Linguística

PESSANHA EM CAMISA EXCERTOS PARA UM RETRATO ÍNTIMO

Luís Sá Cunha

Ilustração de Nuno Barreto (Acrílico sobre tela,46? á38cm)
Ex-libris de C. Pessanha

"P" ESSANHA em camisa" - assim nos surgiu a epígrafe desta introdução ao universo íntimo de Camilo Pessanha. Intentando descortinar a puridade do homem nas suas fisionomias, recorte psicológico, assomos de carácter e circunstâncias do seu viver habitual logo nos surgiu, à porta entreaberta pelos testemunhos de privança, um Dr. Camilo de Almeida Pessanha semi-nu na escultura ossiculada de faquir, o "morto-vivo" amortalhado no lençol - como usava estar no imo da sua casa da Praia Grande.

Sempre o homem se encerra em véus, casulos ou invólucros -porque sempre vela um mistério e sempre está para nascer. O trajo e a casa são também assim envolturas do ser, podendo assumir real dimensão ontológica. Com eles se defende e estabelece as suas fronteiras no Mundo, lugar comum do teatro de todos. Desnudando-se, ao eu se reduz: em gradual despojamento de vestuários caminhará o homem para a reconquista dos estados anteriores do Ser. Assim se esconde o iniciado, na reconstituição do seu paraíso ou na recriação dos seus "paraísos artificiais".

Só ao próprio, portanto, é lícito o acto de desnudar-se. Invadir-lhe a solitude, devassar-lhe os segredos, é pulsão da crueldade em que a inveja se exercita para expôr o que se impõe, para degradar o excepcional ao terreiro do vulgar.

Com humor disse Swift que ninguém é génio aos olhos do seu criado de quarto. Há demasiados aspirantes a criados de quarto. Advogado de acusação, o Diabo é "voyeur".

Justificamo-nos: não é com diabólico propósito que trazemos à colação tantos recortes para um retrato íntimo de Pessanha. Agora nos desfiliamos dessa moda do bio-grafismo microscópico, que degenera no feiticismo do adereço pessoal quando não intenta "explicar" o mistério do criador acto artístico pelo reducionismo psicanalítico, e que é quase sempre exercício de igualização por rebaixamento.

Ao contrário, mas sem intuitos de pane-gíria, depurámos a selecção daqueles depoi-mentos evidentemente turbados de miopia invejosa (como o de quem se atreveu a dizer de Pessanha: "não é poeta na verdadeira asserção do termo ") - sabendo que a sua republicação era a directa refutação daquela tendência, tão imediata seria a verificação da injustiça e pequenez que ressumam.

Pretendemos, pura e simplesmente, tornar presente ao leitor de hoje um retrato de "corpo inteiro" de Camilo Pessanha, familiar conviva de cavaqueira em seu quarto de anacoreta sonâmbulo, e assim surpreender e "reconstituir" uma personalidade e uma personagem, dos mais patentes adereços às mais discretas intimidades.

Para tanto nos servimos de um bordão -a colecção de testemunhos reunida e publicada pelo Dr. Daniel Pires, donde retirámos grossa parte dos excertos, com acrescento apenas de notas de pormenor ("Homenagem a Camilo Pessanha", Daniel Pires, IPOR/ ICM, 1990) - e mais de alguns extractos confessionais das cartas do próprio Camilo Pessanha e de um original dactilografado do espólio de Luís Gonzaga Gomes. Socorreram-nos os pintores-desenhadores Nuno Barreto, Carlos Marreiros e Victor Hugo Mar-reiros, com as ilustrações alusivas e evocativas.

A partir daqui, a pistas deixadas cabem à investigação interessada na relação entre o facto biográfico e a ontogénese da obra poética, perfilhando a asserção aristotélica de que a Poesia é superior à História, isto é, como poiésis ou criação, supera as condições e os transes da vida contingente, dolorosa e corruptível.

A este propósito, permitimo-nos inserir aqui um excerto da introdução ao estudo da obra de Camilo Pessanha, feita por António Quadros em "Obras de Camilo Pessanha, Clepsidra e Poemas Dispersos" (Europa--América, 1988):

"O que o homem faz é o que o homem é, e o que o homem é não se atinge senão através do que ele faz. A poesia é essencialmente um fazer criativo - uma poiésis -, um fazer mágico de mais ser, o ser artístico, alquimia do ritmo, do canto, da palavra. E, por intermédio desta poiésis, é também a si próprio que o poeta se vai fazendo ou refazendo como outro do que no início era. Na sua poesia, ele, que é existência fluida, que é devir imparável e constante corrupção, quereria fixar-se em essência, como se cada poema fosse a detenção e a fixação de algo de substancial nele, o mais verdadeiro, o mais profundo, o mais imperecível, algo que na implacável caducidade e distracção das horas se perderia para sempre.

"Assim, um corpus poético é como que um duplo evolutivo do poeta: ele está ali e ali fica para sempre, não como existiu, mas como foi sendo. Um poema pode ser desabafo consciente ou confissão inconsciente, exorcismo ou aspiração, fuga ou combate, sinceridade ou fingimento, visão de um indizível a que apenas se pode aludir por metáforas e símbolos ou expressão de uma trágica cisão íntima. Mas um corpus poético, reunindo os poemas-momento do autor, juntando os instantes axiais em que a sua existência dispersa por assim dizer se essencializou no esforço e na liberdade da composição poética, constitui afinal uma imagem do autor, mais verdadeira do que a que os outros conheceram no quotidiano social e mais verídica mesmo do que a que ele próprio viu no espelho desfocado da sua introspecção: porque a poesia não é só um dizer, é também um entredizer, senão também um sobredizer, que mostra o insuficientemente dito ou revela para lá do dito."

A BRIMOS um segundo capítulo para "reconstituir" também a casa do Poeta, através dos escassos documentos literários e do seu confronto com a exegese da documentação urbano-arquitectónica que conseguimos angariar. Ficam assim aclaradas algumas dúvidas sobre a topologia e o risco arquitectural do número 75 da Praia Grande, última morada de Camilo Pessanha.

Mas queremos deixar aqui rasgada outra dimensão, a que se abre no entendimento da relação profunda entre a casa e o homem e o homem e a casa, considerada esta o mais próximo microcosmos do homem, universo mais cingido e primeiramente ordenado (ou desordenado) pelo seu espírito. Neste sentido fala Gaston Bachelard em "casas" e "quartos" que são "escritos" por (ou de) grandes poetas e escritores, e assim instrumentos de topoaná-lise do seu interior universo.

Lendo-se a casa de Camilo Pessanha, nela veríamos essencialmente uma busca e uma defesa da intimidade própria, o acantonamento de um espaço de evasão, uma fronteira de separação do mundo exterior, no seu apelo de realidade objectiva.

Entrando, nela vamos surpreendendo os bastiões de defesa próxima do refúgio último do seu quarto, nos labirintos de antigualhas em profusão caótica, como abatizes, despistes ou infantarias defensoras do seu reduto de lazer solipsista.

Habitualmente, só à matilha libérrima da cachorrada concedia o Poeta a devassa da sua clausura, e especialmente ao seu "Arminho". E a outro animalzito, o seu papagaio - ali, à janela, o irracional mensageiro de comunicação com o mundo exterior ( não seria ele mais o eco das vozes e das sombras de dentro?), um mundo exterior de cenário, como que pintado nos caixilhos do janelão do seu quarto.

E, a um canto, o central reduto do seu refúgio, o sancta sanctorum das suas alucinadas vigílias e longas abulias: o seu leito gradeado de tigre anestesiado, onde se estira "enconchado", joelhos repuxados em acomodação fetal, o tronco só esguio a desembainhar-se da cornucópia de lençóis.

Ali a sua casa, dentro da casa de sua casa, molusco na segura concavidade valvar, em retrocesso aos tépidos limbos maternais, à dissolução nos imensíssimos mares do inconsciente ("Adormecei. Não suspireis. Não respireis.").

Por tudo, nos parece ver no quarto de Pessanha a cela ou a antecâmara de morte, o silêncio desse grito de "Ó morte vem depressa / Acorda, vem depressa / Acode-me depressa", do "Deslizar sem ruído / no chão sumir-se como faz um verme."

Pensamos num Camilo Pessanha, poeta e alma de um decadentismo levado ao extremo, perdido "num país perdido", e assim possesso de exílio e fuga. Um Camilo que no navio de regresso a Macau confessa, em post--scriptum a Trindade Coelho, o desejo de "não chegar ao (meu) sítio nunca... Ir assim, a bordo de um navio, sem destino." No poeta dessa desesperada prece comovente a liquefazer-se "como água morrente, ou do amante de Thanatos (com ecos em Pessoa e na "Caranguejola" de Mário de Sá-Carneiro): "Porque o melhor enfim / É não ouvir nem ver / Passarem sobre mim / E nada me doer. /E eu sob a terra firme / Compacta, recalcada / Muito quietinho. A rir-me / De não me doer nada."

Ou consideremos, por outro lado, o Pessanha discípulo de um Verlaine que propugna a "canção cinzenta" e o "indeciso da música", um Pessanha simbolista a confundir percepções dos sentidos ("Chorai arcadas do violoncelo"), o mundo real com o imaginário, buscando as sensações supra-ra-cionais na deflagração onírica, por insatisfação ou desilusão do mundo real.

Solidão para a evasão, na ponte alada da letargia.

Em Camilo confluem, pois, o carácter crepuscular do lusíada, com a pendência crespuscular do simbolista, com a sensibilidade agónica do decadentista finissecular.

Atentou Heraclito em "que os despertos (acordados) têm um mundo único e comum e que cada um dos adormecidos se vira para o próprio."

Sem mundo, perdido "num país perdido", nesse exílio vamos surpreender Camilo na compensação apática ou opiómana, o solipsista imaginativo na ilusória improvisação de um mundo próprio seu. Ei-lo no processo involutivo aos estados da dormência e do sonho, característicos do estado infantil, que se furta ou é incapaz de objectivar a realidade do mundo.

Camilo e a sua casa: a que ergue dentro da outra casa, para se refugiar noutra, na busca incessante da última. Casa-forte, não é a dos muros espessos e rígidos: é a que mais se cinge, quase confunde, com o próprio ser. Depois da casa-mãe ou da mãe-casa que nos esconde, envolve, absorve e acompanha sempre, a concha do molusco é na ordem natural a que mais próxima está desse arquétipo topológico - encerra a moleza vulnerável do corpo vivo e é--lhe permanente habitação itinerante.

Muita pena é que a casa de Camilo Pessanha tenha sido completamente arrasada poucos anos depois do seu passamento. Assim se destruiu um dos lugares na urbe mais sagrados pela dinâmica de uma ligação inten-síssima.

Com ela (nem se suspeitará a que ponto), terá o Poeta mantido o seu mais íntimo concubinato, a relação da radical cumplicidade com a protectora e geradora do seu mundo próprio, Pietá que sempre recolheu em "lençóis de linho" o seu arcabouço de "morto-vivo".

Camilo e a sua cama. Berço da sua evasão, das viagens alucinadas, da esperada dissolução. Aí, ao menos, como nos inculcam ver no seu poema "Branco e Vermelho", terá ele intuído o antigo aviso de que morrer é nascer ao contrário.

POSTER RC

Ilustração de Carlos Marreiros, "O Quarto de Camilo Pessanha" (tinta da china sobre papel cavalinho,68x42cm)

desde a p. 4
até a p.