Artes

SINAIS DE ORIENTALISMO NA OBRA DE JÚLIO

BERNARDO PINTO DE ALMEIDA*

"Sinfonia da tarde"(Óleo,1924; colecção Arq,toAlfredo da Silva Gomes)

"Por assimilação deveras singular de um registo matisseano, a obra de Júlio desde cedo incorporou, no sentido de que fez seu, um grave pendor orientalizante que lhe veio a dar uma das mais interessantes perspectivas."

E esta perspectiva, que nunca foi realmente entendida no seu longo e original percurso, foi ganhando corpo cada vez mais denso através das suas séries de desenhos em que o nanquim sobre o papel passou a tomar cada vez maior importância, definindo um tipo de relação imediata entre a ideia e a execução, que não será das conotações menos importantes com esse alegado orientalismo.

Sabemos hoje como a pintura chinesa tradicional obriga a esse domínio da técnica que faz com que o resultado final não admita a modificação ou a emenda, como ela pressupõe a decisão na linha, a disciplina da mão abandonada ao espontâneo gesto. Assim Júlio o praticou ao longo dos anos, sendo mesmo de considerar a hipótese de que o seu interesse crescente pelo desenho tenha tido a ver com esta procurada disciplina, que era necessariamente expressão de uma tranquilidade interior, de uma sagesse.

Por outro lado, também a pintura chinesa pressupôs, ao longo de muitos séculos, a não representação realista de um determinado local, mas antes a ideia desse local que aparece como sugestão. Um valor portanto não-naturalista em que, sem que a Natureza deixe de ser o referente, é sempre interpretada, ou seja, transfigurada, uma outra linguagem.

Foi este facto, de resto, que tornou tão importante para a pintura moderna ocidental a descoberta da tradição chinesa: o desvio em relação aos códigos naturalistas que ameaçaram tornar a pintura mero mimetismo do real, considerando este como um dado transparente e sem espessura, isto é, não possível de ser interpretado.

Ao descobrirem a liberdade da pintura chinesa tradicional, os artistas modernos do Ocidente puderam dar livre curso a um entendimento da obra de arte que não se ancorasse a uma realidade passiva, mas procurasse para lá do seu rosto imediato os sinais de uma mais funda dimensão. Assim aconteceu com Matisse, por certo, e com todos aqueles que souberam tomar consciência desta extraordinária possibilidade, como mais tarde com os chamados expressionistas abstractos americanos, que redes-cobriram nas caligrafias orientais a potencialidade expressiva do gesto, em sequência de um registo automático das emoções que culturalmente era sancionado pelas teorias surrealistas da produção automática - escrita ou pintada.

Tal aconteceu dando um novo impacto à capacidade de inventar a própria pintura no Ocidente, como no princípio do século tinha sido necessário descobrir a arte negra para que o cubismo se alicerçasse em fundamentos que eram também decisivos como descoberta de mundos culturais a que o Ocidente tinha permanecido fechado ao longo dos séculos de etnocentrismo que o dominaram.

Foi nesta perspectiva que Júlio entendeu - caso raro na arte portuguesa deste século - a importância que revestia esta descoberta e que, inteligente e originalmente, soube assimilar. Por isso a Natureza que pintou nunca foi naturalista mas sempre interpretada; foi um entendimento pessoal da Natureza.

E não deixa de ser interessante constatar como a presença dos elementos animais e vegetais -os pássaros, as flores, os animais, ou mesmo as figuras humanas que aparecem como quase emanações da própria Natureza, os seus habitantes sem conflitos, - encontra a aproximação com temas recorrentes da mais ancestral cultura plástica da China, nomeadamente com aqueles que nortearam a primeira academia de pintura chinesa no século Vlll,"O Bosque dos Pincéis", que seria determinante na pintura oriental.

Ao mesmo tempo que na sua obra é sempre da essência que se trata, ou seja, da procura dos elementos e da sua representação como um estado de espírito: assim por exemplo na série "Poeta" em que a figura do poeta é tutelar e é suposta representar não este ou aquele poeta mas a própria ideia de Poeta.

Esta procura da essência (palavra que seria aliás título de um dos livros de poemas que editou com o seu pseudónimo Saúl Dias) é tão verdadeira na sua obra plástica como o é na sua poesia em que a dominância dos termos que referem a Natureza é evidente, como é fundamental a economia de palavras e de imagens que utilizou, evocando por vezes os Hai-Ku na simplificação extrema que sempre foi sua na tentativa de, através da máxima contenção, conseguir atingir a mais elevada e intensa forma de comunicação poética.

Finalmente, seria interessante reflectir sobre o facto de a escrita caligráfica e o desenho terem sido sempre manifestações tão próximas na cultura oriental. Aqui não poderia ainda Júlio encontrar uma solução, ocidental que era. Curiosamente, a sua obra poética e a sua obra plástica andaram a par, manifestando as mesmas inquietações, e jogando em níveis separados aquilo que ele sabia ser uma única coisa: a necessidade de exprimir uma visão do mundo que lhe ditava a sua sagesse.

E assim o fez, separando é certo os dois domínios, mas sem nunca perder a consciência de que se reportava a uma espiritualidade, a um quase misticismo, na contemplação da Natureza e da Vida, que eram do seu modo de entender as coisas.

E ao fazê-lo, Júlio seguia uma intuição que lhe era ditada já não por uma compreensão, apenas, de certos valores da modernidade europeia, mas talvez mais substancialmente pelos laços profundos que durante os séculos ligaram Portugal, o mais ocidental país da Europa, a uma cultura que se manifestava no Oriente, e por via do conhecimento trazido pelas viagens que os portugueses fizeram desde o século XVI à procura dos mundos então desconhecidos, e que encontrou amplo eco em muita da nossa arte desde então, do mobiliário às faianças, da arquitectura à joalharia.

Era essa herança, profunda na nossa própria cultura, que Júlio afinal redescobria, virtualizando a máxima oriental de que aquilo que está em cima é igual àquilo que está em baixo. Isso foi também nele uma sabedoria. •

*Poeta, crítico, ensaísta; Prof. Assistente de História de Arte da Universidade do Minho; membro da Associação Internacional de Críticos de Arte.

desde a p. 89
até a p.