Num dos seus textos mais polémicos, precisamente porque atribui à imagem poética um poder criador que os biografismos não reconhecem ou ocultam, Bachelard refere que a casa é "um ser privilegiado" se quisermos compreender a exterior sedimentação dos valores da intimidade.1 Na realidade, ela constitui tão somente um outro percurso, a um tempo físico e espiritual, na demanda de um reflexo mais próximo de um sujeito. Sujeito Pessanha, habitante "pune-tio-iane-mean" (morto-vivo) de Macau, na visão distanciada dos chineses. Ele, um habitante persistente de décadas neste Oriente, aqui devotado àmorte, local excelente para solitariamente tecer a sua "toilette de cadáver".2
A casa espelha os hábitos, o temperamento, mas existe sempre um arranjo superficial da ordem da máscara. É certo que reflecte a natureza íntima dos sujeitos; no entanto, contém inevitavelmente o artifício. Ao instituir-se como espaço de intimidade, deixa-se contaminar pelos valores sociais e culturais que, na maior parte dos casos, são até predominantes, devido à pobreza generalizada dos universos íntimos. É preciso ler com atenção, compreender bem onde começa a intimidade do sujeito e onde acabam os seus sonhos íntimos, contudo estruturados a partir do exterior. As casas obviamente ostentatórias acabam por perder, no limite, todas as características de intimidade que caracterizam, no outro extremo, a cabana do eremita: Baudelaire afirma que num palácio "il n'y a pas un coin pour l'intimité"; pelo contrário, a cabana do eremita representa "o absoluto do refúgio".3
A casa pode, depois, ser interpretada como corpo de imagens. Há quem não hesite mesmo em compará-la a um ser vivo, com os seus órgãos, os seus fluxos e a sua respiração própria.4 Inevitavelmente, é um corpo que age sobre a personalidade do seu habitante, potencia-lhe as tendências porque, num certo sentido, se encontra rodeado de espelhos: a casa, entendida como uma espécie de duplo do ego, reenvia--lhe as suas formas, os seus conteúdos, por certo securizantes porque filtrados pela imagem de si mesmo.
São bem extraordinários e diversos os sentimentos e emoções que podemos adquirir em relação a uma casa e aos elementos que a constituem. Num primeiro passo, estes são certamente benéficos e acompanham-nos durante a vida, sob a forma de meios necessários à nossa sobrevivência.5 Depois, podem tornar-se em objectos malditos, utensílios perigosos, quando a vivência nesse espaço surge plena de infelicidade e de más recordações.*
Admite-se, contudo, uma outra possibilidade que é também uma possível via de saída do segundo momento. Este terceiro cenário é o da diferença, do "exótico", por outras palavras, a extinção lenta e sistemática do passado, o culto de deuses bárbaros e estéticas estranhas. Na verdade, é o afastar de todos os objectos familiares, "sob a mão",6 e recomeçar, recompor-se, com uma parafernália de objectos novos, aos quais a mão e o olhar se vão afeiçoando, à medida que o espírito apaga os seres cruéis que o assombram. Esquecendo as ostentações miserabilistas, é neste sentido que é interessante falar de máscara, quando a casa é disfarce, não para os outros mas para nós próprios, e é nessa casa ritual, assim revivida como espaço sagrado, que se exorcizam os desejos, até porque a casa é um lugar de mediação por excelência. Sendo um corpo de imagens, os elementos que a constituem estabelecem um outro universo entre o corpo do habitante e o exterior. É universo mediador e em duplo sentido: primeiro, porque é através das suas janelas, da sua disposição interna e das possibilidades que oferece à saída, que a criança encontra o mundo; segundo, porque serve de entrave, articula-se como barreira, à entrada do mundo no universo íntimo do sujeito.
A CASA MALDITA
"Para o meu espírito de contextura clássica aquele desalinho romântico era afligente."7
Lamentável facto é que para abordarmos a casa de Macau de Camilo Pessanha, nos vejamos obrigados a cingir às parcas descrições que algum amigo ou visitante teve a intuição de escrever. Hoje, ao curioso, apenas são dadas as pistas vagas de uma casa esboçada na escrita de uns amigos mais ou menos fiéis, na verdade contraditórios, cujos sentidos educados à l' air du temps reagiam sobremaneira à última morada do poeta. Da casa propriamente dita nada resta, pois foi sacrificada às imperiosas razões dos negócios. Quedamo-nos, portanto, pelas raras descrições dos que tiveram a oportunidade de a visitar e lançaram no papel as suas impressões.
Antes de mais, importa talvez pensar estes discursos. Da autoria de europeus, neles emergem, sub-reptícios, para além da objectividade, as reacções e os sentimentos de sujeitos nos quais são óbvios o desconforto e a surpresa perante a sua irredutível diferença. Neles, a casa de Pessanha acaba por ser julgada pejorativamente, "diz-se mal", é uma casa maldita.
Esta reacção aparece bem clara, quer na sua explicitação, quer nas entrelinhas da sua omissão. A frase supracitada, de um texto de Sebastião da Costa, é deveras significativa. É de certo modo óbvio que, na realidade, não é a um espírito de contextura clássica "que aquele desalinho romântico era afligente". Trata-se é de uma educação e de uma sensibilidade europeia confrontada com uma organização do espaço aparentemente caótica e onde certos valores predominantes dessa educação não estão, de facto, presentes.
Não é a desarrumação romântica que perturba, mas a sua estranheza e mesmo a sua inverosimilhança. O que desde logo atrai a atenção é a radical diferença da casa de Camilo Pessanha em relação aos restantes europeus da cidade cristã de Macau, sobretudo se pensarmos que o poeta exerceu as notáveis funções de juiz, advogado e professor. A casa de Pessanha é desconfortável para os europeus porque nela não reconhecem os sinais, os elementos, que os referenciam e securizam.
Curioso é o facto de nunca ser referida pura e simplesmente como "casa" mas como "casinha escura e recolhida",8 "vasto casarão antigo"9 e"cenário exótico e extravagante".10 Não é só exercício de estilo, mas a impossibilidade de empregar tal designação, cujo significado tem ressonâncias muito específicas nos ouvidos de um europeu. As contradições são patentes; contudo, atribuímo-las à simpatia de Alberto Osório de Castro que, não conseguindo evitar um sentimento de angústia perante a morada do poeta, se refugia numa efabulação que nada tem de real e chega mesmo a atingir tonalidades patéticas: "(...) procurei maquinalmente o Camilo no seu vasto casarão antigo, que quinze familiares seus, todos chins, e como família, animavam pachorrentamente e filosoficamente". A pachorra e a actividade filosófica, mais próprias talvez da casa de Sócrates, contrastam radicalmente com a impressão recolhida por A. de Albuquerque:"(...) um inferno de vozes de chinas confundindo-se com latidos de cães".11 Amigo e admirador de Pessanha, Alberto Osório de Castro procura transmitir uma visão romântica do poeta, inserido numa China calma e meditativa, o que não corresponde, em absoluto, às restantes descrições do ambiente da casa.
No testemunho de José de Carvalho e Rego, está bem patente a sua estranheza, quase acusatória, pela casa do poeta. De certo modo, o cerne do seu texto assenta no choque motivado pelo facto de Pessanha ter recebido o governador Rodrigo Rodrigues e o escritor Blasco Ibañez "sem que nada tivesse sido alterado naquele cenário extravagante (...)".
Em geral, se descontarmos a bondade e o ficcionismo de Osório de Castro, as restantes descrições surgem eivadas de estupefacção, de estranheza, de nojo- finalmente, de piedade. Era algo que custava a crer, da ordem do terrível e do absurdo, por isso dizemos inverosímil. E o que significa, realmente, esta inverosimilhança, este desconforto, aos olhos estarrecidos de um europeu? Sem dúvida que indicia um abissal distanciamento, um desapego quase total, da intimidade de Camilo Pessanha em relação aos valores de uma Europa que ele quer perdida - longe, na neblina do passado - da sua intimidade.
A PROLIFERAÇÃO E O VAZIO
Nos antípodas da decoração espartana, encontra-se a casa-bazar, um universo saturado, repleto, onde não há lugar para o vazio. É a proliferação desmesurada dos objectos. Nada de paredes vazias, nada de espaços vagos: por todo o lado se amontoam tapetes, quadros, vasos, pratos, estatuetas, rolos de caligrafia e pinturas. São geralmente objectos inúteis, de um ponto de vista prático, mas que, silenciosamente, acabam por tomar conta da casa enquanto conjunto, embora nenhum deles adquira o estatuto suficiente para ser colocado num lugar de relevo como acontece na casa espartana. "Nesta barafunda descobri, sob muitos outros sem valor, um precioso prato Quang-hi que me confessou havia anos ter perdido de vista".12 Eis a casa de Camilo Pessanha, bastamente descrita como um caótico museu de arte chinesa.
Trata-se, pois, de uma casa desordenada, desarrumada, habitada por objectos duplamente nómadas porque, para além de não terem lugares fixos, se encontram separados do seu contexto natural. Mais: é uma casa chinesa, organizada à chinesa, recheada de objectos chineses e habitada mesmo por chineses. Um aspecto de imediato sobressai: à excepção dos livros, Pessanha nada transporta consigo das suas anteriores moradas europeias. Não existem os esperados objectos "sob a mão ", que securizam o sujeito e moldam a sua intimidade à imagem do passado, os objectos comezinhos, bem identificáveis e que, de facto, compõem uma casa aos olhos de um europeu.Pelo contrário, deparamos com uma magnificamente desordenada proliferação de objectos estranhos, que acabam mesmo por escapar ao domínio do seu possuidor.
Não pretendemos aqui pensar as razões do Pessanha coleccionador, mas apenas aventar uma hipótese de outra ordem. Na verdade, tudo indica que existiu da sua parte uma vontade de distanciamento relativamente à Europa e aos costumes europeus. Contudo, esse distanciamento surge-nos mais profundo, tratando-se na realidade de um distanciamento de si mesmo na demanda do repouso, interditado pelo universo maléfico que obsessivamente transporta e no qual reconhece os fantasmas, as imagens dolorosas, da sua vida passada. Assim tudo faz sentido, pois a casa é sempre, seja ela qual for, um espaço para o repouso. Alguns habitam-na e só depois, pouco a pouco, à força de ser habitada, é que ela se transforma em lar. Esqueçamo-los. No caso de Pessanha, o lar é um a priori porque existe nele uma necessidade absoluta de repouso e evasão.
Os objectos de valor, a fancaria chinesa, os trajectos mentais que estas peças contêm e arrastam o poeta em devaneios espácio-temporais através dessa China imensa e fantástica, plena de exotismos e assombrada de antiga sabedoria, mais não representam que esse distanciamento forçado, esse exílio dos outros e de si mesmo a que Pessanha se obriga para escapar à "dor que sem razão deplora". Que dor profunda é esta que tão desmedido génio invoca? Em Pessanha, não foi o apaziguamento positivo, não foi a fuga à dor um tónus criativo, mas um mergulho contínuo nas águas fúnebres da morte.
A CASA DE MADALENA
Voltaremos a este tema. No entanto, urge agora regredir, voltar a Portugal, à juventude de Camilo, tentar discernir alguns aspectos, através dos testemunhos existentes, da sua relação com a casa originária. Sobre este assunto, refere António Quadros que Pessanha tinha "horror à casa dos pais", aliás sinceramente expresso em carta a Alberto Osório de Castro, na qual escreve: "o poço de miséria e dor que foi sempre a casa do meu pai" ou "o velho casarão infamado da quinta de Braga".
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até a p.