Linguística

A CASA-PARA-A-MORTE

Carlos Morais José

Num dos seus textos mais polémicos, precisamente porque atribui à imagem poética um poder criador que os biografismos não reconhecem ou ocultam, Bachelard refere que a casa é "um ser privilegiado" se quisermos compreender a exterior sedimentação dos valores da intimidade.1 Na realidade, ela constitui tão somente um outro percurso, a um tempo físico e espiritual, na demanda de um reflexo mais próximo de um sujeito. Sujeito Pessanha, habitante "pune-tio-iane-mean" (morto-vivo) de Macau, na visão distanciada dos chineses. Ele, um habitante persistente de décadas neste Oriente, aqui devotado àmorte, local excelente para solitariamente tecer a sua "toilette de cadáver".2

Ilustração de Nuno Barreto (Acrílico sobre tela,46? á38cm)

A casa espelha os hábitos, o temperamento, mas existe sempre um arranjo superficial da ordem da máscara. É certo que reflecte a natureza íntima dos sujeitos; no entanto, contém inevitavelmente o artifício. Ao instituir-se como espaço de intimidade, deixa-se contaminar pelos valores sociais e culturais que, na maior parte dos casos, são até predominantes, devido à pobreza generalizada dos universos íntimos. É preciso ler com atenção, compreender bem onde começa a intimidade do sujeito e onde acabam os seus sonhos íntimos, contudo estruturados a partir do exterior. As casas obviamente ostentatórias acabam por perder, no limite, todas as características de intimidade que caracterizam, no outro extremo, a cabana do eremita: Baudelaire afirma que num palácio "il n'y a pas un coin pour l'intimité"; pelo contrário, a cabana do eremita representa "o absoluto do refúgio".3

A casa pode, depois, ser interpretada como corpo de imagens. Há quem não hesite mesmo em compará-la a um ser vivo, com os seus órgãos, os seus fluxos e a sua respiração própria.4 Inevitavelmente, é um corpo que age sobre a personalidade do seu habitante, potencia-lhe as tendências porque, num certo sentido, se encontra rodeado de espelhos: a casa, entendida como uma espécie de duplo do ego, reenvia--lhe as suas formas, os seus conteúdos, por certo securizantes porque filtrados pela imagem de si mesmo.

São bem extraordinários e diversos os sentimentos e emoções que podemos adquirir em relação a uma casa e aos elementos que a constituem. Num primeiro passo, estes são certamente benéficos e acompanham-nos durante a vida, sob a forma de meios necessários à nossa sobrevivência.5 Depois, podem tornar-se em objectos malditos, utensílios perigosos, quando a vivência nesse espaço surge plena de infelicidade e de más recordações.*

Admite-se, contudo, uma outra possibilidade que é também uma possível via de saída do segundo momento. Este terceiro cenário é o da diferença, do "exótico", por outras palavras, a extinção lenta e sistemática do passado, o culto de deuses bárbaros e estéticas estranhas. Na verdade, é o afastar de todos os objectos familiares, "sob a mão",6 e recomeçar, recompor-se, com uma parafernália de objectos novos, aos quais a mão e o olhar se vão afeiçoando, à medida que o espírito apaga os seres cruéis que o assombram. Esquecendo as ostentações miserabilistas, é neste sentido que é interessante falar de máscara, quando a casa é disfarce, não para os outros mas para nós próprios, e é nessa casa ritual, assim revivida como espaço sagrado, que se exorcizam os desejos, até porque a casa é um lugar de mediação por excelência. Sendo um corpo de imagens, os elementos que a constituem estabelecem um outro universo entre o corpo do habitante e o exterior. É universo mediador e em duplo sentido: primeiro, porque é através das suas janelas, da sua disposição interna e das possibilidades que oferece à saída, que a criança encontra o mundo; segundo, porque serve de entrave, articula-se como barreira, à entrada do mundo no universo íntimo do sujeito.

A CASA MALDITA

"Para o meu espírito de contextura clássica aquele desalinho romântico era afligente."7

Lamentável facto é que para abordarmos a casa de Macau de Camilo Pessanha, nos vejamos obrigados a cingir às parcas descrições que algum amigo ou visitante teve a intuição de escrever. Hoje, ao curioso, apenas são dadas as pistas vagas de uma casa esboçada na escrita de uns amigos mais ou menos fiéis, na verdade contraditórios, cujos sentidos educados à l' air du temps reagiam sobremaneira à última morada do poeta. Da casa propriamente dita nada resta, pois foi sacrificada às imperiosas razões dos negócios. Quedamo-nos, portanto, pelas raras descrições dos que tiveram a oportunidade de a visitar e lançaram no papel as suas impressões.

Antes de mais, importa talvez pensar estes discursos. Da autoria de europeus, neles emergem, sub-reptícios, para além da objectividade, as reacções e os sentimentos de sujeitos nos quais são óbvios o desconforto e a surpresa perante a sua irredutível diferença. Neles, a casa de Pessanha acaba por ser julgada pejorativamente, "diz-se mal", é uma casa maldita.

Esta reacção aparece bem clara, quer na sua explicitação, quer nas entrelinhas da sua omissão. A frase supracitada, de um texto de Sebastião da Costa, é deveras significativa. É de certo modo óbvio que, na realidade, não é a um espírito de contextura clássica "que aquele desalinho romântico era afligente". Trata-se é de uma educação e de uma sensibilidade europeia confrontada com uma organização do espaço aparentemente caótica e onde certos valores predominantes dessa educação não estão, de facto, presentes.

Não é a desarrumação romântica que perturba, mas a sua estranheza e mesmo a sua inverosimilhança. O que desde logo atrai a atenção é a radical diferença da casa de Camilo Pessanha em relação aos restantes europeus da cidade cristã de Macau, sobretudo se pensarmos que o poeta exerceu as notáveis funções de juiz, advogado e professor. A casa de Pessanha é desconfortável para os europeus porque nela não reconhecem os sinais, os elementos, que os referenciam e securizam.

Curioso é o facto de nunca ser referida pura e simplesmente como "casa" mas como "casinha escura e recolhida",8 "vasto casarão antigo"9 e"cenário exótico e extravagante".10 Não é só exercício de estilo, mas a impossibilidade de empregar tal designação, cujo significado tem ressonâncias muito específicas nos ouvidos de um europeu. As contradições são patentes; contudo, atribuímo-las à simpatia de Alberto Osório de Castro que, não conseguindo evitar um sentimento de angústia perante a morada do poeta, se refugia numa efabulação que nada tem de real e chega mesmo a atingir tonalidades patéticas: "(...) procurei maquinalmente o Camilo no seu vasto casarão antigo, que quinze familiares seus, todos chins, e como família, animavam pachorrentamente e filosoficamente". A pachorra e a actividade filosófica, mais próprias talvez da casa de Sócrates, contrastam radicalmente com a impressão recolhida por A. de Albuquerque:"(...) um inferno de vozes de chinas confundindo-se com latidos de cães".11 Amigo e admirador de Pessanha, Alberto Osório de Castro procura transmitir uma visão romântica do poeta, inserido numa China calma e meditativa, o que não corresponde, em absoluto, às restantes descrições do ambiente da casa.

No testemunho de José de Carvalho e Rego, está bem patente a sua estranheza, quase acusatória, pela casa do poeta. De certo modo, o cerne do seu texto assenta no choque motivado pelo facto de Pessanha ter recebido o governador Rodrigo Rodrigues e o escritor Blasco Ibañez "sem que nada tivesse sido alterado naquele cenário extravagante (...)".

Em geral, se descontarmos a bondade e o ficcionismo de Osório de Castro, as restantes descrições surgem eivadas de estupefacção, de estranheza, de nojo- finalmente, de piedade. Era algo que custava a crer, da ordem do terrível e do absurdo, por isso dizemos inverosímil. E o que significa, realmente, esta inverosimilhança, este desconforto, aos olhos estarrecidos de um europeu? Sem dúvida que indicia um abissal distanciamento, um desapego quase total, da intimidade de Camilo Pessanha em relação aos valores de uma Europa que ele quer perdida - longe, na neblina do passado - da sua intimidade.

A PROLIFERAÇÃO E O VAZIO

Nos antípodas da decoração espartana, encontra-se a casa-bazar, um universo saturado, repleto, onde não há lugar para o vazio. É a proliferação desmesurada dos objectos. Nada de paredes vazias, nada de espaços vagos: por todo o lado se amontoam tapetes, quadros, vasos, pratos, estatuetas, rolos de caligrafia e pinturas. São geralmente objectos inúteis, de um ponto de vista prático, mas que, silenciosamente, acabam por tomar conta da casa enquanto conjunto, embora nenhum deles adquira o estatuto suficiente para ser colocado num lugar de relevo como acontece na casa espartana. "Nesta barafunda descobri, sob muitos outros sem valor, um precioso prato Quang-hi que me confessou havia anos ter perdido de vista".12 Eis a casa de Camilo Pessanha, bastamente descrita como um caótico museu de arte chinesa.

Trata-se, pois, de uma casa desordenada, desarrumada, habitada por objectos duplamente nómadas porque, para além de não terem lugares fixos, se encontram separados do seu contexto natural. Mais: é uma casa chinesa, organizada à chinesa, recheada de objectos chineses e habitada mesmo por chineses. Um aspecto de imediato sobressai: à excepção dos livros, Pessanha nada transporta consigo das suas anteriores moradas europeias. Não existem os esperados objectos "sob a mão ", que securizam o sujeito e moldam a sua intimidade à imagem do passado, os objectos comezinhos, bem identificáveis e que, de facto, compõem uma casa aos olhos de um europeu.Pelo contrário, deparamos com uma magnificamente desordenada proliferação de objectos estranhos, que acabam mesmo por escapar ao domínio do seu possuidor.

Não pretendemos aqui pensar as razões do Pessanha coleccionador, mas apenas aventar uma hipótese de outra ordem. Na verdade, tudo indica que existiu da sua parte uma vontade de distanciamento relativamente à Europa e aos costumes europeus. Contudo, esse distanciamento surge-nos mais profundo, tratando-se na realidade de um distanciamento de si mesmo na demanda do repouso, interditado pelo universo maléfico que obsessivamente transporta e no qual reconhece os fantasmas, as imagens dolorosas, da sua vida passada. Assim tudo faz sentido, pois a casa é sempre, seja ela qual for, um espaço para o repouso. Alguns habitam-na e só depois, pouco a pouco, à força de ser habitada, é que ela se transforma em lar. Esqueçamo-los. No caso de Pessanha, o lar é um a priori porque existe nele uma necessidade absoluta de repouso e evasão.

Os objectos de valor, a fancaria chinesa, os trajectos mentais que estas peças contêm e arrastam o poeta em devaneios espácio-temporais através dessa China imensa e fantástica, plena de exotismos e assombrada de antiga sabedoria, mais não representam que esse distanciamento forçado, esse exílio dos outros e de si mesmo a que Pessanha se obriga para escapar à "dor que sem razão deplora". Que dor profunda é esta que tão desmedido génio invoca? Em Pessanha, não foi o apaziguamento positivo, não foi a fuga à dor um tónus criativo, mas um mergulho contínuo nas águas fúnebres da morte.

A CASA DE MADALENA

Voltaremos a este tema. No entanto, urge agora regredir, voltar a Portugal, à juventude de Camilo, tentar discernir alguns aspectos, através dos testemunhos existentes, da sua relação com a casa originária. Sobre este assunto, refere António Quadros que Pessanha tinha "horror à casa dos pais", aliás sinceramente expresso em carta a Alberto Osório de Castro, na qual escreve: "o poço de miséria e dor que foi sempre a casa do meu pai" ou "o velho casarão infamado da quinta de Braga".

Todos o sabem: Camilo nunca perdoará ao pai o facto de não ter casado com sua mãe e assim tê-lo afrontado com a marca vergonhosa da bastardia. Na casa materna, de jovem e virginal camponesa, alguém entrou e "poluiu" e "rasgou os meus lençóis de linho", com "furor cruel e simiesco". Neste poema, decla-radamente referido à mãe, Pessanha termina com uma alusão nitidamente negativa à casa: "Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais. / Alma de minha mãe... Não andes mais à neve, / De noite a mendigar à porta dos casais." Esta última estrofe, das mais pungentes de toda a poesia portuguesa, marca claramente a diferença entre a sua e as outras casas, que pressentia familiares, verdadeiros lares. Saliente-se a expressão "(...) a mendigar à porta dos casais"! Que imagem terrível, a da alma de uma mulher enganada, que nunca teve direito a uma família normal, assim pela noite, na friagem da solidão e da tristeza, entrevendo pelas janelas das casas alheias o calor familiar que sempre lhe fora negado, pois "a cinza arrefeceu sobre o brasido"! Eis outra imagem reveladora da má relação de Camilo com a casa. Sabe-se que o fogo é o centro da habitação, o fogo crepitante, eternamente aceso, perpetuado por virginais sacerdotisas, fonte ancestral de calor, segurança, e dos mais belos devaneios: a dormência sonhadora diante do fogo, sob a protecção aconchegante da família. A identificação de Camilo com a mãe, com a sua desgraça, é demasiado profunda, projectando-se em níveis espirituais diversos, mas sempre eivada de uma atroz sensação de angústia, de pecado, uma ardente e sufocante culpabilidade: "Ó Madalena, ó cabelos de rastos / (...) Meu coração, velha moeda fútil, / E sem relevo, os caracteres gastos,/(...) Quem também fosse, ó cabelos de rastos, / Ensanguentado, enxovalhado, inútil, /(...) Morrer tranquilo, - o fastio da cama.../(...) Amargura, nudez de seios castos!... / Sangrar, poluir--se, ir de rastos na lama, / Ó Madalena, ó cabelos de rastos!". Uma vez mais o tema da mulher maculada e, inevitável, o deslizar subtil da pecadora bíblica para a imagem da mãe violentada: "nudez de seios castos / Sangrar". E depois a identificação consigo mesmo: "Ensanguentado, enxovalhado, inútil". Pessanha tem as suas razões para não ter boas memórias da casa de seu pai que, aliás, nem sequer se revelou um pólo de verdadeira estabilidade, pois a infância do poeta é descrita como passada de casa em casa, sem poiso fixo, durante períodos verdadeiramente prolongados. O pai, obrigado a deambular de terra em terra, levando consigo a criada-amante e os filhos, não conseguiu nunca proporcionar-lhes uma verdadeira estabilidade familiar. Ironicamente, Camilo viria mais tarde a repetir-lhe os trejeitos... ^^A CRISÁLIDA Referem os tratados de entomologia que uma das principais características da crisálida é a sua imobilidade. Parece que a ausência de movimento é um dos requisitos à viagem da metamorfose. A quietude, o apaziguamento, o sossego, essa aspiração superior, são os estados que dão acesso a lentas e raras modificações. Eis, portanto, a condição necessária à metamorfose no reino da Natureza, de certo modo retomada na tradição tauísta que apela à transformação do homem no Feto Imortal. A larva afasta-se do mundo, tece à sua volta um invólucro protector, de fios miraculosamente imperceptíveis, até se encontrar completamente recoberta, admiravelmente protegida, preparada, enfim, para a alquimia da metamorfose. Trata-se, no entanto, de um repouso aparente: no âmago da crisálida, fervilham as transmutações. Na realidade, uma agitação inusual, sob a capa serena da impassibilidade, faz da crisálida símbolo de uma sabedoria iniciática, desde tempos imemoriais. Num espírito sofredor como o de Pessanha encontramos, forçosamente, um desejo de metamorfose. É, no fundo, a própria dor, inexplicável, rebatida pelo próprio sobre sonhos incompletos de juventude, mas na realidade muitíssimo mais interna e constitucional, que inflige um desejo ardente de transformação; no limite, alfinetado por uma íntima recusa dos valores morais predominantes, leva o sujeito a entabular um constante diálogo com a morte. É Schopenhauer quem o afirma13: os sofrimentos do mundo levam o homem inteligente a procurar prazeres requintados como "os manjares delicados, o uso do tabaco e do ópio, licores espirituosos". Na casa de Macau, marca o poeta encontro diário com a"divina droga". Pouco importam as descrições miserabilistas ou os sentimentos piedosos, a falsa moralidade ou a medíocre ânsia de denegrir. Camilo refugia-se do mundo e isto não significa que o esqueça, pelo contrário, permanece bem atento, só que protegido da dor, o espírito envolto pelas espirais do doce fumo, distante dos males humanos e tendo perante si a imensidão calma da sua sabedoria.

"que no tribunal dos sonhos revelas os falsos testemunhos, para o triunfo do inocente imolado; que confundes o perjuro; que anulas a sentença dos juízes iníquos, (...). Só tu dás ao homem estes tesouros, e só tu possuis as chaves do paraíso, ó justo, subtil e poderoso ópio! 14

Esta página de De Quincey, longa mas excitan-temente bela, revela precisamente o poder embriagante do ópio, a sua capacidade de reordenar o mundo e limitar a dor nos seres humanos. Segue-se, é certo, uma rápida passagem aos tormentos do ópio, aos sonhos que, nas suas vertentes mais terríveis, terminam com uma sensação de enclausuramento, quase emparedamento, que depois encontramos nalguns contos de Edgar Poe.15

É esse o preço a pagar, não por um mergulho na inconsciência, mas por uma consciência outra, liberta das amarras da pequenez humana, uma consciência múltipla de tempos e lugares, espaço de luz e sombras protectoras. Assim encontra Camilo Pessanha "a panaceia para todos os males", perfeitamente adequada ao seu contexto de Macau. Têm uma certa razão os que ao vício atribuem a sua prolongada inactividade poética ou, pelo menos, a ausência da sua visibilidade porque certamente, tal como a crisálida, fervilhava no seu âmago. Deles se ri, agudo e alto, o poeta.

Citemos de novo De Quincey: "O opiómano nada perde da sua sensibilidade moral ou das suas aspirações: espera e deseja, mais ardentemente do que nunca, realizar o que crê possível e o que sente ser--lhe exigido pelo dever, mas a sua apreensão intelectual do possível ultrapassa infinitamente não apenas o seu poder de executar mas mesmo de iniciar qualquer trabalho".

O fumo do ópio, as sensações ora magníficas ora sinistras, é outro dos fios em que o poeta se vai lentamente enredando para atingir uma nova ordenação do mundo, aumentar o distanciamento, outro dos fios desse casulo protector, lugar de uma metamorfose na qual a sua profunda descrença nem sequer lhe permite acreditar. Resta-lhe, finalmente, o último passo, a viagem nesse navio que não chega a nenhum sítio, nunca...

A CASA-PARA-A-MORTE

Voltemos a Macau, à casa onde Camilo Pessanha vivia com a sua criada-amante chinesa, sem nunca ter reconhecido os filhos de tal ligação! Que casa é esta, estranhamente desligada de todas as referências ocidentais, casa de exílio, refúgio final de um homem profundamente amargurado e cujo único deleite é a arte chinesa e o vício do ópio?

Não é difícil reconhecê-la. Esta última morada, lugar do esquecimento, é para Camilo Pessanha o seu próprio sepulcro, espaço-para-a-morte, a casa do "morto-vivo" que se arrasta pelas ruas de Macau. Envolto em riquezas bárbaras, Camilo permanece em sua casa qual rei egípcio no seu túmulo eterno. A própria colecção não é mais que um inextricável labirinto, que serve de antecâmara ao seu quarto, o seu leito de morte.

Existe claramente na sua poesia a obsessiva imagem de um devir-pedra, de uma mineralização, solução final para os tormentos e a dor. "Recortes vivos das areias, / Tomai meu corpo e abride-lhe as veias... / O meu sangue entornai-o, / (...) Cristalizações salinas, / Mirrai na areia o plasma vivaz (...)". Ou ainda noutro poema: "Porque o melhor, enfim, / É não ouvir nem ver... / Passarem sobre mim e nada me doer /(...) E eu sob a terra firme / Compacta, recalcada, / Muito quietinho. A rir-me / De não me doer nada". A morte, o lento devir-mineral, pressentido como a única solução, a panaceia final para uma dor que nem o ópio nem a poesia conseguem extinguir.

É, no entanto, apesar das aparências, um sepulcro organizado: duas antecâmaras, de acesso sucessivamente limitado, e o quarto também recheado de chinoiseries. A primeira sala, para as visitas, era talvez um último resquício de sociabilidade ou, doutro ponto de vista, uma barreira minimamente sociável à presença dos estranhos e da má língua.

"Se não fora a larga cama europeia de reluzente metal e uns quantos livros mal arrumados num armário e sobre as cadeiras, poderíamos estar em casa de qualquer china da localidade"16. Chegamos aqui a um ponto deveras interessante, porque mais não faz do que confirmar o atrás exposto, com o acordo de todo o simbolismo. "À cabeceira um rosário antigo que o poeta me contou, com lágrimas nos olhos, ter pertencido à sua falecida mãe e nunca mais o ter deixado"17.

É bom de ver: atravessadas as duas câmaras, no interior mais interno do seu refúgio, onde jaz normalmente em posição recolhida e fetal, conserva o poeta um objecto materno do qual não consegue falar sem que lhe desçam lágrimas pela face. Todas as casas possuem outras casas dentro de si próprias, até chegarmos ao verdadeiro espaço da sua intimidade. Em Camilo, o retorno à mãe é o encontro com a morte, a possibilidade última de purificação. Nos braços da morte, nos braços da mãe, este ser (mater)ialista vai lentamente definhando, tornando-se mineral, numa mimésis absurda com a casa-concha que o envolve. Finalmente, o distanciamento é em relação à própria vida e à dor que esta cruelmente lhe acarreta. É ainda a imagem da mãe que leva consigo para esta última morada, que não consegue exorcizar e assim o assombrará como arquétipo da desgraça e da fatalidade.

Mãe, morte, regeneração. No exílio de Macau, no âmago de sua casa, naquele quarto que rescende a sonhos d'ópio, articula Camilo Pessanha este diálogo funesto, já no "oriente do oriente do Oriente", no oriente final, mortífero, lugar larvar, de renascimento, morte obsessiva, regeneradora, avatar único da purificação.

NOTAS

1 BACHELARD, Gaston; La poétique de l'espace; Presses Universitaires de France, 1957, 1984, pág. 23.

2 AMARO, Carlos; "Camilo Pessanha", in Ilustração, nº6 de 16 de Março de 1926. Republicado in PIRES, Daniel; Homenagem a Camilo Pessanha, ICM, 1990.

3 BACHELARD, Gaston; ibid., pág. 46.

4 "Os quartos da casa equivalem a orgãos (...) e espontaneamente a criança reconhece nas janelas os olhos da casa e pressente as entranhas na cave e nos corredores"; DURAND, Gilbert; As Estruturas Antropológicas do Imaginário; Presença, Lisboa, 1989; pág. 168.

5 Complementar a este artigo poderia surgir uma análise aprofundada de outras funções da casa, nomeadamente do seu lugar na diacronia e das persistentes modificações, que na sua globalidade, experimenta ao longo das épocas.

6 Cf. HEIDEGGER, Martin; El Ser y el Tiempo; F. C. E., Madrid, 1984.

7 COSTA, Sebastião;"Camilo Pessanha", in SearaNova, nº85, 29 de Abril de 1926. Citado in PIRES, Daniel, ibid., pág. 10.

8 COSTA, Sebastião, ibid., pág.9.

9 CASTRO, Alberto Osório de; "Camilo Pessanha em Macau"; Atlântico, 1942. Citado in PIRES, Daniel, ibid., pág.50.

10 REGO, José de Carv alho e; in Notícias de Macau, 11 de Fevereiro de 1968. Citado in PIRES, Daniel, ibid., pág.30.

11 ibid., pág. 26.

12 COSTA, Sebastião; ibid., pág.13.

13 QUADROS, António; "Introdução à vida e obra de Camilo Pessanha", in Clepsidra e poemas dispersos; Publicações Europa-América, pág. 38.

14 SCHOPENAUER, Arthur; Studies on Pessimism, Riverside Press, Edimburgo, 1937.

15 DE QUINCEY, Thomas; The confessions of an english opium eater, 1822.

16 Por exemplo, O Barril de Amontillado, O Poço e o Pêndulo ou O Gato Negro.

17 COSTA, Sebastião, ibid., pág. 10.

18 COSTA, Sebastião, ibid..

* Devemos aqui distinguir entre casa originária e casa secundária, isto é, o espaço onde a criança descobre o mundo e o povoa de sítios e objectos familiares e de mistérios, e um outro, secundário, que o homem constrói e habita, esse novo lar que pode ter ou não a mesma estrutura espacial, a ordem funcional, e a mesma carga afectiva, da casa original. Neste passo joga-se, em grande parte, o esbatimento de numerosas regras culturais. A casa de Macau de Camilo Pessanha pertence, obviamente, à segunda categoria.

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até a p.