão diferentes das nossas, os efeitos musicais, os paralelis-mos visuais e as metáforas, os jogos de alusões culturais e as referências históricas que nada têm a ver com a nossa História e a nossa Cultura. Mesmo com a ajuda das melhores traduções inglesas e francesas, de Arthur Waley, Burton Watson ou A. C. Cooper, de Paul Demiéville ou François Cheng, a poesia chinesa não é para traduzir. Perdoe-me o leitor de língua portuguesa a ousadia de o tentar.

Sente-se confortavelmente no seu sofá, imagine Li Bai no século VIII da nossa era "entre porcelanas e lacas, ao aroma dos nenúfares, vestido de sedas amarelas, perfumado de sândalo", escrevendo:

POEMA ANTIGO

    De manhã, brinco no Mar da Jarra Púrpura, 
    ao entardecer, cubro meu corpo de vapores
    rosa. 
    Levanto a mão, colho um rebento na árvore de
    Ho,(1) 
    subo a uma nuvem, passeio entre os pontos cardeais
    e vou buscar um raio de sol poente. 
    Meu rosto de jade enche-se de pedacinhos de gelo, 
    depois volteio no ar e avanço no infinito. 
    Baixo a cabeça, venero o Senhor dos Céus,(2)
    ele me faz entrar na Pureza Suprema (3)
    oferecendo-me vinho mágico numa taça de jade. 
    Se a festa aqui se prolonga por dez mil anos
    para quê regressar ao país natal? 
    Mais do que nunca, desejo voar com o vento
    e rodopiar, à vontade, na imensidão do céu. 

VIAGEM

    Avida é apenas um breve viajar, 
    a morte, o regresso à eterna morada. 
    Efémero o trajecto entre Céu e Terra, 
    em nós, o pó antigo de dez mil séculos. 
    Na Lua, o coelho busca em vão o elixir da vida. 
    A árvore da imortalidade é hoje um montão de lenha. 
    Morre o homem e os ossos se transformam em nada
    quando os pinheiros verdes conhecem, de novo, a
    Primavera. 
    Olho para trás e suspiro, 
    olho para diante e suspiro. 
    Que existe de imutável e duradouro
    nas vaporosas glórias da vida? 

A MENINA DE WU

    Ovinho corre
    em taças de ouro. 
    Chega a menina de Wu, 
    quinze anos montando um cavalo fogoso; 
    as sobrancelhas pintadas de negro, 
    as botas de cetim vermelho. 
    Ainda tropeça nas palavras, 
    mas canta como um rouxinol. 
    No calor da festa
    aconchega-se em meus braços. 
    Que faremos ambos
    por detrás das cortinas côr do hibisco? 

FIM DE TARDE

    Omonge budista da montanha Zhu (4)
    tem um alaúde. 
    Desce do cume dos montes
    e toca em minha honra. 
    Rútilos sons como um murmúrio de pinheiros
    na floresta agitada pelo vento. 
    Depura-se meu coração
    lavado nas águas do rio. 
    A doce melodia une-se
    ao longínquo tanger dos sinos. 
    A tarde cai, macia e lenta, 
    e os montes esfumam-se em névoa suave. 

VISITA FRUSTRADA A UM MONGE TAUISTA NA MONTANHA TAITIEN

    Cães ladrando
    entre o murmúrio das águas. 
    Flores de pessegueiro carregando
    pesadas gotas de chuva. 
    Veados saltando no fundo da floresta. 
    Bambus selvagens perfurando
    a névoa gris. 
    Cascatas voando
    suspensas de cumes verdejantes. 
    Meio-dia, não se ouvem sinos. 
    Ninguém sabe
    onde encontrar o velho mestre. 
    Triste, procuro apoio
    em dois ou três pinheiros. (5)

CANÇÕES PARA AS PEÓNIAS

I

    As nuvens multicoloridas
    fazem-me pensar em seus vestidos. 
    As flores recordam-me
    o seu rosto. 
    O vento da Primavera
    lança pétalas contra a balaustrada, 
    pétalas pesadas, brilhantes de orvalho. 
    Se a não tivesse encontrado
    na Grande Montanha de Jade
    tê-la-ia descoberto
    no Terraço de Jaspe Verde (6)
    ou, talvez, na Lua. 

II

    Um ramo de soberbas e belas flores
    docemente matizadas de orvalho gelado. 
    Incomparável noite de amor
    na Montanha da Mulher Encantada (7)
    onde todo o sofrimento é vão. 
    Eu pergunto quem se assemelha a ela
    no Palácio dos Han? 
    Como não lamentar a "Andorinha Voadora"
    que apenas pode contar
    com seus enfeites? (8)

III

    A flor famosa e ela, de uma beleza
    capaz de derrubar dinastias, 
    ambas trazem felicidade
    e as duas recebem o sorriso do seu Príncipe. 
    Mas só o vento da Primavera
    pode compreender e explicar
    os imensos ciúmes da flor, 
    curvada sobre a vedação
    na varanda
    do Pavilhão dos Aloés. 

NO TEMPLO DA MONTANHA

    Noite, no templo, no alto da montanha; 
    posso levantar a mão, acariciar as estrelas, 
    mas não ouso falar em voz alta, 
    receio assustar os habitantes do céu. 

(1) Árvore fantástica que cresce na montanha Kunlun, no Ocidente lendário.

(2) Divindade máxima do tauismo.

(3)Uma das regiões etéreas do tauismo, apenas acessível aos"imortais".

(4) Shu, é o nome antigo da actual província de Sichuan.

(5)Um dos primeiros poemas de Li Bai, escrito provavelmente aos 19 anos, na fase de vagabundagem e aprendizagem tauísta pelos ermitérios do norte da província de Sichuan. Tema comum na poesia chinesa, o mestre, ausente, actua sem agir, Wu Wei, obrigando o aluno a aprender Yang Pu Jiao (conceder, ministrar sem ensinar ), pela contemplação e comunhão com a Natureza. Arthur Cooper, na sua tradução do poema, compara esta forma de ensinar a um conceito fundamental de Ludwig Wittgenstein expresso nas sua Philosophiche Untersuchungen: "Não penses em, olha para!"

Fernando Pessoa, via Alberto Caeiro, no poema XXIV de "O Guardador de Rebanhos", diz:

"O essencial é saber ver,

Saber ver sem estar a pensar,

Saber ver quando se vê,

E nem pensar quando se vê,

Nem ver quando se pensa."

Ver a propósito do pensamento oriental na poesia de Fernando Pessoa o curioso artigo de Armando Martins Janeira, Zen na Poesia de Fernando Pessoa, Nova Renascença, n° 23/ 24, Porto, 1986, pag, 285 e sgs.

(6)Em chinês Qunyushan e Yaotai, moradas míticas de Xi Wangmu(西王母), a Raínha Mãe do Ocidente, soberana dos imortais do tauísmo. Ver CiHai (Dicionário Mar de Palavras), Shanghai, 1984, pag. 1833.

O senhor Li Ching, desde 1977 professor de Língua Chinesa na Faculdade de Letras de Lisboa, na sua pequena separata "Três Poemas de Li Bo", Rev. da Fac. de Letras, IV série, n° 2, 1978, traduziu apenas a primeira estrofe deste poema e redigiu esta nota surpreendente:

"Yushan ("montanha de jóias") ou Qunyushan ("cadeia de montanhas de jade"), onde residiu a mãe do imperador, Xi Wang-mu."

(7) É a montanha Wu, ou Wushan, que se situa entre as actuais províncias de Sichuan e Hubei e surge frequentemente citada na literatura clássica chinesa. Vejamos porquê:

Song Yu (300 a. C. a 240 a. C.), um dos primeiros grandes poetas da China, para além da sua produção poética, escreveu uma pequena história, que, ao longo dos séculos, foi sistematicamente estudada e decorada por todos quantos se debruçaram sobre os textos clássicos. Trata-se do "Ensaio Poético sobre Gaotang" (Gaotang Fu). No prefácio, Song Yu fala de um príncipe da antiguidade clássica que viajou um dia até à montanha Wu.

"Sentindo-se fatigado, adormeceu. Sonhou então ter encontrado uma mulher muito bela que lhe disse:

- Sou a Dama da Montanha Wu. Soube da tua vinda a este lugar, quero que me dês metade da tua almofada e que durmas comigo.

O príncipe teve relações amorosas com a Dama e, ao partir, ouviu as seguintes palavras:

- Habito a encosta meridional da Montanha Wu. Quando nasce o dia, sou as nuvens da manhã, ao cair da tarde sou a chuva humedecendo a terra."

A junção dos dois caracteres yun (雲) e yu (雨), nuvens e chuva, passa, desde Song Yu a significar o acto sexual, em chinês clássico. As nuvens correspondem às secreções vaginais da terra que é yin, o princípio feminino, e a chuva à emissão do sémen, o esperma celestial masculino que é yang, alcançando-se assim, suave ou tempestuosamente, a perfeita união cósmica.

(8) Como explicação do poema, tem sido normalmente aceite pelos comentadores chineses, ao longo dos séculos, a seguinte história:

"O imperador Xuanzong estava com Yang Guifei, a concubina favorita, nos jardins do palácio. Colhiam peónias, flor recente no império, importada da Índia, quando Xuanzong mandou chamar Li Bai e lhe pediu um poema. Li Bai chegou completamente bêbedo, tendo sido necessário reanimá-lo com água fresca. Logo depois, o poeta compôs estas três estrofes que seriam uma das causas do seu banimento da corte. O influente eunuco Gao Lishi terá conseguido convencer Yang Guifei de que o poeta a havia comparado a Zhao Feiyen, a famosa "Andorinha capaz de dansar na palma de uma mão" Feiyen foi cortesã e depois a concubina favorita do imperador Cheng, dos Han, no século I da nossa era. Depois de ter sido abandonada pelo imperador, suicidou-se. Yang Guifei considerou tal comparação um insulto e preparou a vingança, tendo conseguido que Li Bai fosse afastado da corte.

Arthur Walley, um dos primeiros grandes tradutores ingleses de poesia chinesa, nega esta interpretação e defende, com base em fontes chinesas que, em 745, data da elevação de Yang Guifei a concubina favorita, Li Bai já não vivia na corte imperial.

*Professor Assistente da Universidade Nova de Lis boa; orientalista; foi leitor de portugues no Depar tamento de Linguas Estrangeiras da Universidade de Pequim.

desde a p. 67
até a p.