O Comércio

NOTICIÁRIO CULTURAL DE MACAU

JANEIRO

Exposição de pintura de Xian.

Estadia em Macau do Grupo de Teatro "A Barraca", onde desenvolveu um trabalho de formação teatral.

Estreia

Iniciado em Janeiro o Instituto Cultural de Macau vem apresentando, quinzenalmen-te, filmes que se inserem numa programação denominada "CINEMA DE QUALIDADE" pelos critérios de selecção utilizados. Assim ao longo do ano foi possível assistir no Estúdio do Cineteatro a obras como "Amadeus", com que se iniciou a programação de cinema, associando-se assim o ICM às comemorações do 2º Centenário da morte de Mozart. Foram ainda exibidos "Sex, Lies and Videotape" e "Wild at Heart", premiados com a Palma de Ouro do Festival de Canes, respectivamente em 1988 e 1990."CINEMA DE QUALIDADE" procurou também promover o cinema europeu, apresentando produções como "Tess","Jean de Florette","Mannon des Sources", L'histoire d'Adéle H","Bagdad Café"e "Mona Lisa".

FEVEREIRO

Festival de Artes de Macau

Anos após ano, o Festival de Artes de Macau vai assumindo um papel e uma dimensão mais importante na divulgação dos artistas de Macau e da região. Foram utilizados os mais diversos espaços como, por exemplo, o auditório do Complexo Escolar, a Associação Comercial de Macau, Forum I e II, Espaço Sintra e Teatro Alegria.1991 foi o ano da internacionalização, vertente a ser reforçada em 1992.

Exposição colectiva de Pintura Tradicional Chinesa e Caligrafia.

Exposição Colectiva de Fotografia.

Espectáculo de mímica pelo Grupo de "Wang de Shun"

Recital pelo Grupo Juvenil de Guitarra da Radiodifusão de Pequim

Noite de teatro pela Associação de Arte Dramática de Macau, Associação de Teatro "Chi Ngai" e Grupo de Teatro da Paróquia de Sto. António.

Noite de Música Popular e Folclórica pela Escola de Guitarra do João, Clube Fringe de Macau, Guitar Center "Sin Wen", Hao Xin Yu, Zhuo Neng Neng, Lei Kit Kuén, Hoi Io Kan, Hoi Io Peng, Wogner Ho Weng Wa, António Hoi Seng Ieong.

Concerto pela Macau Sinfonietta

"Noite das Lanternas" pelo Grupo Musical "Cheong Hong", Instituto Salesiano, Centro de Música "Lok Lam", Orquestra Filarmónica de Macau.

Noite de teatro pela Associação de Teatro "Manhã", Associação de Teatro "Hoi In" e a Associação de Teatro "Cheng Miu".

Noite de Bailado com Grupo da Academia de Dança de Pequim; Grupo de Dança da Escola "Hou Kong"; Escola de Dança "Choi Io Meng"; Escola de Ballet "Hong Peng Wa"; Escola de Dança "Chu Un Wa"; Grupo de Dança da Escola "Kao Ip".

Exposição colectiva de Pintura Contemporânea: Círculo dos Amigos da Cultura de Macau - Núcleo de Pintura Contemporânea, Associação de Belas-Artes de Macau e Associação dos Calígrafos e Pintores Chineses "Yu Un".

Ciclo de Cinema Chinês

"A Actriz e o Diabo"

Realizador: Huang Shu Qin

"Unidos pelo Destino"

Realizador: Zhang Hua Xu

"Jovens do Rock"

Realizador: Tian Zhuang Zhuang

"Neve Preta"

Realizador: Xie Fei

Concerto pela Orquestra Chinesa de Macau

Recital de Pipa por Liu De Hai.

Ópera Cantonense (concerto) pelo Grupo de Canto da Associação Geral de Operários de Macau, Associação de Música "San Seng", Associação de Música e Ópera de Macau, Associação para o Bem Comunitário do Bairro da Areia Preta, Associação de Ópera "Hoi to", Clube Desportivo e Recreativo "Hac Yeng", Associação Juvenil de Música e Canto e Associação de Ópera "Liu Liu".

Ópera Cantonense (encenada) pela Associação dos Empregados da S. T. D. M., Associação Desportiva e Recreativa "Kin Va"e Instituto de Ópera Chinesa de Macau.

Semana de Goa, uma iniciativa que incluiu espectáculos, palestras, gastronomia e outras actividades culturais relacionadas com a antiga colónia portuguesa na Índia.

Exposição de fotografia "Portugal-Apon-tamentos", de Ricardo Fonseca. Exposição comemorativa do Ano da Cabra no Jardim Lou Lim Iok.

MARÇO

"Visões", uma exposição de fotografias de António Conceição Júnior na Casa Garden.

Concerto do Trio de Cordas de Munique.

Exposição de Teresa Magalhães no Jardim Lou Lim Iok.Concerto do guitarrista português Carlos Paredes.

ABRIL

Exposição de três artistas plásticos de Xangai, organizada pelo ICM. Concerto da Macau Sinfonietta na Universidade da Ásia Oriental.

Exposição de desenhos de Patrícia Fonseca na Pousada de São Tiago.

Exposição de pinturas e desenhos de Anabela Canas no Jardim Lou Lim Iok.

Exposição dos Jovens Ceramistas de Shek Van no Leal Senado.

MAIO

Van Gogh, uma exposição de quarenta reproduções da obra do famoso pintor holandês.

Conferência do Padre Luís Archer.

Exposição de pinturas de Maria Gabriel na Casa Garden.

Festival de Jazz de Macau, com Jimmy Witherspoon, Eugene Pao e o grupo português Cal Viva, entre outros.

JUNHO

Presença

Natália Correia, um dos grandes vultos da poesia portuguesa dos nossos dias, esteve em Macau por iniciativa do Instituto Cultural e como convidada de honra do «Cenáculo Luís Gonzaga Gomes», tendo proferido na Livraria Portuguesa uma conferência subordinada ao tema «O orientalis mo na poesia portuguesa». Acompanhou-a o poeta e cineasta Dórdio Guimarães, que apresentou quatro dos seus filmes-biografia produzidos para a RTP, sobre a vida e obra de Teixeira de Pascoaes, Antero de Quental, Fernando pessoa e Florbela Espanca.

Iniciativas culturais do 10 de Junho

Com a presença do secretário de Estado da Cultura, Santana Lopes, o 10 de Junho, dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas, decorreu em Macau sob o signo da arte e de iniciativas culturais da mais variada ordem.

Sarau cultural no Forum I com grupos musicais de Portugal, «Madredeus» e de Cabo Verde, «Tubarões» e o conjunto de fado de Vicente da Câmara e outros intervenientes.

Igualmente no Forum teve lugar um concerto da Orquestra Chinesa de Macau dirigida pelo maestro Chan Yu Kwan, que foi constituída em 1987 e que já actuou por diversas vezes em Portugal.

A Orquestra de Câmara de Macau, dirigida pelo maestro Simão Barreto, acompanhado pela pianista de Hong Kong, Sum Wai Chung, deu também um concerto no Forum.

A Exposição «Sons de África», de artistas portugueses radicados na Africa do Sul, foi outro acontecimento de relevo no quadro das comemorações do 10 de Junho.

Conferência sobre «Luís de Camões e a poesia tradicional portuguesa» na Universidade da Ásia Oriental, que teve como oradora a Professora Maria da Conceição Vilhena.

A Casa Garden acolheu uma exposição de António Conceição Júnior, denominada "Hábito-Memórias a Oriente".

"Macau-150 anos de fotografia", foi uma exposição de largo interesse a abarcar século e meio da historiografia de Macau, escolhida de um novo álbum de Rogério Beltrão Coelho que abrange um período de entre 1844 e 1984. O acontecimento teve lugar na Galeria do Leal Senado.

JULHO

Durante uma semana esteve patente ao público, na Galeria do Leal Senado, esta nova edição da Bienal de Fotografia, numa realização da Associação Salão Fotográfico de Macau.

Nuno Santiago expôs as suas pinturas recentes na Casa Garden.

AGOSTO

A Associação de Calígrafos de Macau apresentou a sua exposição anual de caligrafia chinesa na Galeria da Livraria Portuguesa, a qual foi visitada por um público interessado e desperto para estes eventos.

Presença do ICM na Feira do Livro de Hong Kong.

Congresso Internacional de Literatura Comparada.

Concerto do flautista português Rão Kyao.

Exposição de pinturas de Foshan.

SETEMBRO

"Salão Anual de Fotografia", patente na Galeria do Leal Senado, com uma amostra variada e de excelente qualidade.

Exposição de Papagaios de Papel, tradicional e popular arte chinesa, concretizada por iniciativa do Leal Senado, no Lou Lim Iok.

"Onde moram os Pássaros?", foi a denominação de uma exposição de pintura de Rui Calçada Bastos, na Casa Garden.

José dos Santos Ferreira simboliza, para mim, aquela Macau que eu mais estimo e não cheguei já a conhecer salvo em alguns dos seus vagos vestígios, quer nas fachadas de velhas casas em velhas ruas, nos interiores penumbrosos das igrejas, no ângulo característico de um pátio recatado; quer frequentando o estabelecimento comercial que ainda não cedeu à tentação dos vidros e dos cromados e ao chamadoiro nocturno dos coloridos néons; ou alimentando as relações amistosas com antigas famílias ali nascidas há séculos, folheando-lhes os álbuns delidos, devassando-lhes as memórias quase gastas.

Aquela Macau pacata, senhorial e provincial, que desconhecia o agressivo esplendor do Hotel Lisboa; a ascenção vertiginosa dos edifícios de cimento, muralhando o passado; o dorso arqueado da ponte, a formar o salto sobre a Taipa; o fervilhar atropelante das multidões.

Aquela Macau só habituada a deambular quase solitária, por horizontes de verdura, sem o trânsito raivoso dos motores; preguiçando na amenidade e torpor dos jardins, onde o canto dos pássaros dosselava o jogo do xadrez meditativo e agachado sob as sombras olorosas. Aquela Macau deixando viajar o olhar lento nos navios que partiam com um adeus de velas ou um sopro efémero de fumo.

Aquela Macau que ainda falava e ainda entendia o linguajar do seu "dóci papiaçam". Imagino-a muito, àquela Macau mesclada de Ocidente e Oriente, com a ternura presepial dos Natais e a alegria atroante dos panchões a festejar, entre o clarão dos pivetes, o Ano Novo Chim.

E trago-a no coração, acalentada pelas leituras felizes das novelas de Francisco Maria Bordado, ou de Henrique de Senna Fernandes, onde o prodígio da ficção tem o gosto da realidade; e pela leitura grave das escavações históricas de Monsenhor Manuel Teixeira, onde o prodígio da realidade tem o gosto da ficção. E porque a Poesia é a mais bela forma de louvar, é na leitura dos versos de José dos Santos Ferreira que encontro o exacto elogio daqueles idos tempos de Macau, tão do meu agrado.

Com efeito, a poesia do simpático Adé (como o poeta é conhecido entre os amigos, na cidade que lhe foi berço), figurita frágil na aparência, mas experimentada no campo do desporto, com traços menineiros na face enrugada, de palavra calma e modos elegantes e gentis, que não me cansei de ver, diligente, nos meandros do Hotel Lisboa: na sumptuosidade finissecular, algo puída, do Clube de Macau, onde, à ilharga, no pequenino palco do romântico Teatro de D. Pedro V, haviam largamente esfuziado, com sal e pimenta q. b., os seus textos dramatúrgicos em patuá, integrados em revistas de costumes locais; a poesia do simpático Adé, continuamente nos oferece uma Cidade do Santo Nome de Deus íntima e saudosa, com a serenidade das madrugadas frescas e puras do Pinhal da Guia, entre o gorgeio das aves e o ronronar do mar em frente; mas sobretudo, com a ingenuidade e o pícaro dos seus contos tradicionais; a lembrança comovida do seu Natal, o convívio estreito dos pequenos círculos da amizade.

Obra de sensibilidade e graça, onde Adé assume as suas funções de aedo popular para exaltação desta ou daquela personalidade, deste ou daquele acontecimento motivador de poesia, tendo o condão de tomar familiar qualquer grande evento social, com pompa e circunstância, tão mais de acordo com a alma macaense que o poeta bem conhece e bem representa.

O amor de Adé a Macau tem rasgos de sublime, arde-lhe no peito e na inspiração com o lirismo dos sorrisos e, ultimamente, das lágrimas, agora que o poeta sabe que a vai perder para sempre; que ela "ta perto falá adios/Pa tudo seu filo-filo,/Pa Portugal,/ Pa gente qui divora querê pa êle".

Primeiro e último admirável cultor literário do patuá, em que descobre o seu ímpeto mais originalmente criativo, Santos Ferreira trouxe-nos, hoje, um livro mais de versos: Dóci Papiaçám di Macau, onde o poeta prossegue fiel aos seus temas principais e igual na qualidade versifi-catória.

Aquele dialecto que sabemos morto, talvez irremediavelmente morto para a comunicação entre a população macaense, surge-nos, assim, vivo, pelo milagre da poesia, para encantamento do nosso espírito e enriquecimento da nossa cultura.

Ferreira, José dos Santos; Dóci Papiáçam de Macau; Instituto Cultural de Macau,1991,207 págs.

Teve Santos Ferreira, uma vez mais, o cuidado de traduzir os versos compostos em patuá para versos em português, numa comunhão rara de inspiração, pois perfeitamente domina, em arte, os dois idiomas. Todavia, eu prefiro-lhe o sortilégio e a meiguice daqueles nascidos, no imo da sua alma, no "dóci papiaçám di Macau", quiçá mais espontâneos, mais autênticos.

Aproxima-se a data em que Macau vai assistir ao arrear da bandeira portuguesa do alto das portas do Cerco, substituída pela da China poderosa e imensa. E, pouco a pouco, verá desaparecer de si qualquer memória dos 400 anos da nossa presença naquelas paragens que tornámos cristã e abrimos à cultura ocidental. Pedra a pedra, tombarão os muros das fortalezas que vigiavam a ferocidade do pirata e defendiam a paz das gentes e o alor da fé.

O monumento que José dos Santos Ferreira ergueu, livro após livro, ao Doci Papiaçam di Macau, com sabedoria e beleza, esse, há-de perdurar para além do trágico naufrágico da derradeira nau do Império. Voz sonora, fruto exótico e tropical nascido do hierático cipreste latino, o patuá do poeta macaense dará sempre novas, no deleite da leitura, daquela Terra em que a tradição viu Camões conceber Os Lusíadas e em que o respeito e a veneração ouviram cantar Camilo Pessanha a magia de uma alma na magia da cidade. Daquela Terra que a "bóca dóci" de José dos Santos Ferreira torna mais doce na nossa saudade.

(Intervenção de António Manuel Couto Viana no lançamento do livro "Dóci Papiáçam di Macau" de José dos Santos Ferreira, em Lisboa, em 27/06/91)

Depois da onda da história estrutural, da "história sem nomes" que caracterizou os anos sessenta, a atenção da mais moderna historiografia volta-se, agora e de novo, para o "memo-rialismo", reserva/arquivo de momentos do quotidiano, seleccionados pelo gosto intimista e pessoal de quem fala ou de quem escreve.

Acredita-se hoje que todo o relato histórico, mesmo o mais objectivo e científico, é irremediavelmente produto de uma "pré-compreensão" do historiador, ultrapassando-se, assim, o anterior preconceito contra a história subjectiva do "memorialismo".

Vem esta pequena introdução a propósito do livro de Graciete Batalha que, em boa hora, o Instituto Cultural de Macau acaba de publicar.

"Bom-dia, S'tora!" é um expressivo registo das memórias mais recentes de Macau. Por ele perpassa, clandestinamente, a vida da Cidade das últimas quatro décadas, com os episódios que determinaram e ritmaram as transformações havidas, desde o medir de forças entre o Território e a nóvel República Popular da China, a partir de 1949, passando pelos "infaustos acontecimentos" de 1966, até à vivência das virtualidades e excessos da revolução do 25 de Abril.

Mas o "leit-motiv" deste livro, o álibi para a sua estrutura formal é o dia-a dia de uma Professora em Macau - o seu primeiro emprego na Escola Primária e a ternura indisfarçável que sentia por aqueles a quem tinha por dever ensinar, a mágoa incontida pela exigência burocrática de abandono deste magistério por "excesso de habilitações", o regresso ao ensino, depois de alguns anos de pausa, no velho Liceu Infante D. Henrique, a alegria breve de um ano escolar bem acabado, a saudade amarga dos alunos que partiam, enfim, um leque de experiências e sentimentos que só uma grande Professora sabe sentir.

Motivo de atenção para pais, dirigentes, técnicos de educação e educadores em geral são as pertinentes e bem pensadas reflexões sobre métodos de ensino, a ilogicidade da aplicação em Macau de programas forjados em Portugal (outro contexto, outra realidade), a inadequação da didáctica do português utilizada - "estas crianças são ensinadas como se falassem português desde o berço. Os métodos que usamos deviam ser outros, mas ninguém nos prepara para esses outros. Isto ainda não entrou na cabeça de quem manda", escrevia ela em 1970 -,ou a interrogação constante sobre a justeza dos castigos: "Se não pude evitar a indisciplina em vez de castigá-la, errei algures", confessa.

Batalha, Graciete Nogueira; Bom dia S'tora!; Instituto Cultural de Macau,1991,425págs.

E todas estas meditações são refrescadas com a descrição do pulsar da Cidade, uma só, se vista de fora, mas tão apartada, portas a dentro, por língua, cultura e níveis de vida:

"É um lugar comum afirmar que em Macau se reúnem dois mundos. O mais extraordinário, porém, não é que esses dois mundos, pois que aqui se reúnem há quatro séculos, se entre-misturem como as tintas duma paleta, dando à cidade o seu tom muito sui qeneris. O que afinal me parece causa de admiração é que, em certos aspectos, as duas civilizações que aqui convivem pareçam tão estremadas, tão distintas uma da outra, como se jamais tivessem vivido lado a lado.

Vamos por certas ruas, especialmente as que contornam a baía, e é como se numa cidade europeia, numa dessas deliciosas cidadezinhas medi-terrânicas, se tivesse recentemente instalado uma colónia de habitantes chineses. Cruzamo-nos com eles nas nossas avenidas, vêmo-los habitar nas nossas casas. As avenidas são largas, limpas, asfaltadas. As vivendas são graciosas, coloridas, muito europeias, em nada acusando a propriedade chinesa, a não ser nos pesados gradea-mentos de ferro, de que os portugueses em geral não necessitam. Mas vamos para a parte mais pobre da cidade, para os barros onde a vida e puramente chinesa, e então parece-nos que viajámos milhares de léguas, que penetámos numa distante e isolada vilória da China, onde o"vento do Ocidente" nunca chegou. Agora somos nós os intrusos, os deslocados. Tudo à nossa roda é chinês e só chinês, excepto talvez a velha calçada à portuguesa, onde sossegadas galinhas depenicam".

Chegam-nos, também, os ecos (que perduraram na memória da Autora) dos contadores de histórias, equivalente das actuais telenovelas brasileiras, ou dos passeios na marginal, tendo como passo de fundo,"na paz rosada" do rio-mar, as grandes velas de esteira dos majestosos veleiros de há quarenta anos!

E pelo meio, decorando a narrativa, a hora inteira da escritora, acontecida nos fins de tarde, ao pôr do-sol, quando "o céu ainda conserva o rubor da sua passagem", ou "no silêncio das madrugadas", a ouvir "o doce ciciar do cordame no içar das velas para a faina do dia".

Hora, pois, de recordar, olhando "a montanha da Lapa do outro lado do rio" ou a cerca do fosso-mar, o "ar lavado e azul" da sua terra, os campos verdes do Liz e do Mondego, em pacífica harmonia, testemunhando o sentir mais íntimo de uma portuguesa em terras do Oriente.

Celina Veiga de Oliveira

Ramos, João de Deus; HISTÓRIA DAS RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS ENTRE POR-TUGAL E A CHINA I, O Padre António de Magalhães, S. J., e a embaixada de Kangxi a D. João V (1721-1725); Instituto Cultural de Macau,1991,205 págs.

Como refere o prefácio deste livro, citando aliás Charles Boxer, a sinologia portuguesa é uma área praticamente inexistente, facto duplamente incompreensível. Na verdade, por um lado, os primeiros orientalistas eram lusitanos dos séculos XVI e XVII e, por outro, através de Macau, Portugal foi o país europeu que mais duradouras e melhores relações manteve com o Império do Meio. O absurdo da inexistência de uma sinologia portuguesa é um fenómeno que caberá a futuros estudiosos das ciências humanas destrinçar.

De facto, como recentemente o têm demonstrado os tardios inflectores desta lacuna, como Eduardo Brazão, o Padre Benjamim Videira Pires e o próprio autor desta obra, os portugueses foram pioneiros nos contactos e no estabelecimento de relações entre a China e a Europa. Surge aqui, neste primeiro volume da "História das Relações Diplomáticas entre Portugal e China", a descrição da embaixada do imperador Kangxi a D. João V, liderada pelo Padre António de Magalhães, S. J., um exemplo claro da implantação dos portugueses, nomeadamente dos padres jesuítas junto da corte do "Filho do Céu".

É claro que este livro não se limita a uma descrição pura e simples da referida embaixada. Bem ao contrário, contém uma larga parte introdutória que contextualiza o leitor, na medida em que proporciona, nos seus dois primeiros capítulos, uma visão histórica da China dos Ming, a transição para a dinastia Ching, e das três eras do relacionamento cristão com a civilização chinesa: os Nestorianos, o século Franciscano e a era Jesuíta.

Uma terceira parte refere-se exclusivamente à embaixada de António Magalhães à corte de D. João V, sem deixar de traçar um curioso apontamento ego-histórico sobre este homem a quem o destino reservou uma vida singular.

De realçar ainda a quantidade de fontes consultadas pelo autor, o que aparece reflectido na riqueza das notas que acompanham cada capítulo deste livro. Cada uma delas, praticamente, abre outros caminhos à investigação, até porque, de facto, pisamos um terreno relativamente pouco explorado. Aguarda-se, expectativamente, os próximos volumes desta história cuja presença nas nossas bibliotecas em muito completa áreas perfeitamente lacunares da historiografia portuguesa.

Jorge, Cecília e Coelho, Beltrão; ÁLBUM MACAU, Sítios, Gentes e Vivências; Livros do Oriente,1991,174 págs. Edição trilingue (português, inglês, chinês).

A frágil articulação entre o passado e o futuro, o sonho e a realidade, a memória e o esquecimento, depende muitas vezes de acções singulares, entendendo-se aqui por singularidade não o acto de um indivíduo, mas a emergência de um facto, ou se quisermos fenómeno, cujas características o distinguem quer por escapar à efeme-ridade, quer por obrigatoriamente se impôr ao observador. Pouco importa se esta obrigatoriedade deriva de interesses particulares (históricos, afectivos, etc.) ou, pura simplesmente, de uma imediata aderência estética.

É nesta medida que o presente trabalho, da autoria de Cecília Jorge e Rogério Beltrão Coelho, na esteira do anterior, constitui (ou se institui) de facto, um caso singular. Para além do evidente valor histórico-documental, o Álbum Macau adquire uma importância suplementar na medida em que nos transporta através de imagens a uma cidade cujo onirismo hoje só descobrimos ocasionalmente quando perdemos os passos em trajec-tos ignotos pela Ci-dade do Nome de Deus. Ou quando, nalgum livro do passado, vislumbramos em certas linhas a magia que este álbum nos restitui através da força ímpar da imagem.

É que, efectivamente, de restituição aqui se trata. Um acto que remete para os motivos profundos da presença dos portugueses na longínqua China, para o amor indisfarçável aos interstícios da História, nos quais se vivem o destino dos homens e das coisas. Cruel tem sido para com esta esta cidade o fado que os homens, na sua sede de presentismo, permanentemente lhe reservaram.

Neste álbum de fotografias persiste um significado que em muito ultrapassa o mero sentido das imagens. É um sentido, às vezes estranho, que se desprende de cada retalho de Macau assim restituído ao presente e que assim se assegura no futuro. Não são imagens mortas, apesar da crueldade dos asteriscos (sinais de desaparecimento). Aqui conhecem um novo espaço, um lugar de ressurreição.

C. M. J.

Jackson, Kenneth David; SING WITHOUT SHAME, Oral Tra-dition in Indo-portuguese Creole Verse; Instituto Cultural de Macau and John Benjamins Company, Amesterdam/Philadelphia,1990.

Eis-nos perante uma edição extremamente importante no contexto dos estudos e recolha etnográfica da língua portuguesa no mundo. Sing without shame reporta-se aos crioulos portugueses das paragens da Índia onde como se sabe os portugueses permaneceram e deixaram raízes.

É destas raízes que este livro nos fala pela pena de um investigador reconhecidamente especializado nesta área. Ainda que não seja português, ainda que o livro nos surja escrito em inglês. Trata-se, aliás, de uma co-edi-ção do Instituto Cultural de Macau com a John Benjamins Company, uma editora holandesa especializada nesta temática, uma primeira incursão do Gabinete de Edições do ICM na sempre difícil e rara área da colaboração com outras editoras.

Por outro lado é a primeira vez que Kenneth Jackson, um bolseiro da fundação Calouste Gulbenkian e um dos grandes especialistas dos crioulos portugueses do Oriente e representado nos escaparates dos Estados Unidos e da Holanda, é editado por uma editora portuguesa.

Indo além de uma simples recolha de canções em crioulo indo-português, Jackson enfoca teoricamente o seu objecto, construíndo uma semiótica da sua cultura de origem, ou seja, dissecando algumas das suas estruturas. É que os textos abordados provêm da antiga tradição portuguesa, miscigenada; no entanto, são recriados oralmente, implicando, este processo, uma resultante balisada não somente pelo texto mas, sobretudo, pelo contexto da sua recriacão

desde a p. 188
até a p.