Linguística

PRAIA GRANDE
A CASA REVISITADA

Luís Sá Cunha

"ONDE era a casa de Camilo Pessanha?" - quantas vezes ouvimos a pergunta, interessada ou curiosa inquirição de visitantes ou recém-chegados ao Território, nos últimos anos.

A resposta, essa, quase sempre a recebemos dúbia, vaga ou imprecisa: indica-se o lugar onde se ergue hoje o Edifício "Sitói", cujo rés-do-chão tem dois estabelecimentos comerciais, porta de acesso aos dezanove andares e, à direita, a definir a esquina com a calçada de S. João, a sucursal do "Hong Kong Bank". Aproximadamente a 3/5 da fachada, (de oeste para leste) exibe hoje esse prédio urbano o único número de polícia de 73-75-G, na porta da padaria "Maxim's". Antes, e contrariando a progressão da numeração, atribuem-se os números 75-79 à porta principal daquele edifício.

Ora, todas as referências que nos chegaram garantem que Camilo Pessanha vivia no número 75 da Rua da Praia Grande.

A imprecisão tem razões na história da topologia de implantação predial daquele quarteirão, entre a Avenida Almeida Ribeiro e a calçada de São João, concretamente na confusão gerada, sobretudo a partir de 1937, entre os prédios que tinham os números 73 e 75.

Isto explica talvez que, até hoje, continue a identificar-se a última e mais famosa morada do poeta com o edifício que realmente era o número 73, contíguo ao da casa "F. Rodrigues", assim surgindo em publicações de responsabilidade com as respectivas fotografia e legenda.

Assim, a foto, que reproduzimos aqui para desfazer equívocos, corresponde ao prédio urbano anterior ao da casa de Camilo Pessanha, e terá sido facilmente obtida pouco antes da sua demolição, em princípios do decénio de 1970.

Que se tratava de errada atribuição, logo nos apercebemos à leitura dos escassos testemunhos sumários sobre a casa do poeta, aqui compaginados.

Descreve Sebastião da Costa uma "casinha escura e recolhida", detrás de uma "grade verde" e a que se tinha acesso por um "pátio largo que poderia ser de casa minhota, com escada para o primeiro andar e alpendre ao cimo."

No "Notícias de Macau" de 11 de Fevereiro de 1968, com conhecimento e autoridade de estudioso macaense, diz-nos José de Carvalho e Rego que Camilo Pessanha se trasladara da Calçada do Tronco Velho para a Rua da Praia Grande número 75, "casa que foi demolida e é hoje um jardim particular."

Registamos, portanto, três residências de Pessanha em Macau, sabendo-se que se aboletou na hospedaria do "amigo Hing-Ki", como dá notícia ao pai, logo à chegada a Macau em 1894, e a 40 patacas por mês. Sobre esta primeira morada de Camilo Pessanha em Macau, queremos precisar que se tratava do famoso "Macao Hotel" ou " Hotel Macau", depois "New Macao Hotel" (sob a gerência de Kuan Yoc Chan, em 1923), e que fechou as portas em 1927. O notável china-rico Lu Lim Ioc procedeu à remodelação das antigas instalações que, restauradas em luxuosa ambiência, haviam de dar lugar ao famoso "Hotel Riviera", inaugurado como tal em 15 de Janeiro de 1928. Fazia a esquina da Praia Grande com a Almeida Ribeiro, tendo sido demolido em 1971 para construção do banco "Nam-Tung" (Padre Manuel Teixeira, "Toponímia de Macau", Imprensa Nacional, 1979).

Transcrevemos agora Henrique de Senna Fernandes, citado pelo Padre Manuel Teixeira (ob. cit.): "Podemos afirmar que o casarão, ali pelas alturas de 1880, mais ano, menos ano, começou por ser Macao Hotel, sob a direcção de Pedro Hing Kee que o Engenheiro Adolfo Loureiro, no seu livro Oriente descreve: um china rechonchudo e prazenteiro que me recebe de modo expansivo, falando-me, em vozes mansas em português ininteligível (...)".

"Acerca do Hotel escreve ainda Adolfo Loureiro, em 17 de Setembro de 1883: Fiquei hoje definitivamente instalado nos meus aposentos que são completamente independentes e mobilados conforme as minhas indicações. Na varanda coberta lá estão as frescas e cómodas cadeiras, ou sofás de rota; no salão uma grande mesa para estantes, plantas e desenhos, secretária, pequena mesa para quando quiser almoçar ou jantar no meu quarto, etc, etc.; no quarto de cama, um leito enorme e de armação, mesas, toilettes, guarda-roupa, cabide; finalmente, uma pequena galeria envidraçada, dando para um páteo interior, e nela a sala de banho com uma daquelas banheiras chinesas de barro com esmaltes que fazem lembrar as antigas tinas de banho gregas ou romanas. (...) O jantar foi servido com profusão, com boa ordem e com uma cozinha, meio inglesa meio portuguesa que me não desagradou.

Casa nº 73 da Rua da Praia Grande, erradamente identificada com a casa de Camilo Pessanha. O poeta viveu no prédio seguinte, o nº 75, arrasado em 1937. (Foto do Arquivo do Gabinete do Património Cultural do ICM).
Praia Grande (lado Este) vendo-se o Palácio das Repartições e Hing King Hotel, primeiro alojamento de Pessanha em Macau.

"Na impressão geral de Emílio de San Bruno, não era um Hotel de luxo, mas havia em todos os seus serviços, o conforto sólido, sadio, disciplinado e limpo do Hotel inglês. E era china o proprietário! Mas tão bem educado na profissão hoteleira que a sua casa faria inveja a mais de um hotel de Lisboa, mantido por lusos e galegos."

Com entrada para a Almeida Ribeiro, o "Hotel Macau" ficava, portanto, na Praia Grande, alguns números antes da casa que acolheu mais tarde Camilo Pessanha, em moldura assim descrita: "A baía da Praia Grande fazia ali a mais graciosa das curvas e o mar rumorejante batia perto, junto às árvores, nos seus misteriosos solilóquios com os granitos da muralha. E o que mais encantava aos "exilados", era justamente o sortilégio de certas noites, em que as águas se polvilhavam da farinha branca do luar e a brisa do sul trazia indefinidos odores tropicais." (Padre Manuel Teixeira, ob. cit.)

Devem ter sido divertidos, esses primórdios da vida macaense de Pessanha, talvez possesso dessa euforia que toma pelo imo os recém-chegados à terra: "(...) fui aos dois clubes, comprei charutos, fui ao auto-china - o espectáculo que dura oito dias e oito noites - e até dancei sozinho ao som daquela valsa de todos os domingos de bombo (...) martelada pelo Poiares(...) em um velho cravo de algum convento, que o mandarim da hospedaria - o amigo Hing-Ki - tem na sala de mesa para recreio gente cristão."

Retomando o fio expositivo: já antes, porém, Guilherme de Castilho (em crónica datada de Junho de 1953) confessava a sua desolação: "Até máquina fotográfica trouxe, para fotografar a casa em que vivera (o poeta). Deitada abaixo, arrasada; nem sombra dela!"

De facto, a casa onde vivera Camilo Pessanha tinha sido demolida dezasseis anos antes.

Temos, de certo, que Pessanha habitou o número 75 da Praia Grande, portanto em edifício de numeração policial sequente ao número 73, apesar de não termos encontrado nenhum documento probatório do aluguer em seu nome, nas surtidas de investigação que fizemos. Também não tivémos a felicidade de enxergar qualquer iconografia (planta ou desenho de alçados), o que é aceitável, não sendo usual nesses tempos a apresentação obrigatória desses documentos à Repartição das Obras Públicas, e que várias causas conhecidas confluiram ao desaparecimento de tantos acervos arquivísticos de Macau.

Não perdemos, porém, a esperança de vir a vislumbrar ou a reconstituir a casa do poeta, em algum documento topográfico ou arquitectónico, ou em velha fotografia daquele quarteirão da Praia Grande.

A PROXIMEMO-NOS da casa de Camilo Pessanha pelo número 73, prédio com memória descritiva no Registo de Propriedade, e inscrito nos livros da Conservatória do Registo Predial de Macau, em 1894, com o número 4272: "Prédio urbano número setenta e três na Rua da Praia Grande freguesia da Sé de dois andares e loja, tem no primeiro andar um terraço e no segundo uma varanda; na loja tem seis janellas com grades de ferro, confronta ao norte com a horta das casas números dezoito e vinte do Largo da Sé ao sul com a Rua da Praia Grande a leste com o prédio número setenta e cinco e a oeste com o prédio número setenta e um na mesma rua. Tem o valor de doze mil e seiscentas patacas.

"Fiz o extracto da presente descripção em vista de um formal de partilhas passado em vinte e sete d' Agosto de mil oitocentos e noventa e quatro, passado pelo escrivão Manuel Maria Borralho extraído dos autos d' inventário a que se procedeu por fallecimento do Conde de Senna Fernandes apresentado sob o número 1 do diário de vinte e dois de Setembro de mil oitocentos noventa e quatro"(Ass. O Ajudte Privativo, Francisco Må de Salles).

Pormenor do quarteirão da R. da Praia Grande, entre a Almeida Ribeiro e a Calçada de S. João, vendo-se perfeitamente delineado o jardim, sobre o terreno onde se erguera a casa de Camilo Pessanha. (Plano da 1å fotografia aérea da área urbana de Macau, feita em 1940)

Nos livros de registos da Contribuição Predial dos Serviços das Finanças, consta sobre ele que é um "Prédio urbano de dois andares com pátio, poço e terraço e 227 m2 90 de terrapleno entre a sacada poligonal da muralha da Praia Grande e o gradeamento fronteiro aos números 73 e 75 da Rua da Praia Grande. Confronta ao Norte com o número 18 da Rua da Sé; Sul com a Praia Grande; Leste com o número 75 da mesma rua e oeste com o número 71."

Não parece haver dúvidas em reconhecer de imediato nestas descrições a fachada vista na fotografia.

Foram sucessivamente seus proprietários Ana Tereza Ferreira, Maria Amélia Menêses, Lam Ü e sua mulher Leong Chan Fan ("aliás Leong Chan Kuan") em compropriedade, e finalmente Leong Chan Kuan.

Todo o rés-do-chão deste prédio foi arrendado, em Abril de 1925, à "sociedade denominada Au Paradis des Dames, Limitada, representada pelos gerentes Maria Celeste de Senna Fernandes Menezes Ribeiro, viúva, e Ana Tereza de Senna Fernandes Paes d'Assumpção, solteira, maiores, comerciantes, residentes em Macau (...)"; o aluguer foi-lhes concedido pela proprietária, D. Ana Tereza Ferreira, "pelo prazo de 10 anos a contar do 1º de Maio de 1925 (...)".

Sobre esta simpática sociedade, diz-nos o Dr. Henrique de Senna Fernandes que se dedicava, como o nome sugere, à moda feminina, tendo numa senhora francesa, Madame LeBon, a principal animadora, e que as mesmas consócias abriram mais tarde uma pastelaria na Almeida Ribeiro, acima do Banco Nacional Ultramarino. Trata-se, segundo cremos, da mesma pastelaria "Delícias", que se transformou no "novo lugar do bate-papo macaense", assim contribuindo para o declínio do "Riviera". Dois anos depois, em 1927, o seu arrendamento foi prorrogado por mais 12 anos, ou seja, até 1947.

Sabemos assim que, durante quase um ano ainda, deparou Camilo Pessanha, logo à direita do seu portão, com este sofisticado apontamento parisiense.

A referência do terrapleno de 227 m2 entre o gradeamento fronteiro aos números 73 e 75 e o muro da Baía, confirma o relato de Sebastião da Costa quando situa em frente da casa do poeta um largo com um poço frequentado pela população chinesa.

Planta geral e alçado lateral do nº 73, do processo de requerimento de alterações à Repartição Técnica das Obras Públicas (1938). Em linhas reforçadas, a área onde se erguia a casa de Pessanha, demolida no ano anterior. Ainda assinalada com o nº 75, vê--se a porta claramente situada à esquerda na fachada. (Plantas do Arquivo das Obras Públicas).

Tem ainda interesse dizer-se alguma coisa sobre a fachada lateral deste prédio, que se conhece num processo de licença de introdução de alterações, concedida pela Repartição Técnica das Obras Públicas, em 1938, a requerimento da proprietária,que assina Cissy Li. Esta Cissy Li não deve ser outra senão a senhora Leong Chan Kuan, única proprietária que consta dos registos da Conservatória Predial e da Contribuição Predial dos Serviços de Finanças, e que um ano antes tinha adquirido "metade" do número 73 a seu marido. Podemos presumir que a "metade" se referia ao andar superior, onde tinha instalada uma escola chinesa, e que as obras pretendidas (aumento de janelas e alpendre sobre uma porta lateral) se destinavam a melhorar o ambiente interíor das salas e o acesso exterior ao terreno, transformado em recreio, depois da demolição do número 75 no ano anterior.

Sabe-se por uma Comunicação da Polícia de Segurança Pública de 15 de Outubro de 1938 (a participar o desabamento de um muro comum aos números 73 e 75) que ali "se acha instalada uma escola chinesa."

Verifica-se também que, pouco depois, parte daquele terreno foi transformado em jardim, que se vê perfeitamente delineado na primeira fotografia aérea da área urbana de Macau, feita em 1940, o que coincide com a notícia de José de Carvalho e Rego.

Designação do nº 75, nos Registos de Contribuição Predial (Arquivos dos Serviços de Finanças, anos 30)e no Registo de Propriedade (Arquivo do Conservatório do Registo Predial, 1894).

T EM O número 75 da Praia Grande, sempre referido com o número de registo 4273, a seguinte descrição predial nos tombos da Conservatória: "Prédio urbano numero setenta e cinco na Rua da Praia Grande freguesia da Sé é de um andar e contem quatro janellas para a rua da Praia Grande e oito para a calçada de S. João; na loja tem tres janellas com grades de ferro para aquella rua e uma porta, e seis janellas para a Calçada de S. João, confronta pelo norte com o Pateo das Flores, pelo sul com a rua da Praia Grande, pelo leste com a calçada de S. João e pelo oeste com o predio número 73 na Rua da Praia Grande. Tem o valor de nove mil patacas.

"Fiz o extracto da presente descripção em vista de uma carta formal de partilhas passada em vinte e sete de Agosto de mil oitocentos noventa e quatro pelo escrivão Manoel Maria Borralho extraída dos autos d'inventário a que se procedeu por fallecimento do Conde de Senna Fernandes apresentada sob o número 1 do diário de vinte e dois de Setembro de 1894."

Sobre ele consta nas notas de designação do processo de Contribuição Predial que é "de um andar, com pátio, poço e terraço. Confronta ao norte com o Pátio das Flores para onde tem a serventia número 1; Sul com a Rua da Praia Grande; Leste com a Calçada de S. João e Oeste com o número 73 da Rua da Praia Grande."

Atribui-se-lhe neste documento a área de implantação de 813 m2 e referem-se-lhe os seguintes proprietários: Ana Tereza Ferreira, Casemira Senna Fernandes Basto, Lam Ü.

Em 22 de Setembro de 1894, o número 75, juntamente com dezenas de prédios, é inscrito em definitivo em nome da condessa de Senna Fernandes, menos de um mês depois da morte do marido.

É curioso que nos averbamentos da mesma folha do Registo Predial, com data de Janeiro de 1903 e redacção autógrafa de Camilo Pessanha (já nomeado Conservador do Registo Predial desde 1899 e em exercício desde 1900) se regista que "A requerimento de D. Ana Thereza Ferreira, antes Condessa de Senna Fernandes (D. Anna) se declara que a mesma deixou de usar este último título passando a usar aquelle nome, pelo seu casamento com Leoncio Alfredo Ferreira, em 20 de Dezembro de 1894. Faz-se este averbamento à inscripção ao lado, número 24, para produzir effeitos em relação aos seguintes prédios: números 9, 11, 13, 73 e 75 da Rua da Praia Grande (...)", etc..

Logo em 24 de Setembro de 1894, o número 75 (com outros prédios) é dado como hipoteca especial a favor da Fazenda Nacional por D. Ana, fiadora "dos arrematantes dos exclusivos do Vac-Seng, Opio, Fantan, Pacapio e venda de carne de porco."

Em 21 de Novembro, estão os números 73 e 75 da Praia Grande sob hipoteca constituída por D. Ana Tereza Ferreira a favor da Fazenda Nacional "para segurança da quantia de seis mil duzentas e sessenta e sete patacas, a fim de por todo o tempo da arrematação garantir como fiadora o contrato exclusivo da venda, importação e exportação do petroleo em Macau, Taipa e Coloane e suas dependencias adjudicado ao china Li-Kiam-chim por dois anos a contar de 1 de Julho de 1899 a trinta de Julho de 1901."

Averbamento, escrito por Camilo Pessanha, à inscrição dos prédios de D. Ana Tereza Ferreira, onde vem referido o nº 75.

Na mesma data, o número 75 é isoladamente concedido em hipoteca por sua proprietária "para segurança da quantia de mil oitocentas e quatro patacas a fim de por todo o tempo da arrematação garantir como fiadora o contrato d'adjudicação do exclusivo do rendimento do jogo do Fantan na Taipa adjudicado ao china Li-Kiam-chim por cinco anos a contar de 1 de Julho de 1899 a 20 de Junho de 1904."

A propósito deste Li-Kiam-chim, referimos um dos apontamentos do Padre Manuel Teixeira ("Toponímia de Macau") sobre a Praia Grande em 1910, que descreve a arquitectura das elegantes mansões dos Condes de Senna Fernandes, Carlos Pais d'Assunção, General António Joaquim Garcia, Dr. João Faques Floriano Álvares, Bernardino Gonzaga de Melo, Maria do Carmo Piter, família Eça, etc., e também dos prédios tipicamente chineses de muitos proprietários chineses ricos: Lam-Lim, Chan-Fong, Li-Kiam-chim, etc..

Camilo Pessanha morre em 1926, tendo portanto tido como senhoria a Condessa de Senna Fernandes.

Em 14 de Abril de 1930, feito o inventário orfanológico por óbito de Ana Tereza Ferreira, o número 75 é inscrito a favor de Casimira Senna Fernandes Basto.

Em 3 de Novembro de 1931, passa a propriedade de Lam Ü, "proprietário residente em Macau" que o comprou por 18.000 patacas a Casimira Senna Fernandes Basto e a seu marido José Maria de Castro Basto, "Proprietários, residentes em Hong Kong."

Requerimento dos proprietários ao Conservador do Registo Predial, de 20 de Junho de 1937, onde se declara que o nº 75 foi demolido, e planta do mesmo processo, da Secção de Agrimensura e Cadastro Predial da R. S. O. P.. Por ela se confirma que a casa era de facto "retirada", no "desalinhamento"dos prédios; que a transmissão à Fazenda Nacional do terreno de c.100 m2 se destinou a alargar a calçada de S. João; que a casa de Camilo Pessanha (com 8 janelas para a calçada) se aprofundava para além linha da R. Formosa; que o terrapleno fronteiro os números 73 e 75, entre o respectivo gradeamento e a muralha poligonal da Baía, já tinha sido reduzido a metade.

As obras de pavimentação da Praia Grande, desde a Rua do Campo até à calçada do Tanque dos Mainatos, decorreram de 1924 (1 de Setembro) a 1925. Pessanha ainda viu, portanto, a Avenida pavimentada.

Em Fevereiro de 1932, é inscrita a transmis-são de metade do prédio a favor de Leong-Chan Kuan, por compra a seu marido, Lam Ü, por sete mil patacas.

Um ano depois, parte da propriedade do prédio é transmitida à Fazenda Nacional, "por o haver adquirido pela troca feita com Lam Ü e sua mulher Leong-Chan-Kuan."

O prédio acabou por ser demolido em 7 de Julho de 1937:

"A requerimento de Lam Ü, e sua mulher Leong-Chan-Kuan (...) se declara que o prédio número 75 da Rua da Praia Grande (...) foi demolido ficando apenas hoje com um terreno com a área de 674 m2,00.

"Mais se declara que deste terreno foi distraído uma faixa com a área de 107 m2, 80, em favor do Estado para a troca dum outro terreno (...)ficando assim, actualmente o mesmo terreno apenas com a área de 566 m2, 20."

No dia 12 seguinte, é inscrita a transmissão de "metade" (1/2) dos prédios descritos sob os números 4272 (o número 73) e 4273 (o número 75) a favor de Leong-Chan-Kuan, "por os haver comprado a Lam Ü (...) pelo preço de $15.000,00."

S OBRETUDO a partir desta altura, começa a estabelecer-se uma certa indistinção entre os prédios números 73 e 75, anexando-se o primeiro ao segundo mas, sobretudo pelo facto da demolição deste último, a subsumir-se o número 75 no número 73; assim consta de vários documentos, logo em 1938; a comum propriedade, resultando recentemente no edifício único erguido sobre os terrenos de implantação dos dois prédios, contribuiu também para a confusão topológica da casa onde viveu Camilo Pessanha.

Humilhado com a oneração de tantas hipotecas, entre tantos prédios respeitados pela Condessa de Senna Fernandes, o número 75 pareceria ensombrado de mau fong-sói ou de obscura maldição.

De todos os daquele quarteirão, hóspedes de sucessivas gerações activas em repartições, escolas, comércios, apenas sobre ele recaiu o desvalimento dos proprietários: desmerecido por um nas hipotecas, logo vendido por outro, destruído pelo terceiro imediatamente à posse.

Inculca-nos isto simplesmente uma coisa: a sua antiguidade. Razão da sua "precoce" demolição, que é confirmativa, apesar das reservas que antepomos ao testemunho, da avaliação de Osório de Castro ao chamar-lhe "casarão dos Séculos XVII ou XVIII".

Seria, a nosso ver, um desses prédios de inspiração portuguesa, como os havia tantos em Macau, ao estilo "pombalino-macaense", sem a grandeza e a volumetria merecedoras da anteposição das ostentatórias falsas fachadas, que debruaram a baía de musicais arcarias.

D. Maria do Espírito Santo Manhão, neta do poeta e a cuja memória pedimos auxílio, confirma--nos que a casa não tinha grandes pórticos ou arcadas, que era de um andar, que o pátio não era muito vasto, mas com folga para nele o poeta deixar arrumado o seu riquexó. Recorda-se das janelas gradeadas da loja, do lance de escadório à direita (cerca de 12 degraus), que "entrava a descoberto pela casa dentro" e ia desembocar numa sala, cheia de antiguidades, onde o poeta vinha receber as visitas mais de cerimónia. À esquerda, passava-se por uma porta a uma escada interior que flectia ainda à esquerda, subindo até outra porta de acesso à sala, igualmente pejada de objectos, que antecedia o quarto de Camilo Pessanha.

Lembra-se vagamente de ter assistido ao funeral do avô, de uma das janelas viradas à Praia Grande.

Se neste momento nos tentasse a literatura, diríamos do destino fatal de dois entes, o poeta e a sua casa, como que unidos na mesma convocação letal. Chamaram-no as paredes daquela mastaba, ou ele lhes abreviou a vida, com a sua própria, na convocatória mágica "Ó morte vem depressa / Acorda, vem depressa / Acode-me depressa...?"

O certo é que essa casa, crosta onde se encerrou em vida, o seguiu na dissolução física, como um fruto se putrefaz desde o caroço.

Já não existe, para memória vindoura daquele que foi, depois de Camões, o maior artista que viveu em Macau.

Ao menos agora, que se assinale com lápide memorial o lugar onde se ergueu a casa do mestre da "Clepsidra".

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