Artes

JÚLIO, O PINTOR-POETA: SAÚL DIAS, O POETA-PINTOR

JOSÉ ALBERTO REIS PEREIRA*

Júlio e Saúl Dias, dois nomes, dois pseudónimos de um mesmo poeta: Júlio, o pintor, o poeta plástico; Saúl Dias, o poeta da palavra e da música dos sons. Ambos são os protagonistas da "arte poética" de Júlio Maria dos Reis Pereira, artista do nosso modernismo, nascido em 1902, em Vila do Conde, onde veio a falecerem 1983.

Há em Júlio e Saúl Dias um percurso de caminhos paralelos e convergentes, em que a muda poesia de que falava Camões(1) - a pintura - se completa e encontra com a melodia poética, a pintura que fala (2), numa unidade criadora essencial. Um caso singular de convergência entre a poesia, a pintura e a música, música que não se ouve mas sentimos nos versos, nas vibrações do traço e da cor, música que é suporte do movimento onírico das figuras de Júlio, nas histórias que nos conta do mundo do sonho e do espírito, que é o seu.

Há entre a produção poética de Júlio e Saúl Dias uma diferença quantitativa que interessa salientar. Saúl Dias publica sete pequenos livros - entre 1932 e 1980-que puderam ser reunidos, ainda em vida do autor, num único volume(3); é uma poesia contida, depurada, de anos para completar um poema. Por seu lado, Júlio, o pintor, desenvolve uma intensa actividade produtiva, mais visível, activo participante que foi no movimento modernista em Portugal(4).

Numa visão necessariamente geral, podemos dizer que a obra de Júlio nasce de um expressionismo lírico (1927), desenvolve-se nas primeiras experiências abstractas (1932) e surrealistas (1935) e tem continuidade numa depuração poética, própria e original, visível sobretudo nos desenhos, aguarelas e óleos da última fase. Uma obra em crescendo a que só a morte pôs fim. Uma obra que é, reconhecidamente, das maiores da pintura portuguesa deste século.

Engenheiro Civil pela Universidade do Porto, Júlio dos Reis Pereira exerceu a profissão apenas na medida das suas necessidades e responsabilidades familiares - onde se inclui quem Vos escreve, filho único do poeta - reservando o melhor do seu tempo para a produção de uma obra autónoma, independente, alheia a encomendas e influências oficiais ou correntes dominantes. Ser engenheiro foi um modo de ser independente, de coerentemente poder desenvolver um trabalho inovador, um vigor poético em que cada etapa vem na sequência da anterior, cada uma vale por si, pelo que lhe é anterior, pelo que se espera de seguida.

Alguns críticos têm aproximado a obra de Júlio da chamada pintura naїf. É verdade que encontramos na sua obra alguns dos valores que caracterizam e encantam na obra dos pintores ingénuos, dos pintores de domingo; mas é importante salientar que a pintura de Júlio é uma obra erudita e como tal deve ser considerada, fruto de um trabalho de depuração do conhecimento e da sensibilidade. Um trabalho de artesão que utiliza valores iniciais, puros, essenciais e superiores do espírito humano: o amor, a ternura, a pureza, a paz, a harmonia, uma delicada sensualidade espiritual, uma visão subtil que vai sendo cada vez mais sugerida, cada vez menos explícita. É interessante notar como estas referências estão sintetizadas nos títulos dos três últimos livros da sua obra poética: "Gérmen" (1960)-os valores puros, iniciais, "Essência" (1973) - a procura do essencial liberto do supérfulo, "Vislumbre" (1979) - os breves sinais sugeridos à nossa sensibilidade, à pele do nosso espírito, o subtil convite do artista para o acompanharmos no seu mundo de surpresa, de sonho e encantamento. Para o Poeta, o mundo da Verdadeira Felicidade do Homem.

Há ainda que salientar, como também nos refere Bernardo Pinto de Almeida, que ao longo do percurso poético de Júlio se foram acentuando alguns dos aspectos mais visíveis da influência dos mestres do Extremo-Oriente nas modernas pintura e poesia do Ocidente(5). Em Júlio há mesmo, por vezes, uma orientalização dos rostos das suas figuras emblemáticas: a menina e o poeta. Também a poesia de Saúl Dias, contida e depurada, não deixa de evocar os breves poemas japoneses e chineses. Talvez também por isso, o bom acolhimento que teve a recente exposição de Júlio em Macau(6), razão primeira para esta presença de Júlio e Saúl Dias na nova Revista de Cultura do Instituto Cultural de Macau.

"Pintura"(Óleo;1929colecção do. Mário Soares)

"Muher e Natureza Morte"

NOTAS

(1) - "Os Lusíadas" (Vll,76).

(2) - "Os Lusíadas" (Vlll,41). Aqui Camões fala da poesia.

(3) - "Obra Poética", 1980, Prémio da crítica literária desse ano.

(4) - Desde 1930 que Júlio participou e organizou diversas exposições, em Portugal e no estrangeiro.

(5) - Júlio foi um estudioso da pintura dos mestres do Extremo-Oriente.

(6) - Espera-se que a exposição de Macau seja a primeira de uma série a efectuar nos países do Oriente que com Portugal têm laços de afinidade.

*Engenheiro, estudioso e publicista da obra de Júlio/ Saúl Dias; filho do pintor/poeta.

desde a p. 86
até a p.