Artes

Viagem ao princípio da noite

Luís Sá Cunha

Infinito 7

Ao princípio era o verbo... E o espírito movia-se sobre as águas inferiores, sobre o abismo se movia... E o espaço infinito era uma tela negro-bíblia... E foi pronunciado um nome, e a luz revelou as primeiras formas na noite obscura...

Assim, automaticamente, e com dupla analogia, ocorre começar a falar da pintura de lrene Chou porque ela, assombrosamente, nos convida a uma viagem de retorno ou de reencontro com as nossas origens ou estados anteriores: indagadora, viajeira e vertiginosa na busca de um génesis cósmico, e formalmente o "espontaneismo" dos grandes rasgos nocturnos de tinta, imediata sugestão de vertigínica descida da luz, de explosiva fecundação no cenário da noiteantiquíssima e infinita.

O primeiro juízo que nos atreveríamos sobre a pintura de Irene Chou é que ela denuncia inteligência, na selecção de um universo temático bem circunscrito e prestável às características da sua técnica. Porque, se a liberta expressão gestual calha a inundar as grandes superfícies do papel daqueles fundos de manchas agitadas e informes, ao mesmo tempo ela assim constrói o "ecran" de revelação de primordiais figurações de um cosmos palpitante, surpreendido na sua gestação. E aqui é sábia e experiente a técnica que nos revela essas principiais formas, com sobriedade de recursos e de cor e ênfase namovência do gesto, onde o movimento largo se sofreia, esmorece e esbate para luminescer e clarear em espaços onde se abre então o lugar para o traçominudente, moroso, apurado.

É assim que resulta da sua pintura a sugestão dinâmica de um movimento, de um movimento que parece "paradoxal" porque se resolve em quietude, mas uma quietude prenhe de trepidação, calma dos elementos impacientes que começam a encontrar uma forma, que é fixação do espírito na substância caótica. Mas mesmo aí se pressente e vê uma omnipresente vibração e contracção de corpos, um pulsar de seivas, a ondeação de fluidos, como se, oculto, um coração nocturno fosse centro e princípio inesgotável de vida e de formas, Ser de mistérioporque velado.

Tematicamente, a pintura de lrene Chou é "hiperbólica", ou ci-lica, porque o seu discurso é arco arrojado entre duas fronteiras de desconhecido, entre dois polos extremos de princípio e de fim, alfa e ómega de emanação e destino de tudo.

Pintura essencial, extremista, porque no meio não há nada: indiferente às formas definitivas e indi-viduadas, projecta-se das sombras dos modos embrionários às nebulosos mais longínquas do seu devir predestinado. É um Génesis que se confunde com um Apocali-psis. Daí a íntima sugestão apocalíptica, abísmica, vertigínica que dela se liberta, nas superfícies plasmáticas que se desferem em ânsia de metamorfose e evolução, na lenta vertigem de formas prometidas, em precipitações, desmaios, quedas meteóricas, corridas, marés, sangrias de tinta.

Infinito 13

Por vezes, dá-nos a sensação de estarmos a observar o universo trepidante de uma fecundação cósmica, no diapositivo de uma lamela ou pela lente de um telescópio que alcança os princípios, onde se nos revelam os segredos vitais de semente ou "ovo cósmico" em deflagração, em partida para uma viagem não tanto pelas imensidões galácticas como pelos fundos de oceanos interiores.

É assim que o ciclo encerrado nesta pintura tem apenas duas estações, sem Verão nem Outono, porque arranca radicalmente de uma natureza sob o signo de Capricórnio, invernal, subterrânea, germinal de vida, para desabrochar primaverilmente, mas onde há um percurso ontológico que decorre em sentido inverso, de uma natureza naturada para uma natureza naturante.

Pintura feminina, porque essencialmente sensível ao grande mundo da mater e da matéria, assim característicamente chinesa pela prevalência do "yin", assim portanto aquosa, nocturna, lunar, simbolicamente feminina sempre: quando escolhe o momento de uma incubação elementar; quando é inquietante porque é feminino o princípio da revolta; quando em dôr e triunfo se cristaliza nas formas redondas, mini-esféricos, ovulares, corolas e pérolas recluídas em cavidades uterinas; quando é passividade, subtileza, ductilidade, como as espirais que nos denunciam o sopro potente que lhes ordena a geometria.

Pintura tecnicamente dominada, porque os gritos, os derrames, as explosões, as marés de tinta, (de gestualismo só fácil na aparência, porque de mais difícil factura)logo se disciplinam no chocante contraste das linhas que se filigranam em filamentos, veias, lianas, espiralóides, capilaridades umbilicais e circulatórias de linfas e de vida, só alcançadas pela operosidade, paciência e rigor da mão.

Como não conhecemos suficientemente, nem a artista, nem o percurso visto da sua obra, não nos atrevemos a destrinçar o que é nesta sua última colecção de obras expostas (quase todas com o título de "Infinito") simples formalismo temático ou relatório de um percurso interior de indagação, decifração ou posse de realidades outras que sobre(sub)existem ao mundo superficial das formas. Isto é, até que ponto dos modos ela parte para a visão unívoca dos arquétipos, e daí aos princípios.

Estaremos, porém, certos ao dizer que Irene Chou se encontra à beira de uma fronteira abísmica que ultrapassa(rá) quando ou enquanto depurar a sua pintura de tudo aquilo que tenha semelhanças de figurativismo, isto é, quando der morte ao semelhante acidental para buscar o autêntico real, quando se embrenhar além dos véus do mistério para intuir ou visionar um princípio das formas. Será então esse abstraccionismo que a tentará irrecusavelmente, se não como saída, necessariamente como porta de ingresso num labirinto de que só a artista saberá então as pistas, e se e como regressará.

Seja como fôr, e limitando-nos a campos menos atrevidos, interessa assinalar também o seu percurso de exploradora de caminhos, provando nos seus trabalhos e com notável mérito original que a tradição da pintura chinesa não é lago estagnado, e bem ao contrário está cheia de potencialidades, que se revelam e florescem quando o talento almeja fecundá-la com outras tradições, vias e caminhos da Arte. •

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até a p.