Linguística

MACAU E OS POETAS PORTUGUESES

José Augusto Seabra*

Camoen's Cave at Macoa London, published by Black, Parry & Cª and Nichols & Cª, 1814.

Das formas que tomou, historicamente, a presença de Portugal neste entreposto, assegurando esse diálogo cultural multi-secular, seja--me permitido eleger uma que é a meu ver emblemática e de que posso dar testemunho. Refiro-me -já se terá adivinhado - à poesia, que é sem dúvida, parafraseando Camilo Pessanha, a "especial actividade imaginativa" que Macau aos Portugueses suscitou. De Camões aos poetas contemporâneos, que aqui vêm numa espécie de peregrinação, como ainda há pouco aconteceu com um Miguel Torga ou um Eugénio de Andrade, dir-se-ia que a Cidade do Nome de Deus foi e é para todos eles aquele "Santuário nacional pan-lusitano", de que fala o autor da "Clepsidra" de que a Gruta com o nome do nosso Vate se tomou o espaço mítico. Que a pre-sença de Camões em Macau seja de ordem lendária, longe de diminuir mais acentua ainda o seu significado essencial. Como diz Camilo Pessanha, "há-de ser verdade intuitiva, superior a todas as investigações históricas, que o maior génio da raça lusitana sofreu, amou, meditou em Macau, aqui tendo composto, em grande parte, o seu poema imortal". E ele invoca em abono do mito os exemplos de Homero e de Shakespeare, cuja existência ou não terá sido indiferente ao destino das obras que aos seus nomes ficaram ligadas. Mas o mito de Camões, bem como o da célebre gruta onde se teria refugiado para escrever as estrofes d' "Os Lusíadas", é por ele, ainda e sempre, comparado ao dos deuses pagãos e respectivos santuários, "situado cada um deles - diz o poeta - em terra ilustrada por algum episódio da vida da divindade a que era dedicado".

Foi o primeiro biógrafo do poeta, Pedro de Mariz, quem, na edição d' "Os Lusíadas" de Manuel Correia, saída em 1613, de que retoma uma nota à estância 128 do Canto X, pôs a circular a versão de que Camões foi enviado pelo Governador da Índia, Francisco Barreto, como "provedor mor dos defuntos" às "partes da China", tendo estado em Macau e tendo sofrido na foz do rio Mecon um naufrágio de que se salvara com o Poema pátrio a nado. Eis a famosa estância, cuja exegese tem sido controversa:

Camões, página de Rafaelo Bordalo Pinheiro na Grande Edição Manuscrita de "Os Lusíadas" (1883).
    "Este receberá, plácido e brando, 
    No seu regaço o Canto que molhado
    Vem do naufrágio triste e miserando, 
    Dos procelosos baixos escapado, 
    Das fomes, dos perigos grandes, quando
    Será o injusto mando executado
    Naquele cuja Lira sonorosa
    Será mais afamada que ditosa"
    (X, 128)

Para lá das polémicas acerca das datas, circunstâncias e condições das andanças de Camões por "partes da China", e nomeadamente acerca da sua estadia ou não em Macau, na qualidade ou não de provedor (mor ou pequeno) de defuntos e ausentes, que na sequência das notícias e interpretações de Manuel Correia e Pedro de Mariz ocuparam as atenções e as obsessões dos comentadores da vida e da obra do Poeta, o que importa é verificar como, entre à história e a lenda, as fontes e as suas leituras, se foi insinuando o mito, pelos interstícios do texto, do intertexto. Do Visconde de Joromenha a Manuel Severim de Faria, de Jordão de Freitas a Cunha Gonçalves, de Teófilo Braga a José Maria Rodrigues, de Joaquim Ferreira a José Hermano Saraiva, de Gonçalo da Gama a Bento da França, de Charles Boxer a Francis Lee Hasting, enfim, de todos esses e muitos mais ao infatigável estudioso de Macau, Padre Manuel Teixeira, que à questão dedicou todo um livro, as referências e as inferências, históricas e críticas, num sentido ou noutro, deixam-nos por vezes perplexos, a tal ponto que o probo António Salgado Júnior fala a este respeito, com propriedade, da "maior trapalhada da biografia de Camões".

O nome do Poeta aparece pela primeira vez num documento do Século XVIII, designando uns simples "penedos"de Macau. Pouco se sabe sobre a origem dessa designação: "é, portanto, impossível determinar como nasceu a tradição de Camões ter ali pousado e poetado", escreve Rafael Ávila de Azevedo. Entretanto, Luís Gonzaga Gomes, citado pelo Padre Manuel Teixeira, alega que "se as tradições estão bem arreigadas e vivas não será a demonstração da sua inexactidão histórica que as poderá destruir": é para ele "axiomático que, em toda a lenda, existe um fundozinho de verdade".

Axiomático ou não, o certo é que o mito se apoderou desse "ninho de pombas", como anteriormente lhe chamavam os chineses, transformando-o, pouco a pouco, num locus amoenus, a que gerações prestaram culto. Tendo pertencido à Companhia Inglesa da Índia Oriental, antes de ser vendido a um Conselheiro português, Manuel Pereira, ele acabou por ser adquirido pelo Estado, em 1866. Um busto em bronze de Manuel Bordalo Pinheiro assinala emblematicamente a gruta, onde as inscrições poéticas se multiplicaram: desde as estâncias de vários cantos d' "Os Lusíadas", até poemas de Garrett, Tasso, Brau-wing, Rienzi, etc., numa profusão ecléctica onde o sentimentalismo romântico predomina, atraindo os Portugueses e estrangeiros que em Macau vivem ou aqui desembarcam.

Os próprios Chineses prestaram e prestam um culto respeitoso à gruta de Camões, tendo--lhe um vice-rei de Cantão, Ki-Ying, construído um portal simbólico, numa homenagem religiosa, segundo o culto confucionista. E ainda hoje as crianças das escolas, portuguesas e chinesas, aí vão em romagem no 10 de Junho, depondo flores e recitando excertos d' "Os Lusíadas", nas duas línguas, como pude testemunhar quando, em 1984, aí estive em representação do Governo português. Como não sentir um sopro de emoção patriótica, mesclada de universalismo ecuménico, ao ouvir, nessas longínquas paragens orientais, ao mesmo tempo a "lira sonorosa"do Poeta no idioma pátrio e num idioma estranho, mais do que estrangeiro, como diria Barthes?

Muitos escritores celebraram a gruta, à imagem de Camilo Pessanha. Talvez o texto que mais vibratilmente no-la restitua seja um dos "Traços do Extremo Oriente", de Venceslau de Morais:

"Pedras amontoadas sobre pedras, constituindo um pequeno outeiro eriçado de arestas musgosas; abraçando-se ao granito, estendendo as raízes por entre os mamelões, soberbas árvores seculares; tal é o que em Macau se chama Gruta de Camões" - escreve Morais. Para logo fazer apelo à lenda, ao mito: "Dizem, não sei com que fundamentos históricos, que aqui, sobre estas trilhas sinuosas que circundam os penedos, passeou por longas horas a sua melancolia de boémio um pobre provedor dos defuntos e ausentes, ou coisa que o valha...". A imaginação de Venceslau voga já ao sabor da evocação do Poeta. Para ele - e repare-se na sua linguagem, semelhante à de Camilo Pessanha, de que por essa altura era companheiro - "a verdadeira consagração do lugar, a que fala religiosamente ao coração de todo o português", é a "grandeza" da paisagem, em contraste com o que chama "o pequenino Macau português", que "não é mais do que uma língua de rocha, apenas perceptível nas cartas geográficas". Dir-se-ia uma miniatura de Portugal mesmo, visionada por Camões nostalgicamente da gruta: "Quantas vezes, sobre esta eminência da Gruta de Camões, ele, o poeta expatriado e perseguido pelas intrigas e prepotências dos mandões, não alongaria a vista desolada, assistindo talvez ao jubiloso embarque de forasteiros para a nau da viagem, prestes a largar para Lisboa".

Nota sempre desferida com a ambiguidade intrínseca de uma dupla visão da terra de nascença, já na terra do desterro entrevista, como, ao falar da gruta de Camões, dá também conta Camilo Pessanha: "Em Macau é fácil à imaginação exaltada pela nostalgia, em alguma nesga de pinhal, menos frequentada pela população chinesa, abstrair da visão dos prédios chineses, dos pagodes chineses, das sepulturas chinesas, das misteriosas inscrições chinesas, destacando a cada canto em rectângulos de papel vermelho, das águas amarelas do rio e da rada, onde deslizam as lentas embarcações chinesas de forma extravagante, com as suas velas de esteira fantasmática, e criar-se, em certas épocas do ano e a certas horas do dia, a ilusão da terra portuguesa".

Desta ilusão se alimentam os poetas que, como ele diz, "vagueiam e se definham por longínquas regiões...". Tal será o destino dos que, na esteira do Épico, farão a experiência da ex-patriação oriental, arribando um dia a Macau. É o caso de Manuel Maria Barbosa do Bocage, que, embarcado para a Índia e atirado para a China, dois séculos depois de Camões, se projecta no seu itinerário geográfico poético, a caminho da Cidade do Nome de Deus, onde brevemente estanciou:

    "Camões, grande Camões, quão semelhante
    Acho teu fado ao meu, quando os cotejo! 
    Igual causa nos fez, perdendo o Tejo, 
    Arrostar co sacrílego gigante: 
    
    Como tu, junto ao Ganges sussurrante, 
    Da penúria cruel no horror me vejo". (...)

E, de facto, também ele se viu, à sua imagem, arremessado "aos mares da longínqua China", onde teve que, de Cantão para Macau, "com lasso pé vagar mendigo". É certo que a sua condição não era já a de presumível "provedor de defuntos e ausentes", impossível de repetir-se. Mas Bocage, que era um árcade precursor do romantismo, e nessa medida antecipava o culto que este votaria a Camões, adoptou sobretudo o que no mito se quadrava com o seu subjectivismo exacerba-do, pouco dado à epopeia.

Bocage, no conhecido retrato do gravador Francisco Bartolozzi.

O Elmano Sadino impenitente que ele era não se adaptava às aven-turas do Oriente onde, como muito bem observou Armando Martins Janeira, "nada respon- dia às suas angústias e à sua fome intelectual " de Europeu vindo, di-lo o poeta nostálgico, "do culto, benéfico Ocidente". No Oriente, com efeito, tudo lhe era por contraste maléfico:

    "Aqui vago em perpétuo labirinto
    Sempre em risco de ver maligno braço
    No próprio sangue meu banhado e tinto". 

Do Século das Descobertas ao Século das Luzes, a trajectória de Portugal fora, na verdade, não a do progresso mas a da decadência, como Antero mais tarde mostraria e Bocage constata:

"Por terra jaz o empório do Oriente".

É dessa longa decadência, mas sempre com a esperança numa renascença, que no século seguinte, mas sobretudo no dobrar deste para o nosso século, falará a poesia que do mito do Oriente se nutre. Este manifestou-se entre nós com a geração de 70, nomeadamente em Antero e Eça, prolongando-se, depois, no rasto do pós--baudelairismo, pelo parnasianismo, pré-simbo-lismo, simbolismo propriamente dito e decan-dentismo. Citemos, nesse percurso, um Gomes Leal, um António Feijó, um Eugénio de Castro, até às figuras poéticas que mais directamente aqui evocamos, pela sua ligação a Macau, de António Patrício e Camilo Pessanha.

Num lugar à parte há que colocar António Feijó, que desde o seu "Cancioneiro Chinês"- título já de si significativo - a múltiplas composições poéticas dispersas por vários livros, procurou recriar um universo cujas referências orientais podem configurar-se em linguagem de recorte parnasiano, ou diluir-se em sugestões já de ambiente simbolista, sendo como é um poeta de transição de uma para outra dessas correntes estético-literárias.

Se na poesia de inspiração orientalista, que no simbolismo culminou com Camilo Pessanha, houvesse que escolher uma figura onde as poéticas finisseculares se casam já com as tendências que, no início do século, irão prenunciar, como escreveu Pessoa, uma "nova renascença", para lá do decadentismo antecedente, nomeadamente com o advento do Saudosismo de Pascoaes e da geração d' "A Águia", essa figura seria quanto a nós a de António Patrício, poeta e dramaturgo que, tendo nas suas errâncias diplomáticas começado por um posto de Cônsul em Cantão, em 1911, haveria de vir a morrer em Macau, numa derradeira missão, após ter sido nomeado embaixador em Pequim, em 1930. Este itinerário poderia ser considerado simbólico: ele corresponde ao "éternel retour de Zaratustra", que, em estranha consonância com a influência de Nietzsche, expressamente presente na sua obra, o levou do Oriente ao Oriente, da China à Cidade do Nome de Deus, mas sempre fiel à terra originária, e ao Ocidente, ele que fez do mar-oceano o elemento supremo da vida e da morte.

Natural do Porto, cidade que viria a ser o berço da "Renascença Portuguesa", justamente quando a sua carreira diplomática se estava no Oriente a iniciar, António Patrício é o exemplo mesmo do escritor que, através de uma cultura cosmopolita, consegue aliar os dois pólos do patriotismo e do universalismo, que caracterizam a maneira portuguesa de estar no mundo. Na sua poesia se inscreve, tragicamente, a condição de todo um povo que tem a consciência do seu destino e o assume em liberdade, emergindo da decadência para uma outra renascença.

"Saudade do Passado e Sede do Futuro", tal é o seu lema, como o era o de Pascoaes, cuja "saudade do futuro" Pessoa também glosaria.

Por isso a "Nau Sombra" de António Patrício, singrando o mare divinum, conduz Portugal na sua "História Trágico-Marítima", que na epígrafe de um poema invoca como "livro de cabeceira", até um ponto de esperança auroral, que ele no Oriente visiona:

    "Sobre tanto naufrágio e tanta dor, 
    Um ancorar puríssimo, encantado, 
    Num Oriente mais anunciador..."

O Poeta interroga-se, de viagem em viagem e de nau em nau:

mar, onde vos leva o nosso fado?"para logo responder que não será ao "naufrágio"dos "galeões", "ao do Passado", mas a um "naufrágio místico de amor", que transcende a "morte "- tema nele insistente:

    "Somos navegadores pr'além da Morte: 
    Temos a Índia eterna da saudade
    Rumando para sempre a nossa sorte. 
    Ó grande mar espúmeo de bondade, 
    Que a nossa alma portuguesa aporte, 
    Entre no Reino da Serenidade". 

Essa serenidade é, na sua sublimação mística, o equilíbrio trágico que se manifesta também no teatro de António Patrício, que ele concebeu como "tragédia estática", à maneira do teatro simbolista.

Essa tragédia, que é poeticamente a transposição da História Trágico-Marítima dos Portugueses, na sua aventura das Descobertas, tem um pendor religioso:

    "Rezar e semear, eis o destino! 
    E ouvir na tua voz, na voz do mar, 
     Um não sei quê de trágico e divino". 

Eis como a condição do Poeta e da Pátria, nesta visão mística de uma e de outro, se identificam, confirmando uma vez mais a ligação profunda, nas errâncias e nos exílios orientais dos nossos poetas, entre o patriotismo e a religiosidade, como a propósito de Camões evidenciou Camilo Pessanha.

A experiência do autor de "Clepsidra" é a este respeito significativa. Ela marca o seu desterro do "país perdido", que não é apenas nem sobretudo a expatriação física, mas a experiência poética ela mesma: "perdida voz que de entre as mais se exila", tal é a voz do poeta. Antes mesmo da sua partida para Macau, em 1894, com vinte e sete anos, depois de em Coimbra ter passado tangencialmente aos episódios do lançamento do nosso simbolismo, assimilando entretanto originalmente as suas metamorfoses de linguagem, já Camilo Pessanha visionara o Oriente mítico, à semelhança dos poetas que, na esteira de Baudelaire, tinham sentido a "invitation au voyage", mas ainda de certo modo como "l'Orient de l'Occident". Leia-se um dos seus poemas iniciais. O poeta imaginava:

    "Como os ébrios chineses, delirantes, 
    Respiram, a dormir, o fumo quieto, 
    Que o seu longo cachimbo predilecto
    No ambiente espalhava pouco antes..."

Não foi no entanto um Oriente exótico, diferentemente de Venceslau de Morais, que Camilo Pessanha em Macau buscou. Na sua iniciação oriental, o que o impressionou, e comunicou epistolarmente ao pai, foi o que neste território chinês sob administração lusa se lhe deparou da Pátria distante, e nomeadamente nos costumes religiosos:

"Ninguém na Europa imaginará - escrevia ele, pouco depois da sua chegada- o que é uma procissão portuguesa na China, o pálio com as armas de Portugal bordadas, embandeirados os fortes e os dois pobres chavecos do porto, um exército de trezentos homens transmontanos, beirões e graves maratas bronzeados da Velha Goa, as chinesas conversas do Colégio das Irmãs de Santa Rosa, vestidas como as asiladas daí...". Quem diria que Camilo Pessanha, que mais tarde iria ser iniciado na Maçonaria, na Loja de Luís de Camões, pegaria ele próprio de "casaca e lenço branco a uma das varas do pálio ", ao lado dos "padres chinos " e dos padres portugueses, cercado de "anjinhos vestidos como aí "! Talvez não seja por acaso que ele escolheu, como nome maçónico, o nome simbólico de "Angélico"...

O que é certo é que a associação entre a emblemática religiosa e a emblemática patriótica - o "pálio com as armas de Portugal bordadas" - o tocou particularmente, deixando sulcos na sua poesia. Como em António Patrício, lá vemos "San Gabriel, arcanjo tutelar", a "conduzir as naus, as caravelas":

    "Vem guiar-nos, Arcanjo, à nebulosa 
    Que do além vapora, luminosa, 
    E à noite lactecendo, onde, quietas 
    
    Fulgem as velhas almas namoradas... 
    -Almas tristes, serenas, resignadas, 
    De guerreiros, de santos, de poetas."

A nota épica, que um momento percutira, com o poema "Castelo de Óbidos", em que evoca, já em Macau, a sua passagem pela comarca onde ensaiara a advocacia, antes de partir como professor liceal para a Cidade do Nome de Deus, cede em Camilo Pessanha perante a nota elegíaca, em que se repercute a dor face à decadência da Pátria e ao próprio temor do regresso:

    "Temos de regressar... 
    E mata-me a saudade... 
    -Mas de me recordar
    Não sei que dor me invade". 

Por quatro vezes fez o poeta a viagem de volta e ida, como num retorno eterno, ou numa condenação de Sísifo. Dividido entre as suas raízes originárias e o apelo à errância sem fim, para Camilo Pessanha o mar torna-se uma imagem obsessiva da morte, como para a Pátria ele o fora. Por isso escreve, em 1909, ao seu amigo Carlos Amaro:

"Sabe o que eu agora desejaria? Não chegar ao meu sítio nunca... assim, a bordo de um navio, sem destino. Veja como o destino varia. Nos últimos dias de Lisboa, o terror que verdadeiramente me oprimia era este mar-morto da viagem, entre dois abismos tão distantes um do outro, e no fundo de cada um dos quais a minha alma perpetuamente agoniza ".

Esses abismos interiores são, ao mesmo tempo, aqueles onde se afundaram, para sempre, as naus da História Trágico-Marítima, que o Poeta, no navio de torna-viagem visualiza ao perscrutar o oceano:

    "Singra o navio. Sob a água clara 
    Vê-se o fundo do mar, de areia fina. 
    E a vista sonda, reconstrui, compara. 
    Tantos naufrágios, perdições, destroços! 
    - Ó fúlgida visão, linda mentira!"

António Feijó (1860-1917), no último período da sua vida, Ministro em Estocolmo.

Jamais a estesia da decadência pátria fora fruída até ao mais íntimo da espiritualização dos destroços corpóreos, diluídos no elemento aquático, nem atingira esta subtileza poética. Camilo Pessanha tem o condão de levar os recursos retóricos do Simbolismo - no seu encadeamento de imagens, metáforas, símbolos - até à sua expressividade extrema, que supera a do Simbolismo de escola (Eugénio de Castro, sobretudo), só tendo paralelo em António Nobre, o qual se expatriara, também, quanto a ele, na sua "Lusitânia no Bairro latino". Mas Pessanha explora ainda com um requinte infinito outro elemento fundamental do Simbolismo: a musicalidade da linguagem poética. Não apenas a música dos sons, como o Verlaine do lema "de la musique avant toute chose", mas a música das ideias, de que falava Mallarmé. Exemplos disso são não só os poemas onde a orquestração aparece referida a instrumentos musicais - a flauta, a viola, o violoncelo, o tambor - mas aqueles onde a voz cantabile se modula em harmonias e melodias em que o som se entrelaça com o sentido, numa "hesitação prolongada", como queria Valéry.

O acmê do virtuosismo de Camilo Pessanha é, porém, o célebre poema em que das arcadas do violoncelo emerge um choro convulsivo, que é justamente uma elegia pela Pátria amortalhada:

    "Chorai arcadas
    Do violoncelo! 
    Convulsionadas, 
    Pontes aladas
    De pesadelo... 
    
    Urnas quebradas! 
    Blocos de gelo... 
    - Chorai arcadas, 
    Despedaçadas, 
    Do violoncelo". 

António Patrício (1878-1930 em Macau).

Este poema, datado de 1900, isto é, do fim do século, é um requiem por Portugal que, na curva mais funda da sua decadência, é ressuscitado na música da língua, a "portuguesa língua", que António Ferreira sonhara no Renascimento disseminada universalmente, e que Camões, como os Jesuítas que no Oriente a ensinaram e preservaram em Macau, legou aos poetas que lhe pro-longaram a herança: Bocage, António Feijó, António Patrício, Camilo Pessanha...

A minúcia no trabalho poiético da língua - do fonema à sílaba, ao morfema, ao lexema, ao sintagma - muito deve entretanto em Camilo Pessanha, à sua incorporação da experiência da tradução da poesia chinesa, pela transposição da sua "imprecisão", que permite não só a sua fragmentação lógica e sintáctica, mas a sua "duplicidade", a sua ambiguidade semântica. Tudo se passa como se Camilo Pessanha, prati-cando o Chinês e entregando-se às meditações do carácter místico da respectiva poesia, procurasse no nosso Português tão dúctil, musical e subtil as conotações com a sua sensibilidade cristã e o seu esoterismo iniciático.

Não admira que o poeta, de quem se julgava que apenas compunha e recitava os poemas de ouvido, os trabalhasse e retrabalhasse, como o revela a recente descoberta do seu "Caderno de Poemas", que tive a honra de prefaciar numa edição do Governo de Macau, subsequente ao seu achado.

Entre os poemas que Camilo Pessanha recompôs, macerando-os numa tortura infindável e perfeccionista do ante-texto, figura um cujas metamorfoses, do "Rondel"inicial à "Viola Chinesa", mostram bem os avatares da poética simbolista, cuja instrumentação oriental e não ocidental é finalmente assumida pelo poeta. E não é por acaso que ele é dedicado a Venceslau de Morais.

Fernando Pessoa, que tentou a todo o custo incluir Camilo Pessanha em "Orpheu 3", deu--se conta da importância primacial deste poeta exilado no Oriente, por quem se confessou influenciado, no advento do modernismo, insistindo em fazer sair os seus textos das "laudas ocultas dos seus cadernos", numa carta que lhe escreveu para Macau. E o poeta dos heterónimos compreendia até ao âmago a essência da poesia de Camilo Pessanha, ao dizer ter guardado, de ouvir recitar os seus poemas num café de Lisboa, uma "religiosa recordação". É que de experiência religiosa, na sua acepção exacta, se tratava: uma experiência de re-ligação do Ocidente e do Oriente, que o portugueses historicamente cumpriram como uma missão, de Camões a Camilo Pessanha, e que agora os poetas órficos podiam, neste nosso século, assumir em toda a sua universalidade, num mundo planetário:

    "Eu acho que não vale a pena ter
    ldo ao Oriente e visto a Índia e a China. 
    A terra é semelhante e pequenina
    E há só uma maneira de viver."

escreve o Álvaro de Campos do "Opiário". A sua busca é, enfim, a da poesia restituída à sua potencialidade infinita, na pluralidade de linguagens, de línguas, a toda a rosa-cruzada dos ventos, na eterna "rotação dos signos", de que fala Octávio Paz. É que, como escreve Álvaro de Campos, há sempre "um Oriente ao oriente do Oriente", mesmo se é o Ocidente, o "futuro do passado", que Portugal como rosto da Europa fita, segundo o poeta da "Mensagem". Mas lá está o mistério de versos como os de "Passagem das Horas", em língua portuguesa e numa língua estranha:

    "Macau à uma hora da noite... 
    Acordo de repente... 
    Yat-lô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô... Ghi...". 

Que língua culta é esta, senão a da Poesia, num grito de êxtase espiritual, a emergir das trevas para a luz, aqui, na Cidade do Nome de Deus, santuário sagrado do diálogo entre todos os deuses? Sob o signo dessa espiritualidade poética e profética, em que o Oriente e o Ocidente se reencontram, quero guardar na memória este momento de plenitude, agradecendo à Fundação Macau e à Universidade da Ásia Oriental a hospitalidade e a honra de me contarem entre os seus.

NOTA DA REDACÇÃO

O presente texto é, fundamentalmente, baseado na alocução do embaixador José Augusto Seabra na cerimónia de atribuição do doutoramento "honoris causa" pela Universidade de Ásia Oriental. Na passagem de um contexto predominantemen-te oral à escrita, com o intuito de publicação na "Revista de Cultura", foram introduzidas ligeiras alterações que em nada desvirtuam o seu carácter original.

* Poeta e ensaísta. Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, exilou-se em França, onde se doutorou em Letras pela Sorbonne, com uma tese dirigida por Roland Barthes. Exerceu funções de Ministro da Educação entre 1983 e 1985, sendo actualmente Embaixador de Portugal junto da UNESCO. Publicou recentemente "Poemas do Nome de Deus", inspirados na cidade de Macau. Doutor "honoris causa" pela Universidade da Ásia Oriental, em Maio de 1991.

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